Endrigo, o Escavador de Umbigo (2011, ed. 34)

Posted: 26th fevereiro 2011 by Vanessa Barbara in Livros

Vanessa Barbara, com ilustrações de Andrés Sandoval
Infanto-juvenil
Editora 34
56 p. – 15,5 x 22,5 cm
ISBN 978-85-7326-460-9
preço: R$ 36,00

Apresentação de final de ano é coisa séria!

E foi por levar a sério — talvez a sério demais! — o trabalho que devia apresentar para a professora Lurdes, que Endrigo, um garoto de onze anos que não gosta de cebola e ficou de recuperação em História, acabou colocando toda a quinta série em polvorosa.

Com muita irreverência e imaginação, a escritora Vanessa Barbara e o ilustrador Andrés Sandoval contam a história de um menino que, com a curiosidade de um cientista e a ajuda de sua assistente, passa a estudar o próprio umbigo, encontrando nele coisas tão disparatadas quanto um mosquito fossilizado, um toco de lápis, um besouro e muito mais — tudo isso para espanto da professora e delírio dos seus colegas de classe!

Sobre o autor

Vanessa Barbara nasceu em 1982, em São Paulo. É jornalista, tradutora e colaboradora da revistaPiauí. Publicou O livro amarelo do terminal (Cosac Naify, 2008), vencedor do Prêmio Jabuti na categoria Melhor Livro de Reportagem em 2009, e, em parceria com Emilio Fraia, O verão do Chibo (Alfaguara, 2008). Assina semanalmente a coluna “Vanessa vê TV” no caderno “Ilustrada” da Folha de S. Paulo.

Sobre o ilustrador

Andrés Sandoval nasceu no Chile em 1973 e formou-se em Arquitetura pela Universidade de São Paulo em 1999. Trabalhou com cenografia e cinema, e iniciou sua atividade como ilustrador em 2001. Participou da Bienal de Ilustração da Bratislava (Eslováquia) e do Salão do Livro de Montreuil (França). Publica suas ilustrações pelas editoras Planeta Tangerina (Portugal), Editora 34, Cosac Naify e Companhia das Letras, entre outras. Desde 2006 ilustra a seção “Esquina” da revista Piauí.

Paródia explica “receita” da série em um minuto

Posted: 20th fevereiro 2011 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
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Folha de S. Paulo / Ilustrada
20 de fevereiro de 2011

por Vanessa Barbara

Uma dica para quem nunca viu “Dexter”, a série em que o mocinho é um serial killer: há uma paródia circulando pela internet com o título “Dexter em 60 segundos”, que explica basicamente toda a fórmula do programa. Nele, um analista forense da polícia leva uma vida dupla de justiceiro sociopata.

Produzido pela Landline TV, o vídeo começa com o protagonista dirigindo, à noite, na hora em que seu “passageiro negro” vem à tona. “É um termo mais legal que dei para o meu ímpeto de matar”, ele explica, didaticamente. E acrescenta: “Este é o meu monólogo interior”.

Então vem à tona uma série de sósias tristes dos personagens principais: a tenente LaGuerta anuncia a chegada de um novo serial killer, que é prontamente apelidado por Batista como “o trocador de pés por cabeças”. Ambos ficam admirando a cena do crime, sem grande entusiasmo.

Mais tarde, Dexter almoça com a irmã Debra, que reclama do atraso dizendo: “…Palavrão!”. Ela lhe apresenta seu novo namorado, um sujeito fantasiado de Jason, evidentemente agraciado com o dom da psicopatia. Ele acena de modo jovial.

No supermercado, Dexter reconhece o assassino após um insight esdrúxulo: o homem pergunta onde pode encontrar uma “cabeça” de alface, em vez de um pé de alface. “É ele. O trocador de pés por cabeças.”

A essa altura, a tenente LaGuerta põe a mão na cintura e protesta: “Alguém se importa com o nosso enredo?”. Como a temporada-minuto já está no fim, Dexter esfaqueia o assassino e lhe agradece por inadvertidamente transmitir alguma lição útil que será o mote da próxima temporada.

A essa estrutura básica, juntam-se dúzias de comentários sarcásticos, um ator excepcional, um fantasma paterno, familiares em perigo e o resultado é uma série premiada que já vai para o seu sexto ano.

Faca no pescoço

Posted: 20th fevereiro 2011 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
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Amanhã estreia no Brasil a terceira temporada de “Em Terapia” (HBO, 21h25). A série será exibida de segunda a quinta-feira em episódios de aproximadamente 25 minutos cada, em tempo real, feito uma sessão de terapia.

Um por dia, os pacientes se instalam no divã do dr. Paul Weston (Gabriel Byrne, vencedor do Globo de Ouro) e desfiam suas angústias. Na semana seguinte, retornam para dar continuidade ao tratamento.

Na última temporada, o psicanalista analisou uma ex-paciente que o culpava por tê-la feito abortar há vinte anos, um executivo que o pagava por resposta e uma jovem com câncer em estado de negação. Como se não bastasse, estava sendo processado pela morte de um paciente.

Para fechar a semana, é o dr. Weston que vai à terapia, num episódio sempre tenso em que ele praticamente sobe ao ringue com Gina, a psicanalista interpretada por Dianne Wiest –– que ele chama de “aranha sonolenta esperando para dar o bote”. Nesta nova edição, a terapeuta é Adele (Amy Ryan), mais jovem, porém tão dura quanto sua predecessora.

“Em Terapia” é uma série angustiante e deprimente. Nas palavras de uma paciente, é como “uma faca no seu pescoço: você fica aliviado quando sai”. O desconforto permanece por um bom tempo e, na melhor das hipóteses, desanda na sensação de ser uma das pessoas mais equilibradas do mundo. É um alívio não ter um analista como Paul.

Pois a lógica do dr. House em matéria de catástrofe profissional se aplica ao dr. Weston: é raro que os pacientes saiam do consultório felizes, iluminados ou satisfeitos. Pelo contrário. São poucos os momentos de humor e leveza da trama, à exceção de uma ou outra sessão com a ginasta Sophie (da primeira temporada) e com o gordinho da tartaruga, da segunda.

De resto, é tudo dor e inconclusão, num ofício segundo o qual, nas palavras do próprio Paul, “o cliente nunca tem razão”.

Até agora, a série americana era uma adaptação do original israelense, “Be’Tipul”. A partir deste ano, os argumentos passam a ser originais, embora ainda estejam a cargo de Rodrigo García, filho do escritor Gabriel García Márquez.

Aos leitores que ainda tiverem dúvidas, sinto informá-los que nosso horário acabou. Conversaremos sobre isso na semana que vem.

O umbigômetro

Posted: 19th fevereiro 2011 by Vanessa Barbara in Clipping
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O Estado de São Paulo/ Estadinho
19 de fevereiro de 2011

O rei dos crossovers

Posted: 13th fevereiro 2011 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
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Dá-se o nome de “crossover” ao cruzamento entre personagens, cenários ou eventos de séries distintas de TV. Por exemplo: a garçonete Ursula, de “Mad About You”, às vezes aparece em “Friends” como irmã gêmea de Phoebe Buffay. Um blecaute causado pelo protagonista do primeiro foi sentido pelos personagens do segundo. E Paul Buchanan já emprestou o apartamento para Kramer, de “Seinfeld”.

Também entre “Arquivo-X” e “Millenium” houve uma parceria, quando Frank Black ajudou Fox Mulder a resolver um pepino. Mas o crossover definitivo, o rei da esquizofrenia televisiva, ainda está para ser escrito. Segue uma gentil colaboração:

Exterior – Noite

Tudo começa quando o psicopata Dexter Morgan (da série “Dexter”) comete um crime hediondo com uma faca enferrujada e não termina o serviço. Moribunda, a vítima rasteja até o hospital Princeton-Plainsboro, onde é atendida por um médico de bengala (“House”) e seu imediato em serviço (“Star Trek”).

O paciente, identificado como Jeremy Bentham (“Lost”), é diagnosticado como portador de lúpus e ganha uma instigante punção lombar, mas a temporada estava no fim e ele teve que ir a óbito em respeito à unidade aristotélica da trama.

O corpo é levado à funerária Fisher & Sons (“A Sete Palmos”), onde Jeremy se depara com um papa-defuntos estranhamente parecido com seu assassino. Era Michael C. Hall.
À cerimônia fúnebre comparecem os agentes do FBI Olivia Dunham (“Fringe”) e Dale Cooper (“Twin Peaks”), que prometem capturar o assassino, fosse ele deste mundo ou não (“Além da Imaginação”).

Como esperado, ambos creditam o crime a uma trama conspiratória envolvendo Al Capone (“O Império do Contrabando”), a máfia siciliana (“Família Soprano”), um nazista da sopa (“Seinfeld”) e um anão que fala de trás pra frente (“Twin Peaks”). Vão todos parar no consultório do dr. Paul Weston (“Em Terapia”), como já deveriam ter feito há muito tempo.

Por fim, o caso é solucionado pelo policial Jimmy McNulty (“The Wire”), que planta pistas falsas, suborna traficantes e chama um detetive confuso (“Monk”) para meter os roteiristas no xilindró.

O episódio termina com Jack Bauer (“24 horas”) chutando a porta e esmagando os créditos com desnecessária truculência.

100% de aproveitamento

Posted: 6th fevereiro 2011 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
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Dos dezenove participantes do “Big Brother Brasil 11” (Globo, 22h15, classificação indicativa: 12 anos), mais da metade mora com os pais. Há sete modelos, três dançarinos e um nefrologista, que dificilmente terá oportunidade de pôr seus talentos em prática.

É gente que passará dois meses confinada numa casa, sem fazer absolutamente nada de útil.

Considerando-se que a Globo paga salário a todos e até agora não se atinou com o franco desperdício de mão de obra, aqui vão as minhas sugestões para a reformulação do reality.

Em vez de eliminar dois participantes de uma vez e trocá-los por outros dois, o que matematicamente dá na mesma, seria melhor enxugar a folha de pagamento e demitir cinco por justa causa. Os restantes acumulariam funções.

Em lugar de promover festas com bebidas energéticas, orgias de picolés e sessões de cinema para o líder, Boninho deveria instituir uma rotina de 12 horas de trabalho por dia, com linhas de produção para confeccionar clones da boneca Maria Eugênia, mascote do ex-BBB Kleber Bambam.

O setor administrativo da emissora poderá sair de férias ou delegar o excesso de serviço aos brothers. Mesmo Bial pode exigir que um dos participantes (sugestão: Diogo) o substitua.

A alta produtividade dos confinados não prejudicará a audiência, pois todas as tarefas serão obrigatoriamente executadas de biquíni. As conversas à beira da piscina, por exemplo, acontecerão enquanto os envolvidos descascam uma pilha de batatas. Durante a labuta, os brothers poderão fofocar à vontade, espalhar maledicências, debulhar-se em lágrimas etc.

Entrará para a história a cena em que Rodrigão larga o maçarico e vai abordar a colega Paula, que pede só um minuto para concluir sua ânfora em argila.

O paredão será literal, quando as futuras celebridades terão que erguer um muro de tijolos resistente (paredão duplo ou triplo), sob a supervisão de um empreiteiro famoso. O líder da semana ficará ao fundo, gritando REMEM! REMEM!, e o Anjo irá ao confessionário com um padre de verdade, a fim de garantir a salvação das almas.

Todos doarão à comunidade seu tempo, sangue, medula óssea e, quiçá, um dos rins. Quando essa hora chegar, finalmente encontraremos um uso para o nefrologista residente.

Memórias umbilicais

Posted: 5th fevereiro 2011 by Vanessa Barbara in Clipping
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Folha de S. Paulo / caderno Folhinha
5 de fevereiro de 2011

 

Fórum social virtual

Posted: 1st fevereiro 2011 by Vanessa Barbara in esquinas, Reportagens, Revista piauí
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Piauí n. 29
Fevereiro de 2009

por Vanessa Barbara

Nerds de todo o mundo, uni-vos!

Na fila do credenciamento, uma massa de garotos vestindo bermuda arrasta seus computadores em carrinhos de feira. Outros trazem notebooks debaixo do braço, além de caixas de ferramentas, garrafas térmicas e colchonetes. Estão prestes a entrar na segunda edição da Campus Party, em São Paulo, um evento de tecnologia em que os 6 mil participantes – e seus computadores – acampam durante sete dias para compartilhar uma conexão à internet de inacreditáveis 10 gigabytes (10 mil vezes mais rápido do que uma conexão normal). Na prática, trata-se de um galpão onde todos interagem em rede, baixando jogos eletrônicos e transmitindo seus programas de áudio e vídeo a quem se interessar. Também acontecem palestras ligadas a doze áreas temáticas, como blogs, games, fotografia, astronomia e software livre. É o Fórum Social Mundial do mundo nerd.

Este ano, o evento aconteceu no Centro de Exposições Imigrantes, entre os dias 19 e 25 de janeiro. Foi uma semana de intensa balbúrdia, com gente gritando em megafones, palestrantes tentando chamar a atenção do público e empresas fazendo todo tipo de promoção. “Parece a Super Casas Bahia”, comentou um participante, em alusão ao feirão de fim de ano organizado pela loja de varejo. A arena principal podia ser dividida em setores: havia uma ala só de garotos rodando jogos como Crysis e Counter-Strike, absortos em fones de ouvido gigantes. Outra só de entusiastas da robótica, soldando placas e estudando circuitos para fabricar máquinas antropomórficas com cabeças de som estéreo e cabelos de fibra ótica. O baiano Cristiano Pimentel, 25 anos, funcionário público de Alagoinhas, apresentou um projeto que lhe pareceu revolucionário: um aquário que alimenta automaticamente os peixes. Na área de modding – modificação de computadores -, reinava a bizarrice de cores e formatos de CPUs. Alguns gabinetes imitavam carros e robôs, outros eram feitos de madeira, de plástico transparente e chegavam a medir quase 1 metro de altura.

Orgulhoso de si mesmo, um participante fulminou: “Hoje o nerd é uma das coisas mais importantes que existe, é o cara que move o mundo.” Na Campus Party de 2009, eles vieram de 26 estados do Brasil e de vários países do mundo – chegou a correr um boato de que havia um sujeito da Bielo-Rússia que viera de Minsk só para isso. (Ele não foi encontrado.) A maioria dos participantes era do sexo masculino e estudava ciência da computação. Que ninguém pense que são jovens sem bandeira. Há quarenta anos estariam gritando: “Abaixo a ditadura!” Hoje, continuam criando calos nas cordas vocais, agora em oposição à ditadura da propriedade intelectual. “Viva o pinguim! Viva o software livre!”, gritaram todos na abertura da feira, em referência ao pinguim que serve de mascote ao Linux, o Windows dos anarquistas, um sistema operacional que pode ser baixado de graça.

Alguns participantes confessaram frequentar a Campus Party só para fazer uso da conexão rápida e baixar vídeos, seriados e jogos. Alguns traziam discos rígidos com capacidade para armazenar até mil filmes. A expectativa dos organizadores era que houvesse um efetivo compartilhamento de conhecimento e criação de novos conteúdos – de preferência, mais ambiciosos do que o alimentador de aquários. Durante o evento do ano passado, dois jovens desenvolveram uma geringonça que, ao emitir raios infravermelhos, substituía tanto o mouse quanto o teclado. Os inventores utilizaram apenas o que estava à mão: velcro, sensores, pilhas e um controle de videogame Nintendo Wii. MacGyver se roeria de inveja.

***

Em meio a militantes anticopyright, entusiastas de sites de relacionamento e fotógrafos amadores, havia os descompromissados. Estavam ali só para se apoderar dos pufes e navegar ao deus-dará. Na tarde de quinta-feira, o publicitário Rodolfo Castrezana, 38 anos, tomava suco de goiaba e jogava Spore. Na sexta, ele continuava lá, firme e forte, dessa vez transmitindo imagens em tempo real de uma amiga sua que discorria sobre pastéis de frango, origami e inutilidades afins. São cenas assim que instilam a dúvida em alguns. “Eu fico vendo uns vídeos que a galera libera do dia-a-dia da feira e me pergunto sobre a utilidade desse evento”, ponderou o biólogo e blogueiro Thiago Henrique Santos, 26 anos, de São Bernardo do Campo.

Como 72% dos inscritos tinham entre 18 e 29 anos, ninguém duvidou da informação extra-oficial de que foram compartilhados mais de 6 gigabytes de conteúdo pornô. E não causou espanto o fato de que, a despeito da presença de Tim Berners-Lee, criador da World Wide Web e do primeiro website, as grandes estrelas do evento foram as três coelhinhas da revista Playboy que se revezavam no estande da Abril: a ruiva Ana Lúcia Fernandes, a morena Márcia Spézia e a loira Thaiz Schmitt, todas vestidas com maiôs minúsculos, meia-calça arrastão e rabinho de pompom. As três viviam cercadas de nerds esfuziantes com suas câmeras digitais em punho. Um deles chegou a apalpar os glúteos da coelhinha ruiva, que saiu do evento chorando. O vilão ficou conhecido como o “bolinador de coelhinhas”.

Como era de se esperar, durante as madrugadas a Campus Party seguia animada. Entre um download e outro, participantes organizaram mundanas partidas de truco e rodinhas de violão. “Acho que desaprendi a dormir”, disse um. “Baixei 5 gigabytes em quinze minutos”, comemorou outro. Os que preferiam cochilar se dirigiam às duas mil barracas do setor de acampamento. “Sinto frio”, reclamou Felipe Attílio, num bate-papo virtual. “Comprei um edredom pra não morrer congelado, mas ele fede. Não sei se prefiro ficar com frio ou feder.”

A Campus Party 2009 chegou ao fim tendo reunido 2 492 desktops e 1 508 laptops. Ainda não se tem o balanço final da feira. Sabe-se, porém, que acertou na mosca o nerd sedutor que arriscou a cantada “Você para mim é o Google: acho tudo que eu quero em você”. Por outro lado, não ficou claro se o sujeito que estava trocando um rim por um MacBook aluminium de 13,3 polegadas, 360 Gb de HD e 4 Gb de RAM encontrou um interessado. (Melhor não, porque logo logo chega a versão com 8 giga.)

Blog da Companhia das Letras
31 janeiro 2011, 3:30 pm

Por Vanessa Barbara

Se houvesse bom-senso no mundo, “preparador de texto” seria uma afecção mental categorizada pelo CID-10 (Classificação Internacional de Doenças e de Problemas Relacionados a Saúde, Décima Revisão).

Nas editoras, o preparador é aquela pobre alma responsável pela primeira revisão de um livro, ainda no arquivo de Word. É a mais trabalhosa, que busca limpar o texto, corrigi-lo e aperfeiçoá-lo. O trabalho de preparação consiste em adequar o original às normas editoriais, seguindo um gigantesco manual de padronização que dispõe sobre citações, versaletes, colocação pronominal, pontuação, galicismos, siglas, topônimos estrangeiros e coisas como o singular de “gnocchi”, que é “gnocco” e não pode ser aportuguesado para “inhoco”.

Trata-se de uma leitura atenta, escorada por vasto material de apoio e dicionários vernáculos. Inúmeros detalhes devem ser considerados — itens como sintaxe, coerência, ortografia, ambiguidade, repetição desnecessária, vícios de linguagem, ecos de língua estrangeira, falsos cognatos, ritmos frasais e outras questões de cunho literário. O texto deve fluir bem, sem engasgos.

É obrigação do preparador formatar o arquivo original e bater todos os parágrafos (verificando se o tradutor não pulou nenhum trecho). Essa é uma tarefa particularmente apreciada pelos mais neuróticos, que ajeitam quebras de página e formatam títulos com o entusiasmo de quem toma Berlim.

Um bom preparador é caso psiquiátrico. Convém que ele sofra de um leve transtorno obsessivo-compulsivo e seja persistente, perfeccionista e incansável. É preciso gostar de pesquisar minúcias como a composição química do tricofitobezoar, interessar-se por dispositivos bélicos da Segunda Guerra, especializar-se em generais bizantinos, possuir um dicionário de gírias de milicos e ler tudo sobre a moda seiscentista só para checar se a infanta Margarida usava calcinhas de elástico.

O preparador de originais é um xiita vocabular. Em Ser feliz, de Will Ferguson, há uma frase que resume a categoria: “O preparador de texto enlouqueceu”, exclama May. A personagem é editora de livros e até entende que o preparador é pago para ser minucioso, conferir gramática, pontuação e uso do idioma. “Mas esse sujeito passou das medidas. Passou mesmo. Ele assinalou a frase ‘manuscrito escrito à mão’, disse que era redundância, que a raiz em latim é manus, que significa ‘mão’.”

Tem todo o meu apoio.

O preparador é aquele sujeito que chega a sacrificar uma lagartixa só para ver se ela escorre pela parede ou desaba de uma vez no chão. Minha mãe quase chegou a esse ponto — sim, pois a preparação é um ofício que passa de geração em geração, só que ao contrário. Minha avó será a próxima.

Tem alma de preparador aquele que desconfia de tudo e se gaba publicamente ao encontrar algum erro gritante no original, como passagens bíblicas equivocadas num livro sobre São Francisco de Assis ou um tradutor que topou com a expressão “coolie-hating” e, distraído, salpicou um desvairado “ódio aos cães da raça collie”.

Corre a lenda sobre um profissional que achou uma incongruência no enredo de A invenção de Morel, de Adolfo Bioy Casares. Desde já, um mito entre seus pares.

Quando o distinto Paulo Werneck (ex-editor da Companhia e hoje no caderno Ilustríssima, da Folha de S.Paulo) me convidou para trabalhar para a editora, resgatando-me de um deprimente cargo de revisora num site de fofocas, ele revelou a principal qualidade do preparador: a desconfiança. Duvidar de tudo, até da grafia de Shakespeare, Tolstói e Getulio Vargas. (Sobre essa última, a lendária preparadora Márcia Copola deu a palavra final: após pesquisar documentos da época, viu que o Pai dos Pobres não acentuava o nome ao assinar, e assim ficou estabelecido).

Em termos de mania, a inverossimilhança e a impossibilidade física fazem salivar qualquer preparador. Uma frase pronta para a intervenção: “Com os cotovelos apoiados no ombro, ele se sentou correndo sobre a panturrilha esquerda, movendo o cenho na direção oposta”. (A não ser que o livro tenha motivos circenses. Nesse caso, convém ter à mão o telefone do Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Picadeiro para esclarecer eventuais dúvidas.)

Como último e derradeiro sintoma da moléstia, o preparador de texto deve sofrer de dupla personalidade, pois precisa se mostrar respeitoso e arrogante a um só tempo. Respeitoso com o estilo do autor e com as soluções do tradutor, mas arrogante o suficiente para passar a tesoura e reformular os trechos que julgue necessário.

Um bom preparador se constrói com muito tempo, experiência e calmantes. Embora eu já demonstrasse pendor para a atividade em meus tempos de revisora de fofocas — títulos de minha lavra: “Gatuno rouba peruca de Jennifer Lopez” e “Julio Iglesias tira o sapato em cadeia nacional” —, minha consagração na área de copy-editing veio mesmo na Companhia das Letras, onde exasperei editores com meus comentários longos, engraçadinhos e desnecessários, e causei poderosas enxaquecas em tradutores renomados com minhas dúvidas e anseios estilísticos.

Nas palavras de FERGUSON 2002, pp. 71-2: “Preparadores de texto, ah! Todos malucos. Malucos, estou te dizendo!”.

* * * * *

Vanessa Barbara é jornalista e tradutora. Entre as suas preparações mais ilustres, destacam-se Os dentes falsos de George Washington (Robert Darnton), Anos do Condor(John Dinges), Nova York (Will Eisner), 71 contos (Primo Levi), Quebrando a banca (Ben Mezrich) e Histórias extraordinárias (Poe), além de livros de autores como Moacyr Scliar, Zé Miguel Wisnik e Shakespeare.

Resenha no blog “O Leitor Comum”

Posted: 31st janeiro 2011 by Vanessa Barbara in Clipping
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31 de janeiro de 2011
Blog “O Leitor Comum”

por Arthur Tertuliano 

TÍTULO LIDO NA SEMANA
O livro amarelo do terminal, Vanessa Barbara

Sabe aquele livro amarelo da Cosac Naify?

Como dizer não? Você conhece boa parte do catálogo da editora – que se destaca com projetos gráficos fora do comum, diga-se de passagem –, então provavelmente já viu o danado do livro. A guria é bonita e inteligente – chamemo-la Y. – e a combinação ainda não fez você gaguejar, ou suar demasiadamente, ou esquecer que consegue conversar por mais do que meia hora sem chegar ao ponto de não ter mais o que dizer: a maldição da falta de assunto, o silêncio constrangedor, conspurcado apenas pelo cricrilar dos grilos.

Ahn… sim.

E o diálogo flui sem maiores sobressaltos.

**

Meses depois, num café com um dos amigos mais recorrentes em minhas colunas – continuemos a chamá-lo K. –, ele me empresta dois livros: uma história em quadrinhos baseada num filme de Fritz Lang, ainda não lida; e O livro amarelo do terminal, de Vanessa Barbara.

O título parece ser apenas O livro amarelo e só ao abrirmos a orelha do volume é que lemos o restante. Uma brincadeira proposital, uma vez que o livro é quase que inteiramente… amarelo. Para variar, mais um projeto gráfico impecável da Cosac Naify. Nas páginas amarelas, em papel tão fino que permite ver o verso da folha, há um elegante cuidado com a diagramação para que as linhas do texto não se sobreponham. Nas páginas dedicadas à numeração dos capítulos, os traços da frente e do verso das folhas se misturam, criando figuras distintas nesse encontro.

Mas se o livro fosse meramente design gráfico, não sei se estaria na Cosac Naify. Como diria um clássico da sabedoria nacional: não é só um corpinho bonito, é muita cuca no lance.

O bom de ler livros indicados por alguém em cujo gosto confio plenamente é que consigo aproveitar melhor certas nuances e surpresas que poderiam ter sido reveladas na quarta capa, por exemplo. Confiando assim, não preciso ler orelha, quarta capa, resenha, ou crítica antes do livro propriamente.

No entanto, por algum motivo, enquanto ainda estava na metade da leitura d’O livro amarelo, fiquei curioso em saber mais sobre a autora e li as páginas finais, onde há uma breve biografia. A partir daí descobri que ela, “em 2003, fez as pesquisas e a redação d’O livro amarelo do terminal, como reportagem de conclusão do curso de jornalismo”. O que não chegou a ser uma grande surpresa, mas talvez tivesse condicionado a leitura do livro.

Afinal, eu estava lendo-o como um romance. Uma narrativa longa de ficção, sobre personagens diversos que convivem em certo ambiente: o terminal. Há dados, críveis, sobre cada setor do local, que poderiam ser fruto da pesquisa aprofundada de uma metódica escritora ou da imaginação de alguém capaz de escrever com admirável verossimilhança. Apenas as páginas brancas – que englobam os capítulos 14 a 16, que discorrem sobre A construçãoA inauguração e A consolidação do Terminal Rodoviário do Tietê –, em que há uma colagem de reportagens de periódicos diversos, aponta mais claramente a base jornalística do livro.

A leitura da prosa de Vanessa Barbara aproxima-se com a sensação que tenho ao assistir a alguns documentários. Não aqueles em que se finge que a câmera não altera o observado, num arremedo de neutralidade, cheios de vazios e longos silêncios. A câmera de Barbara é cheia de vida e parece-me mais uma chance para que aquelas diferentes pessoas contem um pouco de suas vidas do que uma amostra do quão bem a escritora consegue narrar tais histórias. Entre o balcão de informações e a sala de controle de onde são feitos os anúncios dos alto-falantes, Rosângela, Álvaro, Augusta e outros passeiam pelas páginas; trabalhando duro, indo para ou chegando de lugares distantes, mas com um sorriso no rosto.

Enfim, o livro emociona.

Update: Achei no site da Cosac Naify uma entrevista com as responsáveis pelo projeto gráfico do livro.