No meu tempo

Posted: 17th outubro 2010 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
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No meu tempo, a televisão era diferente. Para começar, havia a supremacia do dublado – todos os filmes, séries e programas estrangeiros recebiam uma buliçosa versão em sotaque carioca, provavelmente feita pelo mesmo sujeito, que ganhava uma miséria e imitava as vozes de todo o elenco: dos velhos, das moças, das crianças e dos galos.

No meu tempo, havia televisões em preto e branco de cinco polegadas com rádio AM/FM, que só sintonizavam à base de petelecos e mandinga brava. Havia a frequência UHF e um cheiro permanente de queimado saindo de trás do televisor.

Nos idos d’antanho, as antenas eram Plasmatic, tinham a forma triangular e um bombril na ponta. A gente costumava revezar o membro da família encarregado de ficar de pé, ao lado do aparelho, segurando a antena num ângulo específico – o braço esquerdo levemente arqueado, os joelhos dobrados, o pescoço pra trás. Era como nós praticávamos a ioga, naquela época.

As partidas de futebol eram mais proveitosas: todos os jogadores tinham a coloração esverdeada, e cada atleta recebia a marcação cerrada de um habilidoso irmão gêmeo. Nunca dava pra ver a bola e, aparentemente, os 22 elementos em campo usavam a mesma cor de uniforme, rolando a pelota fraternalmente para o mesmo time. Era bonito o futebol no meu tempo.

À tarde, a gente assistia o game-show “SuperMarket” (Band), uma despropositada gincana dentro de um supermercado. Acertávamos a resposta das charadas que o Ricardo Corte Real fazia sobre produtos lácteos, extrato de tomate e desinfetante. Sabíamos de cor em que corredor ficava o pepino em conserva e a maionese gigante. Era durante o “SuperMarket” que a luz de casa começava a falhar, anunciando a hora de ir tomar banho (antes que os vizinhos sugassem toda a energia local).

A televisão de outrora valorizava a rapidez de raciocínio (imagens oscilantes), a incerteza filosófica (o que foi que ele disse?) e a imaginação do espectador, pois nunca dava pra distinguir com clareza o que estava acontecendo (“Olha, mãe, eu acho que tem um Ovni ali atrás do Cid Moreira”).

Com o advento da transmissão em alta resolução, tela de cristal líquido Full HD e som estéreo 5.1, ficou mais chato assistir televisão.

O primo da irmã da avó do Parada

Posted: 10th outubro 2010 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
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“O meu pai gostava de contar causos. Ele me contô uma vez um causo do surdo, um surdo daqueles não totalmente surdo, daqueles meio surdo”, relata o ator, compositor e cantor Rolando Boldrin. “O tal do caboclo tava na roça tirando mandioca. E meu pai puxou assunto, né.”

Há cinco anos, Boldrin comanda o “Sr. Brasil” (Cultura, qui. às 22h), onde costuma fazer a mesma coisa que o pai fazia: sentar e tirar uns dedos de prosa.

É o programa preferido do meu avô, e uma das maiores audiências da TV no segmento da terceira idade. Trata-se de uma atração de palco – com plateia – focada em ritmos brasileiros como a música caipira, mas que também dá espaço a outras manifestações regionais (prosa, verso, dança e teatro).

Sempre bonachão, Boldrin emenda os números musicais com “causos” variados, como esse, do caboclo meio surdo. A história segue: o homem pergunta como vai a família, mas o matuto não escuta direito e diz que está colhendo mandioca. “E a mulher, como vai?”, indaga o outro. “Tá meio aguada, mas tô comendo mesmo assim…”, responde o caboclo. A plateia vai ao delírio.

Boldrin fala sem parar de um certo Dito Preto, ou Benedicto da Silva, que conheceu em sua cidade natal, São Joaquim da Barra (SP) – terra de outra grande figura das artes, o fotógrafo Renato Parada. “Ele é primo do marido da irmã da minha avó. É um cara totalmente especial, o centro das atenções onde quer que esteja. E o mais incrível de tudo: sem ser chato, sem forçar a barra”, conta. “No último jantar na casa do tio Mauro”, especifica, “ele cantou, declamou poesia, contou piada e passou trote por telefone na filha.”

No programa, Boldrin mistura histórias de Nhô Totico, Noel Rosa, Dominguinhos, João Macacão, Osvaldinho da Cuíca e da cearense dona Jandira, que tem a voz de uma diva negra do jazz. Canta chacoalhando uma caixa de fósforos. Recita poemas sobre gravatas coloridas. Em vez de dizer que alguém morreu, diz que “viajou fora do combinado”.

Entre uma cuíca e outra, uma viola e uma sanfona, não podemos deixar de notar que Boldrin é a cara do protagonista da série britânica “Inspetor Morse”. Só que mais simpático.

E haja comercial de cimentcola, farmácia, antena parabólica e remédio para osteoporose.

O que aprendi com Bob Esponja

Posted: 3rd outubro 2010 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
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No próximo dia 10/10/10, sábado, às 10h10, uma horda de bailarinos, coreógrafos e patinadores estará no Parque das Bicicletas, em Moema, para homenagear o super-herói Ben 10. O evento da Cartoon Network marcará a estreia da terceira temporada do desenho – em que um garoto ganha um relógio de pulso que se funde ao seu DNA e o permite transformar-se em dez mil espécies diferentes de alienígenas.

Sem nada deverem aos clássicos, os desenhos infantis da nova safra nos trazem inúmeras lições. O mais popular deles, “Bob Esponja Calça Quadrada” (Globo e Nickelodeon), já passou da sétima temporada e alcançou 7,7 milhões de espectadores num só episódio. O morador mais famoso da Fenda do Bikíni, amigo de Lula Molusco e residente num abacaxi laranja de dois quartos, ensina que não se deve tomar sundae de amendoim com cebola para não ficar com bafo.

Entre outras coisas.

Num viés mais educativo, a TV Cultura também faz sua contribuição para o público que ainda mastiga a própria mão: um dos programas mais premiados é “O Mundo Redondo de Olie”, sobre um robô-criança amarelo e roliço. Outros são “Cocoricó”, “Doug”, “Zoboomafoo” (um lêmure falante), “Shaun, o Carneiro” (animação muda) e “Pingu” (falada em pinguinês).

Porém, os maiores sucessos na faixa pré-penico são os musicais “Hi-5” e “Backyardigans”, veiculados pelo Discovery Kids, que ensinam cores, números e a fisiologia dos ominhocos.

Há desenhos infantis para todos os gostos: alguns, como “Clifford, o Gigante Cão Vermelho”, ensinam as crianças a serem amigas e responsáveis, mas nada dispõem sobre caninos mutantes de cor rubra. Outros, como “A Vaca e o Frango”, ensinam a andar de bunda no chão e comprar avós adicionais no mercado de parentes usados.

“Pocoyo” foi concebido para fins puramente pedagógicos, enquanto “Animaniacs”, nem tanto. (Wakko Warner costuma promover um finíssimo recital de música clássica nas axilas.) Se “Peixonauta” é ecologicamente correto, o velho “Tom e Jerry” preconiza a vingança e o hipertabagismo.

Enfim, alguma coisa sempre dá pra aprender com os desenhos. Nem que seja obedecer sem reservas à coreografia de um dinossauro púrpura de 2 metros de altura que tem culotes e dança.

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Piauí n. 49
Outubro de 2010

por Vanessa Barbara

Superlativa concentração de quelônios no Paraná

O caminho de Curitiba a Morretes, no Paraná, pela antiga estrada da Graciosa, é mal sinalizado e tortuoso, como se quisesse espantar os visitantes indesejados. As indicações para a estrada de chão que leva à Fazenda Reserva Romanetto dão uma ideia da complexidade da expedição: na estrada da Ponte Alta s/nº, deve-se entrar numa saída para a chácara de orquídeas Yu Fang, próxima à empresa de celulose CTM, no quilômetro 2 da Graciosa (Reta do Porto). Depois, é preciso perguntar aos moradores “das casinhas da esquerda”, que costumam empunhar vistosos facões, onde fica a reserva. Aí é só virar à direita numa bifurcação antes da ponte e seguir as instruções de uma placa – dobrada em dois, enferrujada e ilegível.

Enfim se chega à Reserva Romanetto, um dos maiores criadouros comerciais de quelônios do Brasil, onde vivem cerca de 2 mil tartarugas dos mais diversos tamanhos (segundo a última contagem, são 1 250 tigres d’água e 700 jabutis). Todas são legalizadas pelo Ibama, microchipadas e alimentadas diariamente por um solitário tratador, Anderson Gonçalves Siqueira, de 26 anos. A reserva, de 50 hectares, está encravada em plena Mata Atlântica e é propriedade do comerciante paulista Ricardo Romanetto, de 47 anos, que há mais de uma década investe na criação de portentosos cágados.

A tigre d’água brasileira (Trachemys dorbignyi) é uma graciosa tartaruga de água doce muito procurada como animal doméstico. O nome deriva de suas listras amarelas, embora alguns atribuam o epíteto à ferocidade do animal, que, ao morder, “só solta quando quiser”. A brutalidade lendária é confirmada por Anderson, que aproveita para fazer chacota dos biólogos que visitam ocasionalmente a reserva e são sempre mordidos no cotovelo por uma ávida cascudinha. O que poucos sabem é que as minúsculas e delicadas tartaruguinhas vendidas nos pet shops podem alcançar um diâmetro de até 35 centímetros e 3 quilos de pura fúria, podendo sobreviver aos seus donos.

Passando entre dois grandes lagos, onde o proprietário tenta estabelecer uma criação comercial de pirarucus, chega-se ao tanque das temidas tigres d’água, que se aglomeram nas beiradas para tomar sol e botar os assuntos em dia. É uma infinidade de cascos verde-amarelos das mais diversas compleições, amontoados ou enfileirados, com pescoços e patas uniformemente esticados, na ânsia de aquecer as mais recônditas dobrinhas. Diante da aproximação de seres humanos, as tartarugas efetuam um mergulho abrupto e sincronizado, emitindo sonoros clops ao cair na água. São todas crescidas e volumosas, lembrando saudáveis calotas de Fusca.

***

Todos os anos, nascem na reserva cerca de 8 mil filhotes. Os ovos são depositados em bandejas cheias de areia grossa, numa sala com umidade controlada e temperatura a 29 graus centígrados, onde eclodem num período médio de 72 dias. O processo é mais rápido do que na natureza, onde pode levar até quatro meses. Para quebrar o ovo, a tartaruga usa um dentinho, que cai depois de uma semana de nascimento. Anderson conta que o aproveitamento é de quase 100%, ou seja, é raro que uma tartaruguinha não consiga sobreviver num berçário de luxo com pinta de resort. No período da desova, há dias em que a quantidade de ovos coletados chega a 400.

Se a aproximação humana assusta os quelônios expostos fora d’água, ela também provoca curiosidade subaquática e a expectativa uníssona pela chegada da ração. Após o mergulho apavorado, portanto, o que se vê são centenas de narizes para fora, nadando afobadamente em direção às visitas. A aglomeração é tamanha que chega a fazer barulho: os cascos batendo uns contra os outros emitem clops aterrorizantes.

Felizmente, conseguimos sair ilesos da avalanche quelônia que se prenunciava. Com a ajuda de Anderson, partimos para a área das tartarugas terrestres, os jabutis, estes sim inofensivos répteis de olhar ancestral e alfacinhas penduradas na boca. Todos ali pesavam mais de 10 quilos e podiam servir de banco ao visitante mais distraído.

***

Logo na chegada à arena, Anderson tem que acorrer a um chamado de emergência: o jabuti número 8, que aqui vamos chamar de Moisés, estava virado de ponta-cabeça e esperneava, apavorado, num dos cantos. Os amigos de Moisés não pareciam fazer caso de toda a sua angústia. Anderson retorna o tartarugão à posição normal e diz que há muitos incidentes assim durante o dia. Como os animais só aguentam poucas horas de pernas para cima e geralmente não conseguem se desvirar sozinhos, é preciso haver socorro imediato.

Na fazenda, há ainda uma dezena de ovelhas, contratadas para aparar a grama. Seus estranhos balidos monocórdios, sem nenhum vibrato, se assemelham a uma imitação ruim de ovelha. Também lá residem dois ou três galos relegados à coadjuvação, e duas cadelas que convivem com as tartarugas num regime de paz permanente.

Ao contrário do que possa parecer, a Reserva Romanetto não é aberta a visitações. Só logram o acesso aqueles que realmente se esforçam, implorando de joelhos ao senhor Romanetto, e usando termos técnicos de quelonicultura, a fim de se provarem merecedores de tal honraria. Então, e só então, o feliz agraciado poderá conhecer quelônios tão vetustos que chega a nascer planta a partir de seus cascos. E se der sorte, Anderson falará sobre o sonho das tartarugas albinas, mostrará o saco vitelino de um jabuti recém-nascido e contará que fim levou Bituga, uma tartaruga que nasceu em 2007 e tinha duas cabeças.

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Piauí n. 49
Outubro de 2010

por Vanessa Barbara

Polêmica no 1º Campeonato de Escultura em Melancias

A promotora de eventos Elizabeth Tachibana veio de Curitiba com duas melancias na bagagem e um sonho: sagrar-se campeã brasileira de entalhe em frutas e legumes. A contenda ocorreu na tarde de 13 de setembro, durante a feira de hotelaria e gastronomia Equipotel, no Pavilhão do Anhembi, em São Paulo. Foi o 1o Campeonato Nacional de Escultura em “Melâncias”, como dizia o folheto.

O evento foi idealizado pelo chef tcheco Charlie Carving, único representante no Brasil da escola tailandesa de entalhamento hortifrúti. O estilo opõe-se às escolas filipina, chinesa e japonesa, que defendem a utilização de ferramentas elétricas e a escolha de temas mundanos, como dragões e samurais. Já o entalhe tailandês privilegia a paciência, as armas brancas (facas comuns) e dá preferência a motivos bucólicos.

A competição contava com uma série de regras, nem todas compreensíveis. A primeira dizia que “todo cidadão brasileiro pode participar da competição”. A segunda, que “podem participar da competição também pessoas do exterior”. Beneficiado pela falta de sentido da legislação, o chef cubano Eduardo Díaz Toledo, do Senac do Paraná, pôde se inscrever.

Segundo o edital, não seriam permitidos dispositivos de motor, como facas elétricas, motosserras e furadeiras. E todos deveriam trazer sua respectiva melancia – máximo de duas peças –, regra que foi levianamente quebrada pela organização do concurso, que dispôs, na entrada, uma pilha de lustrosas cucurbitáceas à disposição dos competidores.

Com duas melancias acondicionadas numa mala de rodinhas, Elizabeth achou errado e protestou, invocando o trabalho que tivera ao transportar sua matéria-prima desde o Paraná. Alheio a tudo e a todos, o paulistano Mitsuo Inaba limpava meticulosamente as quarenta banquetas e as duas compridas mesas de trabalho com seu indefectível pano multiuso. Depois, lustrou e alinhou simetricamente os instrumentos de cutelaria, entre os quais se encontravam boleadores, descascadores, facas tailandesas, facas retas, facas “carvadas”, floreadores, agulhas, borrifadores de antioxidante, formões, palitos de churrasco, alicates e estiletes. Nas maletas dos participantes também havia sachês de ketchup e mostarda, cola tipo Super Bonder e durex.

Enquanto isso, o goianiense Geovanio Carvalho tentava criar vínculos com a fruta que lhe cabia, abraçando-a com ternura. O colega Dogival Alves Freire, de Brasília, analisava a consistência de sua redonda. Já a campineira Suzana Ishizaki apalpava discretamente o umbigo de sua “melância”, na tentativa de conhecê-la melhor.

No total, eram nove participantes, todos com jaquetões brancos de chef. Às duas e cinco da tarde, começou o torneio. O primeiro a apunhalar sua matéria bruta foi Eduardo Díaz, o cubano especialista em cisnes de tomate, leques de pepino, flores de batata, patos de nabo e buquês de alho-poró.

Quem logo assumiu a dianteira foi o paulistano José Adriano Cordeiro, que descascou o hemisfério ocidental de sua musa esférica com poucos e bons talhos. O mais calmo era Mitsuo, que analisava um esboço do desenho pretendido: uma abelha (feita com a casca da fruta) polinizando uma flor branca sobre um recheio de melancia. Um trabalho em diversos níveis, portanto.

Passada meia hora, José já havia burilado uma flor funda, de interior avermelhado. Dogival revelou um pendor especial para a finalização de pétalas, enquanto Shigemi Matsumoto, de Jundiaí, destacou-se por trabalhar o topo de sua melancia, a menor entre as presentes. Com o tempo, uma flor foi surgindo de dentro da fruta, de modo que só faltou à artista tocá-la com um cinzel e pedir: “Parla!”

***

Pouco antes das três da tarde, acabou a luz no recinto. Ainda havia iluminação parcial numa das bancadas e foi para lá que todos transferiram suas melancias. Lá fora, os visitantes da feira acompanhavam a movimentação grudados no vidro, tentando entender por que diabos havia nove pessoas de branco cavucando melancias no escuro.

Em dez minutos a energia voltou e, às 15h40, o primeiro escultor deu por concluída sua arte. Era José, que talhou uma extensa flor em dégradé. Dez minutos depois, Geovanio também terminou, satisfeito: “Eu sou apaixonado pela minha obra”, confessou, apreciando-a por uns minutos. Ambos os trabalhos tinham técnica semelhante e consistiam em flores profundas e coloridas, sendo que a de Geovanio trazia um detalhe de borboleta em casca verde. “Estou gostando também de pássaros”, ressaltou, explicando o redirecionamento temático.

Encerradas as três horas de competição, os juízes se reuniram para deliberar. Avaliaram quesitos como concepção (limpeza, regularidade, nitidez e energia de corte), dificuldade (quantidade de motivos, plasticidade), desenvoltura, técnica, impressão artística e pluralidade de temas.

Ao analisarem a obra de Eduardo Díaz, porém, a situação ficou tensa. Ele era responsável pela criação mais original do recinto: um barco talhado no interior da melancia, com vasta matéria-prima do miolo. As demais esculturas tinham maior ênfase na superfície da fruta, no jogo entre casca, parte branca e miolo. Eduardo Díaz era um insider.

Inflexíveis, os juízes elogiaram sua noção de profundidade, mas disseram que o trabalho “teria ficado esteticamente melhor numa abóbora”. Grande ofensa. Armou-se uma confusão. O artista discordou, disse que deviam examinar a técnica e não o material, e falou que não se importava com o fato de a melancia ter sementes que se evidenciavam num trabalho como aquele. “É uma crítica construtiva!”, apelou uma das juízas. Díaz se afastou, irritado. Era como se dissessem a Rodin que O Pensador ficaria melhor em plástico bolha, e não em bronze. No fim, o artista incompreendido levou uma menção honrosa pela “noção de tridimensionalidade em frutas”, que ficou mais parecendo um prêmio de consolação pelo infeliz comentário da abóbora.

O campeão da noite foi Milton Nisti, um chef de 47 anos, de Santos, que usa aparelho dentário e trouxe dois tipos de óculos para enxergar. Milton esculpiu um rosto de mulher com cabelo de casca verde, nariz à Karl Malden e flores entalhadas ao redor.

Antes mesmo de poder gozar dos privilégios de ser campeão brasileiro, Milton foi ofuscado por um acontecimento ainda mais importante para a comunidade: Charlie Carving resolveu esculpir em melancias o rosto dos presidenciáveis e comunicou sua decisão à imprensa. Fôssemos juízes, diríamos, com óbvio intuito construtivo, que a ideia talvez se materializasse melhor em bananas.

O quintal do meu avô

Posted: 1st outubro 2010 by Vanessa Barbara in Crônicas
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Revista Mais – Pão de Açúcar
Outubro de 2010

por Vanessa Barbara

Aos 8 anos, meu avô ficou bêbado de tanto tomar água. O incidente se deu por conta de uma aposta para ver quem bebia mais, pois, nessa idade, são essas as coisas que importam. Valente, meu avô tomou quase uma moringa inteira – quinze copos d’água – e venceu a disputa, embora tenha saído vomitando nos braços do povo. “Naquele dia eu apanhei bastante”, ele lembra, com um sorriso gabola.

Até os 12 anos, em 1945, Paulo de Moraes viveu em Ourinhos, no interior de São Paulo, onde havia constantes guerras de uva e brigas de pedrada. Uma de suas mais célebres histórias, recontada no romance O Verão do Chibo (Alfaguara, 2008), diz respeito à escolha do líder da turma – formada por Craiton, Zé Minduim, Valter Gordinho, meu avô e o Oscar.

“O Zé Minduim chegou com uma câmera fotográfica invisível e a respiração toda estranha. Disse que ia tirar um retrato, eu fiz pose, e ele tacou uma torneira na minha cabeça”, conta. Era uma vida difícil para Paulo, o mais magrinho do grupo e o único que não conseguia enxergar por cima do milharal. Mas ele era o mais esperto e, certa vez, chegou a ganhar numa aposta dez caixas de palito de fósforo – o que fez dele uma espécie de magnata local, pelo menos até a mania de incêndio passar.

Por essas e outras é que meu avô acabou virando o “Menorzinho”, narrador do meu primeiro romance (em parceria com o escritor Emilio Fraia). Passamos horas conversando sobre o Flash Gordon, o futebol de botão, as surras, o rio Paranapanema, Tarzan contra o mundo (1942), os passeios pelo trilho do trem, o aprendizado de cambalhotas com os palhaços do circo, Roy Rogers, A Deusa de Joba (1936) e o dia em que comeu três marias-moles de uma vez.

Minhas histórias preferidas têm como protagonista o Valter Gordinho, que, dizem, só andava com a turma porque o tio dele era rico e lhe enchia de presentes. Não há um episódio em que o roliço petiz não se meta em alguma enrascada. Sempre incentivado pela turma, Valter Gordinho foi atacado por marimbondos, tomou chineladas antológicas, pulou de um andaime, passou semanas com febre, perdeu misteriosamente os suspensórios e, durante um furto de pombos, ficou entalado no forro de um galinheiro.

Há algumas semanas, aos 76 anos, meu avô sofreu um AVC e ficou com o lado direito paralisado e a fala comprometida. Ninguém parece desconfiar, mas eu sei que ele vem planejando uma mirabolante fuga do hospital, com direito a guerra de goiaba, fratura exposta, carrinho de rolimã e a ajuda de quem quiser participar (exceto o Valter Gordinho).

Na época do meu avô, “o quintal de casa ia embora”.

 

         

O louco de palestra

Posted: 1st outubro 2010 by Vanessa Barbara in Crônicas, Revista Piauí
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Tipos brasileiros: O louco de palestra
Ele sempre começa com “Eu gostaria de fazer uma colocação”

por Vanessa Barbara

Piauí n. 49
Outubro de 2010

Em dezembro passado, o escritor gaúcho André Czarnobai, o Cardoso, publicou um diário na piauí intitulado “Pasfundo calipígia”. Salvo engano, foi a primeira vez em que se utilizou em letra impressa o termo “louco de palestra”. Imediatamente, a expressão ganhou densidade acadêmica e popularizou-se nos redutos universitários nacionais, encorajando loucos latentes e chamando a atenção da saúde pública para o problema.

O louco de palestra é o sujeito que, durante uma conferência, levanta a mão para perguntar algo absolutamente aleatório. Ou para fazer uma observação longa e sem sentido sobre qualquer coisa que lhe venha à mente. É a alegria dos assistentes enfastiados e o pesadelo dos oradores, que passam o evento inteiro aguardando sua inevitável manifestação, como se dispostos a enfrentar a própria Morte.

Há inúmeras categorias de loucos de palestra, que olhos e ouvidos atentos podem identificar em qualquer manifestação de cunho argumentativo-reflexivo, com a palavra franqueada ao público.

Há o louco clássico: aquele que levanta, faz uma longa explanação sobre qualquer tema, que raramente tangencia o assunto em debate, e termina sem perguntar nada de específico. Seu único objetivo é impressionar intelectualmente a plebe, inclusive o palestrante oficial. Ele sempre pede licença para “fazer uma colocação”.

Há o louco militante, que invariavelmente aproveita para culpar a exploração da classe dominante, mesmo que o tópico do debate seja arraiolo & bordado.

Há o louco desorientado, que não entendeu nada da palestra – e não vem entendendo desde a 2a série, quando a professora lhe comunicou que o Sol é maior que a Terra – e, depois de circunlóquios labirínticos, faz uma pergunta óbvia.

Há o que faz questão de encaixar no discurso a palavra “sub-repticiamente”: é o louco vernaculista.

Uma criteriosa tipificação do objeto de estudo não pode deixar de registrar o louco do complô, que, segundo integrantes do próprio complô, é “aquele que acredita que toda a imprensa se reúne de madrugada com o governo ou a oposição para pegar a mala de dinheiro”.

Ou o louco adulador, que gasta os trinta segundos que lhe foram franqueados para dizer em dez minutos como o palestrante é divino. O louco deleuziano, que não sabe o que fala, mas emprega muito a palavra “rizoma”. E o louco pobre coitado, que pede desculpas por não saber se expressar, o que não o impede de não se expressar durante minutos intermináveis.

Depois de falar “Gostaria de fazer uma colocação”, todos podem usar a expressão “na chave de…”. Como nessa típica colocação: “O jornalismo entendido na chave da sociologia é sem dúvida uma ocupação rizomática, em termos de vir-a-ser.” São poucos os que dizem que algo acontece por causa de outra coisa. É sempre “por conta” da qualquer coisa em questão.

No entender de Cardoso, é raro não haver um louco à espreita quando ele está palestrando (ou painelando, ou debatendo, ou mesmo plateiando). O mais recente de que ele tem lembrança manifestou-se num encontro de blogueiros com editores, em São Paulo. Na ocasião, um camarada que até então ouvia tudo com atenção – mas em silêncio – pediu a palavra. “Em primeiro lugar, queria dizer que não sou blogueiro, não leio blogs, não entendo nada dessas coisas, mas também tenho direito a uma opinião”, afirmou, à guisa de apresentação.

E prosseguiu, o celerado: “Sou médico comunitário, organizo saraus na periferia e quero dizer que discordo de tudo que todo mundo falou aqui. Está todo mundo puxando o saco da Companhia das Letras.”

E disse mais: “O blog da editora está muito feio. Não tem cara de blog. Tem mais cara de site, e além disso acho que ninguém quer ler sobre os bastidores de como são feitos os livros.”

Em poucos minutos, ele invalidou audaciosamente tudo o que havia sido postulado até então. É o louco de palestra majestático, que ouve a conferência com ar de superioridade e acha tudo uma grande e gorda estultice.

***

Um bom louco de palestra é sempre o último a falar, pois passa o tempo todo digerindo o que foi dito. Só então ele pode dar alguma declaração desvinculada do tema, equivocada, mal-intencionada ou apenas incompreensível. Para o jornalista Matinas Suzuki, o tipo contempla com desprezo o que se discute, aguarda pacientemente a sua vez e, então, discorda com virulência. “Me corrijam se eu estiver errado”, ele diz a certa altura, só para parecer democrático. “Concordo com tudo o que vocês disseram, mas ao contrário”, prossegue. Ou ainda: “A minha colocação engloba a do companheiro e vai além”, num típico comentário condescendente de loucos de assembleia.

Há que se distinguir o maluco de palestra do desvairado de assembleia estudantil ou sindical. Nesta última, não há palestrante; todos têm o direito de incluir o nome na lista de oradores e falar, sem a necessidade de se ater forçosamente a um tema.

***

Segundo uma enquete com personagens da época, um dos mais célebres representantes dessa categoria, na década de 70, era o Gilson, um estudante do curso noturno de economia na Universidade de São Paulo. Era um gordinho trotskista que tinha a voz fina e usava um bigode ralo. O outro era o Reinaldinho, da ciências sociais, que, qualquer que fosse o assunto, dava sempre um jeito de encaixar a frase: “O concreto é a síntese de múltiplas determinações.” É verdade. Até Marx sabia disso. Mas repetir o conceito em todas as assembleias da usp dos anos 70 nem Engels aguentaria.

Embora essas duas categorias de louco (palestra vs. assembleia) se diferenciem por motivos óbvios, existe a possibilidade de infiltração de loucos de palestra numa típica assembleia estudantil/sindical. O infiltrado, em regra, é aquele que toma o microfone à revelia de todos e anuncia: “Questão de ordem!”, ainda que a alegação não proceda. Daí em diante, a performance é livre.

São assim os loucos de palestra: audazes, imprevisíveis, implacáveis, destituídos de noção ou sentido. Cardoso também se lembra de um debate em Curitiba, quando “um senhor moreno, grisalho, com uma sacola ecológica atravessada no peito e toda a pinta de quem pratica ioga, anunciou que ‘a internet é como uma vaca mágica, de onde cada um extrai o leite que deseja’”.

Infelizmente, é só isso que ele se lembra daquela longa e bizarra colocação.

Há quem se depare com um louco contemplativo, que é dos mais difíceis de lidar. Sobretudo na primeira mediação de sua vida. Foi o que ocorreu com o escritor e editor Emilio Fraia, que, nervoso e pautado por dezenas de papéis amarelos, conduziu um debate entre o cineasta Hector Babenco e o escritor William Kennedy, no dia 11 de agosto, em São Paulo.

“Primeiro, a moça levantou a mão e disse: ‘Eu tenho uma pergunta’”, contou Emilio Fraia com a pungência de quem luta contra um quadro de estresse pós-traumático. “Então, ela disse não saber por que estava ali. Viu que haveria uma palestra e entrou.” A moça era de Minas, estava há quatro dias num quarto de hotel, sozinha. “Mas gostei muito do que o senhor Kennedy falou, de ter sido recusado por treze editoras antes de publicar. Sou artista plástica.”

Nesse instante, começaram os apupos da plateia: “Pergunta!” Intrépida, ela não fez caso: “Tenho um trabalho baseado em cores e…” Apupos, apupos.

Ao término do arrazoado, Fraia não conseguiu esboçar reação. Ficou vermelho. Paralisado. “Até que a palestra encerrou-se por si só. Foi o fim, nada mais poderia acontecer após aquela intervenção”, relata.

Outra recente ocorrência de louco contemplativo deu-se numa palestra da escritora Fred Vargas, no Rio de Janeiro, acerca do caso Cesare Battisti. Um sujeito pediu a palavra e falou vinte minutos sobre a sua militância no Nordeste, nos anos 50, sem pronunciar nem uma vez o nome do Battisti.

Com esse tipo de maluco em vista, o cartunista Laerte Coutinho confessou imaginar o que restaria daquela experiência para o sujeito, o louco propriamente dito. “Acho que tudo se reduz à sua própria intervenção”, filosofou Laerte. E emendou uma teoria: dos debates, o louco de palestra deve se lembrar tão somente da sua performance. “Lembra aquela vez, em Curitiba, quando eu levantei a mão e comparei a internet a uma vaca mágica?”, diria o sujeito, satisfeitíssimo, numa reunião de um hipotético Grupo Unificado de Apoio aos Loucos de Palestra, o GULP.

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O que poucos sabem é que a origem do louco de palestra remonta à história do pensamento. “Acho que ele surgiu pela primeira vez na Ágora grega: a democracia está cheia de loucos de palestra”, postula o editor Milton Ohata.

Na peça As Nuvens (423 a.C.), o dramaturgo Aristófanes, por exemplo, faz chacota dos sofistas – os loucos de palestra mais insignes da Grécia Clássica. Naquele tempo, já existiam “profetas, quiropráticos, mocinhos cabeludos, poetas ditirâmbicos, astrólogos, charlatões, impostores e muitos outros mais”, diz o texto. Gente que se rendia ao arrebatamento do discurso e à volúpia da articulação, um bando de consumados tratantes, palavrosos e descarados. Tais como Cairefonte, discípulo de Sócrates, que levantou certa vez a mão e perguntou ao mestre qual das duas era a teoria certa: “O mosquito, ao zumbir, se utiliza da boca ou justamente do contrário?”

Na antiga Palestina, talvez durante o Sermão da Montanha, devia haver loucos de palestra prontos para agir. Uma das perguntas lançadas ao Filho de Deus, e omitida dos registros canônicos, teria sido: “E aí, o que está achando de Cafarnaum?”

Especulações à parte, uma coisa é certa: foi um louco de palestra fariseu que abordou o Messias com uma pergunta mal-intencionada, e que recebeu como resposta: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.” Uma reação divina ao interlocutor maledicente.

O que nos leva ao difícil papel do mediador. É sabido que, diante de um louco de palestra, ele tem poucas opções. Uma é dirigir-se a uma rota de fuga predeterminada, levando os braços ao ar e abandonando o público à própria sorte. A segunda é a solução escolhida por Emilio Fraia: a completa e resignada paralisação, seguida de conclusão precoce do seminário e aceitação da ruína. Numa variante pouco mais elegante, o mediador pode emitir um constrangido “Fica aí a pergunta”, e encerrar a palestra com certo ar de mistério.

A terceira saída é se fingir de louco e ignorar a intervenção por completo. A tática é defendida por oradores calejados como o jornalista Humberto Werneck. Durante um papo sobre seu livro O Santo Sujo, em Belo Horizonte, um rapaz pediu a palavra e não fez pergunta alguma – divagou sobre coisas que ninguém entendeu. “Acho que era doidinho, e não fiz mal em esperar que esvaziasse a piscina verbal. Levou vários minutos. O cara terminou sem ponto de interrogação. Agradeci a participação e fui ao perguntador seguinte”, conta, sem constrangimento.

A quarta e última reação possível é a mais artística e profissional de todas. No domínio dessa técnica estão mediadores experientes como o crítico de arte Alberto Tassinari. Ele diz ter muita paciência quando um louco desses se pronuncia, “pois sempre bate em algum lugar respondível e o diálogo fica tremulando entre sua racionalidade intrínseca e sua irracionalidade que vem de fora, fora de hora e quase inutilizando tudo”.

O professor Samuel Titan Jr., da usp, é do mesmo time. “Meu louco favorito começa pedindo para fazer uma colocação e embarca imediatamente na autopromoção, que pode ser pseudoacadêmica, pseudoliterária ou de fundo ressentido (nas variantes de raça, sexo, classe, opção sexual ou todas as anteriores)”, revela, com a sabedoria advinda da experiência.

Nesses casos, ele recomenda que a única saída para se livrar da situação é “responder alguma coisa que não tenha nada a ver com o que ele disse e que tenha alguma coisa a ver com o que você tinha tentado dizer, tudo isso olhando no olho da criatura e usando cá e lá umas palavras difíceis, que é pra ver se o bicho se intimida – em geral, nem um pouco”.

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É preciso encarar essas coisas filosoficamente, pondera Titan, que há poucos meses teve que enfrentar um belo exemplar da espécie.

O episódio ocorreu em 25 de março, na Casa do Saber, em São Paulo, num debate sobre ensaísmo. Estavam presentes o arquiteto Guilherme Wisnik, o artista plástico Nuno Ramos, Matinas Suzuki Jr. e, como mediador, Samuel Titan Jr.

A gravação em vídeo do colóquio é uma verdadeira obra-prima tragicômica. Por um feliz acaso, a câmera permanece focada nos quatro palestrantes durante a longa peroração de uma moça da plateia, que deve ter tomado fôlego antes de se levantar. Cada um dos intelectuais supracitados reage à sua maneira, coçando a cabeça, esfregando o nariz, olhando pra cima e tentando desesperadamente manter a compostura diante de ocorrência tão alarmante.

A intervenção se dá em dois tempos. No primeiro, que dura quase cinco minutos corridos, a moça expõe a sua verve: “A minha pergunta é sobre lugares e fronteiras”, inicia, num tom didático que pressupunha prévia reflexão sobre o tópico. “Eu vejo o ensaio como um espírito livre do pensamento expresso na forma escrita. Então acho que ele merecia um lugar de destaque, mas pelo que eu vejo da discussão, do debate entre vocês, há uma questão do lugar e das fronteiras, quando se fala num lugar chamado ‘entre nós’, ou quando se fala no Brasil, no mundo e, indo mais além ainda dessas fronteiras, na própria realidade.”

Dominado por um compreensível reflexo instintivo, Nuno Ramos passa a beber água compulsivamente. Samuel Titan alterna vigorosas coçadas de cabeça a uma distraída extração da pele ao redor das unhas. No coração de todos, a esperança de que a pergunta não tardará. A moça prossegue: “Eu vejo o ensaio como esse espírito livre do pensamento escrito porque ele vai além do pensamento escrito, chegando na realidade, com toda essa liberdade de conexões intertemas, e não só temas intelectuais ou conceituais ou acadêmicos, mas os próprios acontecimentos da realidade.”

Curiosamente, os quatro palestrantes decidem apoiar-se no cotovelo esquerdo, recostam-se nas cadeiras e cruzam os braços, como que tentando se defender da avalanche de conceitos que lhes são atirados impiedosamente.

E a moça vai em frente: “Então vejo uma maneira de resolver esses dilemas, essas questões que foram apresentadas, e me atendo ao que foi debatido entre vocês, que os ensaístas deveriam eles mesmos se colocar como espíritos livres.”

Sublinhe-se que ela faz referência à discussão e promete se ater ao que foi debatido, como se procurasse despistar a audiência. Dito isso, segue em frente: “Criar como que uma onda, o ensaio como uma pedra que cai na água e gera ondas não só daquilo a que ele se propõe, mas indo além. Indo além da própria subjetividade de quem escreve, ou do próprio arsenal de conhecimento acadêmico restrito, então o próprio ensaio brasileiro precisa adotar a postura de quebrar essa fronteira e se colocar como um ponto de convergência de forças que estão presentes no mundo hoje, tanto politicamente, como literariamente, cientificamente, artisticamente.”

Depois daquela peroração sem perguntas, Samuel Titan interrompe a moça e faz o que pode para encaminhar o debate. Os palestrantes comentam uma suposta “zona de conforto” no ensaísmo brasileiro, termo que a moça citou a esmo, dentro de um contexto só dela. O debate parece que vai engrenar. Que nada: num momento de deslize do mediador, a moça da plateia leva a melhor e consegue retomar o raciocínio: “Tenho visto coisas riquíssimas”, ela interrompe, e torna a abusar de advérbios: politicamente, literariamente, cientificamente.

É o segundo momento de sua dissertação, quando, em resumo, ela conclui que é preciso cultivar um ensaio “que também se dilui, também luta sub-repticiamente. Tem que haver uma coragem de sair da zona de conforto, quebrar essas fronteiras pra conseguir criar novas fronteiras, realmente fazer diferença na realidade”. Assim é encerrada a sua fala e, com ela, o debate.

De tanto ver Nuno Ramos bebendo água temeu-se que ele pudesse ter uma congestão.

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A lenda é difusa, mas deve ter ocorrido nos anos 60, durante uma aula do professor Bento Prado Jr., na rua Maria Antônia. Terminada a explanação, em que o docente citou o filósofo Plotino várias vezes, um aluno respeitosamente levantou a mão e disparou: “Com licença, professor. Esse Plotino aí não seria o Platão, não?” Ao que o mestre respondeu: “Não, cretão.”

Como prova de que os tempos mudam, mas os loucos continuam, o escritor Antonio Prata relembra um doido recente da usp. Sua alcunha: Santo Agostinho. “Era um cabeludo, barbudo, meio sujão, sempre chegava com uns jornais que a gente não sabia se estava lendo ou se tinha dormido com eles”, descreve. O sujeito tinha lido uma única coisa na vida: Santo Agostinho. “E não importava qual fosse a aula, não importava quanto tempo ele tivesse que esperar, em alguma hora ele achava a ligação. Não fazia uma pergunta, ele vomitava: “Professor, professor, isso aí que você está falando de – Descartes – Platão – Adorno – neo-liberalismo – assentamento – greve – filtro solar – não tem a ver com aquele conceito do Santo Agostinho?”

É o louco monotemático, de tendência obsessivo-compulsiva.

Vale observar que nem as grandes personalidades estão imunes ao ataque verbal de um desatinado espectador. Conta-se que, durante uma reunião da esquerda latino-americana em Paris, na época das ditaduras militares, um louco de palestra investiu contra o escritor Mario Vargas Llosa. Da plateia, um barbudão levantou e vociferou: Mientras Obregón se moria en la selva por el pueblo peruano, tu, que hacias?

O público silenciou. Sem se abalar, Vargas Llosa respondeu que dava aulas de literatura espanhola numa universidade. E devolveu a pergunta: Y tu, que hacias?

Yo tenía la hepatitis, disse o barbudão.

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Uma categoria popular é a do louco lírico. “É o cara que, a todo custo, quer ler um poema, um conto, o primeiro capítulo de um romance. Já aconteceu de pegarem o microfone da minha mão e saírem soltando o verbo”, disse o escritor Marcelino Freire. Para ele, os poetas são os piores: estão sempre pedindo a voz.

O cartunista Laerte aprecia em particular o louco superespecialista, que conhece o seu próprio trabalho melhor que você, e aponta incoerências e contradições no que acabou de ser dito. Esse tipo pode trazer proventos vantajosos e é até possível forjar um deles para atuar em sua própria palestra – o sujeito levanta a mão e diz que certamente naquele trecho você fez uma referência velada à noção de witzelsucht tal qual é discutida em Heidegger. Gênio, grande pensador, você emite um “arrã” de modéstia e segue para a próxima pergunta.

Para o crítico Rodrigo Naves, que ministra um curso livre de história da arte em São Paulo, os doidos mais comuns são os carentes, que se põem a falar de seus problemas afetivos, existenciais, mercadológicos. “Tem um oriental que já vi se pronunciar em três ocasiões diferentes”, conta, ele mesmo um ocasional louco de palestra, do tipo agressivo, se bem que em recuperação. Houve uma vez em que Naves se ergueu da cadeira e, indignado com a opinião do palestrante, disse: “Não, não, não, não. Não, não, não”, como só um bom profissional do ramo conseguiria exprimir.

Há um subgênero de louco latente que, no entender do jornalista Elio Gaspari, é aquele que vai para as conferências, ouve tudo com atenção, mas o negócio dele é a comida oferecida ao final do evento. “Conheci um elegantíssimo, nos Estados Unidos, que ia de terno jaquetão. A piada era que um dia ele faria uma pergunta recitando todas as palestras que ouvira”, conta.

O mais recente registro formal de um louco de palestra ocorreu no último dia 10 de agosto, após um bate-papo com os cartunistas Gilbert Shelton e Robert Crumb, em São Paulo.

A intervenção abilolada saiu nas páginas do Estado de S. Paulo, registrada por Jotabê Medeiros: “Um maluco gritou lá de cima do mezanino perguntando qual seria a personalidade morta que Crumb elegeria para tomar uma cerveja consigo.” Crumb retrucou: “Não tomo cerveja com gente morta. Na verdade, nem tomo cerveja.” Em outro momento da noite, o cartunista pediu que um fã dominasse seus ânimos. “‘Shutupfuckoff!’, rosnou, e o menino riu.”

Bem-aventurado é o louco anônimo, o louco voluntário, o que se levanta indômito no meio da palestra e parte rumo à consagração. Amaldiçoadas sejam as perguntas por escrito, as regras contra a manifestação do público, o apupo impaciente, a placa de aplausos obrigatórios, as pessoas que jogam tomates em quem está atrapalhando o andamento da coisa.

Amaldiçoado seja o antropólogo Claude Lévi-Strauss, que no livro Minhas Palavras agradece aos alunos por suas reações “mudas, mas perceptíveis” que lhe permitiram desenvolver o pensamento sem grandes atropelos.

Viva aquele que comparece a palestras apenas para matar o tempo, e que ainda assim não perde a chance de se expressar, pois que é interessado em dividir suas opiniões com os outros seres. Viva a falta de noção, de vergonha e de respeito às autoridades presentes.

Todos têm um louco de palestra dentro de si, esperando para aflorar. Somos apenas reprimidos pelos grilhões da compostura, da sanidade mental e da idade adulta, o que nos impossibilita de protagonizar, em conferências, grandes momentos da história da argumentação humana – como quando, na Flipinha de 2005, um ouvinte de 5 anos de idade levantou a mão e perguntou ao escritor Luis Fernando Veríssimo: “Você gosta de suco de uva?”

Comendador Ronnie Von

Posted: 26th setembro 2010 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
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Ronnie Von, 66, é uma figura peculiar. Até pouco tempo atrás, as novas gerações mal sabiam que “Von” se dizia “Fon” e que ele era mais do que um sujeito arrumadinho que abrilhantava as noites da salada promovidas pelas associações de bairro.

Ronaldo Lindenberg Von Schilgen Cintra Nogueira foi ídolo da juventude nos anos 60. Descoberto por Agnaldo Rayol, tinha um cabelo chanel de príncipe, os olhos verdes, cantava iê-iê-iê romântico e fora cadete da aeronáutica.

Mais tarde virou psicodélico e compôs o clássico “De Como Meu Herói Flash Gordon Irá Levar-me de Volta a Alfa do Centauro, Meu Verdadeiro Lar”. Foi caindo no esquecimento até 2005, quando começou a apresentar o “Todo Seu” (Gazeta, seg. a sex. às 23h).

Hoje é amplamente reconhecido por suas piscadelas marotas e por se referir à espectadora como “você, bonitinha que está assistindo”, nessa atração de variedades que mescla entrevistas, musicais e gastronomia.

O “Todo Seu” tem uma hora e meia de duração e é voltado para as mulheres, “mas com toque masculino”. Destaca-se pelas afáveis conversas sobre vinho, decoração, comportamento e, sobretudo, pela extrema polidez do anfitrião, que usa a palavra “bumbum”.

Uma de suas grandes virtudes no papel de comunicador é saber lidar bem com as dúvidas do espectador. “Isso significa que sou gay?”, perguntou um moço, angustiado. “Significa”, responde Ronnie Von, passando para a próxima questão.

O apresentador é daqueles que não se referem à velhice, mas diz que “está jovem há mais tempo”. Nas entrevistas, costuma declarar que o assédio hoje é maior do que nos tempos de galã.

Ele também usa a palavra “intróito” de forma corriqueira e diz que “este beijo é extensivo a todos”, quando se trata de cumprimentar uma trupe de dançarinos de flamenco. Em vez de declarar: “vamos encher o bandulho”, prefere afirmar que irá dar “um fim digno” a determinada iguaria. Não raro, um convidado recorrente é chamado de “useiro e vezeiro deste humilde programa de tevê”.

Além disso, Ronnie é apaixonado por botânica, apreciador de charutos, acha que o sapato é “fundamental para a feminilidade” e – o melhor – possui o título de Comendador em Biritiba Mirim.

Colecionadores de entulho

Posted: 19th setembro 2010 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
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No dia 7 de setembro, o canal A&E estreou o primeiro reality show de horror da televisão: “Hoarders”, que em português ganhou um título mais genérico: “Obsessivos-compulsivos” (ter. às 22h).

Quem, a julgar pelo título, aguardou ansiosamente a exibição, afofou as almofadas três vezes e preparou-se para ver um programa sobre germofóbicos (ou metódicos, ou repetidores) deve ter sofrido um grande choque. As cenas eram apavorantes.

“Hoarders” ou “colecionistas” são os acumuladores compulsivos de tralhas, pessoas incapazes de se desfazer dos objetos mais inúteis. É gente que junta cadarços puídos, latas vazias, tábuas, jornais, disquetes e até anéis de latas de refrigerante.

Afinal de contas, “quem guarda tem”, dizia a minha tia Lucila. “Ratos”, eu completo. Os dois casos do primeiro episódio são de tragédias domésticas, como o casal que perde a custódia dos filhos por conta da insalubridade do lar e a esposa que fratura o braço e sofre um ataque cardíaco por culpa da tranqueira do marido.

Uma das justificativas mais usadas pelos entulhadores é o valor sentimental, mesmo que seja de uma folha em branco. Durante o programa, um sujeito levou quatro horas para examinar uma caixa em busca de coisas para descartar. Desistiu.

São discípulos modernos dos irmãos Langley e Homer Collyer, que, nos anos 40, acumularam 180 toneladas de lixo (ou 163 toneladas cúbicas) no sobrado onde moravam, no Harlem. Entre os objetos guardados “por precaução” estavam candelabros, carrinhos de bebê enferrujados, máquinas de raios X, pianos de cauda, automóveis, mofo e 3 décadas de todos os jornais de Nova York.

Homer era cego, mas Langley estocava os periódicos na esperança de que um dia pudesse lê-los. Além disso, Homer era paralítico e dependia do irmão para alimentá-lo.

O fim dos Collyer condiz com a sina dos entulhadores da série, embora em nível extremo: impossibilitados de andar pela casa, passaram a cavar túneis por entre o lixo e fazer andaimes sobre as pilhas. Um dia, Langley tropeçou e foi soterrado. Seu corpo foi encontrado a três metros do irmão, que morreu de fome, mas foram necessários 19 dias de trabalho para chegar até ele, retirando as 100 toneladas de lixo que os separavam.

Histórias que vieram para ficar

Posted: 14th setembro 2010 by Vanessa Barbara in Clipping
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Revista Psicanalítica
14 de setembro de 2010

por Eduardo de Almeida

Um livro-reportagem sobre rodoviárias não parece exatamente interessante. Só que, no caso de O livro amarelo do terminal, o preconceito acaba na primeira página. Até porque não se trata de um livro comum – o projeto gráfico, desenvolvido por Elaine Ramos e Maria Carolina Sampaio, da editora Cosac Naify, se destaca pela irreverência: impresso em papéis tão peculiares quanto aqueles dos bilhetes de viagem, fininhos, ele apresenta design sofisticado e intervenções ao longo do texto que propõem uma nova experiência de leitura.

Tampouco falamos de uma rodoviária qualquer, mas do Terminal Tietê, o segundo maior do mundo, que se conecta a milhares de cidades do Brasil e da América do Sul. Para completar, não foi escrito por alguém que telefonou e fez uma entrevista de trinta minutos com o assessor de imprensa, mas pela então estudante de jornalismo Vanessa Barbara, que passou meses visitando o local, conhecendo pessoas, infiltrando-se no espaço físico e espiritual, observando, vivenciando e anotando tudo num bloquinho cor-de-rosa. O resultado é um apanhado interessantíssimo de “causos”, selecionados de algo muito maior, que se confunde com a própria cidade de São Paulo e seus habitantes.

Quando a gente se dá conta, já se foi meio livro e ainda não deu vontade de largar.

Vanessa escreve com humor, ironia e clareza. Soube encontrar a alma da rodoviária naqueles que trabalham ali ou que apenas transitam, que aguardam ansiosamente parentes e amigos, que suam a camisa para comprar uma passagem e celebrar o Natal com a família a mais de três mil quilômetros da capital. Depois, ela cruza isso tudo com trechos de música, literatura e propaganda, enriquecendo a sensação apreendida durante a exploração.

São relatos de amor, luta e persistência, vividos por um povo que não conhecemos a fundo, mas do qual fazemos parte. Em outras palavras, a história do Terminal Rodoviário do Tietê é também a nossa história.

Os capítulos centrais, impressos em folha de papel carbono, são frutos da pesquisa que a autora realizou com mais de sessenta reportagens da época da implementação, além de documentos, entrevistas e muita cultura popular. Atravessam a ditadura militar, resgatam nomes icônicos como Paulo Maluf e Romeu Tuma, dá vontade de rir e de chorar, tudo ao mesmo tempo. É impressionante por diversos motivos: pelos valores astronômicos gastos na construção e reforma, pelo jogo político, pela desordem, pelos conflitos de interesses, pelos debates arquitetônicos, pelas promessas mentirosas, pelo povo ficar sempre em segundo plano. Impressionante também por ter dado certo no final, coisa que nem Nostradamus previa e nem Freud explicaria. Típico de Brasil.

Desde que o livro foi escrito, em 2003, até a publicação, em 2008, muita coisa mudou. Novos capítulos surgiram e outros terminaram, não dá para saber com certeza ou atualizar tantos dados. Assim, o jornalismo-literário adquire aquela onipresença da ficção pura, coisa que não o anula, claro, apenas fornece novos valores. O capítulo seis, por exemplo, torna-se um conto perfeito, sem tirar nem pôr. Difícil dizer o que tem de reportagem. Tudo e nada ao mesmo tempo. Delícia de ler.

Vanessa Barbara provou que, com perspicácia e boa redação, até mesmo um assunto pouco atrativo como a história de uma rodoviária pode se transformar num livro muito bacana, que informa e diverte inclusive os leitores pegos de surpresa, como eu. A obra carrega adjetivos que muitos romancistas vêm procurando, normalmente em vão: inteligência, simplicidade e relevância. Os prêmios recebidos em 2008 e 2009, com destaque para o Jabuti, foram mais do que merecidos. Esse livro amarelo não tem como não agradar.

Trechos (ou aperitivos):

“A rodoviária do Tietê é uma cidade de coisas perdidas. ‘O caça-níqueis está aqui há dois anos’, informou a funcionária, mostrando uma lista que enumerava o esquecimento de espingardas (duas), motocicletas (duas), um banco de kombi, uma máquina de serrar azulejos, camas, muletas, motores de moto, pneus, dentaduras e uma mão mecânica. ‘Às vezes vem gente procurando amigos desaparecidos. Mostram a foto e perguntam se já encontraram’, conta Andréia, que trabalha no setor de Achados e Perdidos.” (p. 11)

“– Moça, onde é que eu faço inscrição para ir pro Iraque?
– … Desculpe?
– Pro Iraque. Eu quero ir pra guerra, buscar o meu filho.
– Ahn… senhora, nós não oferecemos esse tipo de serviço.
E a mulher foi embora, bastante brava com a incompetência das atendentes. Ora, que disparate. Como, não sabe responder a pergunta? I-N-F-O-R-M-A-Ç-Õ-E-S – é o que está escrito na placa.” (p. 37)

“Escreveu todas as instruções mais uma vez. Agora, em minúcias. ‘Ir até a rampa tal, comprar um bilhete de integração, entrar no metrô com destino a…’ Ele saiu com o papelzinho estendido na palma da mão, como se fosse uma bússola. No final do dia, antes de voltar para casa, ainda passou no balcão, agradeceu pelas informações e comprou um pão de queijo para Rosângela.” (p. 45)

“Certo dia, ele sentiu cheiro de fumaça e viu uma luz forte vinda de dentro de um dos armários Malex. Chamou um segurança e eles passaram algum tempo pensando, tentaram imaginar o que havia ali, concluíram que era muito suspeito e decidiram abrir o armário. Lá dentro, havia nada menos que uma vela acesa. ‘U-m-a-v-e-l-a-a-ce-sa! Pode?’
– Daí o segurança foi lá e fez ‘fuuuu’: apagou a vela. Então veio a mulher dona da vela e fez o maior fuzuê.” (p. 93)


Eduardo de Almeida é publicitário, crítico e historiador da arte. Autor do site www.artefazparte.com.