Tevê tormento

Posted: 12th setembro 2010 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
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Desde o início do ano, os resignados passageiros do 508-L (Aclimação – Term. Princesa Isabel) vêm acompanhando a vida de gente como Alcino, Domênico e Valvênio, insignes personagens de novelas da Globo.

Em São Paulo, já são 300 ônibus com televisões da Bus Mídia, que exibem uma programação em loop com resumos de novelas, notícias frias, propagandas e receitas, tudo fornecido pela emissora carioca.

Uma das táticas da empresa – que disputa o mercado com a BusTV e a TVO, além da TV Minuto, do metrô – é instalar monitores em pontos estratégicos dos coletivos, a fim de evitar a dispersão dos passageiros, que, cruz-credo!, podem querer olhar pela janela ou puxar assunto com o cobrador.

Além disso, a frota é composta só por veículos com piso baixo total, o que proporciona “um ganho de espaço significativo em relação aos demais ônibus, permitindo acomodar 15% a mais de passageiros. Isso significa mais pessoas expostas à sua mensagem”. Os tais coletivos são como trens de carga em que a maioria viaja de pé e as janelas ficam lá no alto, fora do alcance do pulmão médio do brasileiro. Assim fica mais difícil oxigenar o cérebro, presume-se.

Se considerarmos que a média de permanência por viagem é de 45 minutos e que “a audiência é garantida”, pois não há para onde fugir, temos um público compulsório de 255 mil pessoas por dia.

É gente que vai chegar em casa sabendo que “Jardel fica desesperado ao se deparar com Clotilde” (novela das seis), que “Help diz que vai revelar a identidade de Victor Valentim” (das sete) e que “Fred usa Candê para difamar Bete para Agostina” (das oito). Gente que sabe toda a biografia de Ariclenes, Sinval e Berilo, e que não se espantou quando Maureen contou a Deodora que Nelinha era sua irmã.

São passageiros atônitos, hipnotizados, presos no trânsito e prensados entre um senhor rotundo e uma moça que dorme em pé, numa situação em que só o que resta é assistir pela nona vez uma receita de brigadeiro trufado.

Se é lícito infligir a civis inocentes tamanho suplício, que ao menos o governo forneça um controle remoto por passageiro, a fim de que possamos trocar de canal, desligar a tevê ou acelerar a viagem.

Já sei! As Cruzadas

Posted: 5th setembro 2010 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
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Entra em cena a atriz Giovanna Antonelli com uma malha preta. De olho no teleprompt, ela desata a falar sobre a realidade rural mexicana e a condição da mulher no início do século. Ou sobre a imigração argelina em países francófonos.

Está para começar o “Cine Conhecimento”, do canal Futura (seg-sáb 0h30, dom., 1h30), um programa deslocado no tempo e no espaço das grades de programação.

Primeiro, porque é veiculado de madrugada, naquele horário em que tudo é engraçado – logo após a hora em que nada faz sentido e antes daquela em que tudo faz. Segundo, porque a programação é imprevisível e comporta longas-metragens dos mais disparatados: entre os títulos já exibidos estão “Gosto de Cereja” (Kiarostami), “Fausto” (Svankmajer) e “George Washington Dormiu Aqui” (Keighley).

Há espaço tanto para as produções de Cingapura quanto para comédias colorizadas da década de 40, ou musicais em que Debbie Reynolds usa uma touca de natação, interpretando uma bola de futebol.

A grande graça do programa, porém, não são os filmes em si, mas os comentários proferidos pelas apresentadoras, que não se limitam a dar a sinopse, mas também detalham “as dimensões históricas, políticas e estéticas das obras e dos contextos que elas retratam”.

Na época em que foi lançado, em 1997, junto com a emissora, o “Cine Conhecimento” era mais didático e trazia curiosas interpretações marxistas acerca de filmes tolos. Hoje, infelizmente, os comentários são mais contidos.

Ainda assim, o texto pode ganhar ares surreais. Sobre “Fausto”, Leandra Leal afirma que “o mundo não se basta na razão e no conhecimento”. Sobre “Anel de Fogo”, Giovanna Antonelli destaca a gravidade dos incêndios nas matas. Em “O Mundo Perdido”, o diretor “trata com complexidade os elementos antagônicos aos personagens, como os homens-macaco”.

A grande diversão dos espectadores é adivinhar, com o filme já começado, quais foram os tópicos abordados na introdução e que raios a película acrescentaria de edificante aos que têm sede de saber. “Mercantilismo!”, arrisca um. “Choque entre gerações”, tenta outro. “Já sei! As Cruzadas”, conclui um terceiro, embora se trate de um filme mudo com temática marciana.

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Piauí n. 48
Setembro de 2010

por Vanessa Barbara e André Conti

Ascensão, glória e traição da banda que imortalizou Birigui

Nos primeiros meses de 1992, dois fenômenos brasileiros do pop rock se consolidaram. De um lado, a MTV Brasil, lançada no início da década, virou mania entre os jovens. De outro, a banda de thrash metal Sepultura, nascida em Belo Horizonte oito anos antes, estourava no exterior e, num ensurdecedor ricochete transoceânico, influenciava novas bandas Brasil afora. De uma hora para outra, qualquer pivete que dedilhasse a escala de dó maior na pianola de brinquedo queria fazer um videoclipe para anunciar, em estrídula e desafinada voz, que sabia cantar em inglês e era questão de tempo até arrebentar no exterior.

“A gente achava isso ridículo”, lembrou o paulistano Paulo D’Amaro, 42 anos, cuja marca de nascença no peito lhe valeu o apelido de Paulo Mancha. “Os produtores pegavam uns moleques da Zona Leste que não sabiam nem falar the book is on the table e achavam que iam conquistar o mundo.” Esse estado de coisas o deixava consternado.

Certa noite, comia panetone na cozinha de casa quando teve o estalo de Mazzaropi. Virou-se para o amigo Paulo Bife e anunciou: o negócio era fundar uma banda que cantasse em caipirês para fazer sucesso no interior. “Uma espécie de bairrismo positivo”, explicou ao amigo.

A ideia foi corajosamente aceita. Nascia o Tubaína do Demônio, de inspiração caipira-metal-pauleira, cuja fama no hinter-underground paulista se espalhou em função dos versos que declaravam amor açodado aos burgos mais recônditos e pitorescos das terras bandeirantes. Na obra de Mancha, Bife et alii, elogios grandíloquos são feitos a cidades como Jaú, Marília, Piracicaba, Jundiaí, Embu, Sorocaba, Catanduva, Cabreúva, Boituva, Presidente Prudente, Cajuru e Birigui, sendo reservada a esta última um lugar de honra.

Como exemplo, tome-se Bauru vs. Big Mac, um dos hits do grupo. Ela provavelmente registra a única ocorrência do adjetivo “paiero” na Música Popular Brasileira. Trata-se de uma gíria paulistana que quer dizer “loroteiro”. A letra, composta por Bife e Mancha, diz:

Não aguento mais americano paiero
Contando mentira pro mundo inteiro
Povinho metido e muito picareta
Acham que são os donos do planeta.

O Eu lírico segue enumerando as estultices dos ianques, como o embuste dos irmãos Wright e a crença de que a nossa capital é Buenos Aires. A canção tem dois trocadilhos geniais. O primeiro, nos versos:

Se um Big Mac os faz felizes
É porque não conhecem Bauru…
Jaú, Itu, Embu, Jarinu,
Arandu, Baguaçu, Cajuru, Piraju.

O segundo calembur se agiganta qual um Borba Gato para novamente azucrinar os americanos:

Acham que já viram tudo o que é grandeza
Porque não conhecem Itu.

E assim segue a letra, salpicando rimas ao sabor de um mapa rodoviário.

***

A musa inspiradora da banda, aquela que sinceramente lhe fala ao músculo cardíaco, entretanto, não é nenhuma dessas cidades. Nem é a Marília de “Jesus mecânico de Marília / envenenou minha Brasília”, tampouco a Itanhaém de Vem, neném, pra Itanhaém. É Birigui, a capital nacional do calçado infantil, a 500 quilômetros de São Paulo. “Birigui salvou a música, salvou a banda”, conta Mancha, completando, com sentimento: “É um lugar mágico.”

Explica-se: Bife e ele estavam imersos nas angústias parturientes da primeira letra da dupla – O diabo é português, inspirada na lendária figura de Roberto Leal, o demônio luso e loiro de A dança do tiro liro –, quando empacaram no verso “Minha alma eu perdi”. Como prosseguir Era um beco sem saída. Ficaram num silêncio espesso como as brumas de agosto no Mandaqui. Mancha arriscou: “Devia ter ficado…” Foi o que bastou para os dois emendarem “…em Birigui!”. A partir de então, todas as músicas do Tubaína faziam ao menos uma menção ao município.

Embora não sejam nativos da autocognominada Cidade Pérola, os integrantes da banda têm uma história de consagração em Birigui. “A gente nunca foi merda nenhuma em lugar algum, mas em Birigui a gente era celebridade”, orgulha-se Mancha.

Em dezembro de 1997, fizeram o primeiro show na cidade. Vieram 2 mil pessoas, que se espremeram na praça Doutor Gama, logradouro onde, assinale-se, os moradores esconderam uma cápsula do tempo, a ser aberta em dezembro de 2011. (O conteúdo do tesouro é desconhecido. “Está lá, escondida num cantinho da praça”, informou o músico. “Aliás, tem que avisar porque senão eles podem se esquecer de abrir.”) Mancha não tem dúvidas em dizer que aquele foi um dos shows mais legais da banda. Compara o frenesi biriguiense à eletricidade produzida por uma estrela pop internacional que, vez por outra, rebola numa dessas Copacabanas da vida. “A gente virou pop star.

Na esteira do sucesso biriguiense, o Tubaína do Demônio passou a ser requisitado para shows no interior paulista, todos patrocinados pelo Sesc. “Teve um ano em que tocamos em todas as etapas do Campeonato Paulista de Biribol!” – modalidade desportiva criada nos anos 50 e oficializada em 1968 pelo advogado Dario Miguel Pedro, o qual julgou que era hora de sistematizar, de uma vez por todas, as regras do vôlei dentro de piscina. Por uma dessas coincidências que só o padre Anchieta explicaria, o doutor Miguel Pedro era de Birigui, razão pela qual o novo esporte passou a se chamar biribol. É o que ensina Mancha, e a informação, espantosamente, procede. A obra do Tubaína faz repetidas e pertinentes alusões ao esporte, como se pode verificar no verso: “É gratificante jogar o biribol”.

Voltar para Birigui seria certamente finalista num campeonato para escolher a música mais nostálgica de todo o vasto cancioneiro paulista. Lançada em 1993, foi gravada só em agosto de 1997, e imediatamente galgou as paradas de sucesso, virando hit na região de Araçatuba e arredores. A letra fala de um Homo biriguiensis que foi morar na capital.

Mas nesta cidade não encontro tubaína
E todo santo dia é barulho de buzina.

Em seu exílio, prossegue o desabafo da sofrida alma biriguiense:

A saudade vem, nunca ameniza
E a Rádio Pérola aqui não sintoniza.

Depois de elencar outras tantas melancolias da metrópole, o bom homem decide:

Mas aqui não fico nem mais um segundo
Vou pra Birigui que é o melhor lugar do mundo, yeah!

Wando não gravou, mas provavelmente porque é mineiro de Cajuri.

***

Em 2001, para prestigiar o Bandeirante Esporte Clube, time biriguiense, a banda fez um show antes da partida final da Copa do Interior de futebol do estado de São Paulo. Foi no Estádio Municipal Pedro Marin Berbel, o popular “Pedrão”. Um defeito na bateria eletrônica, que cismava em desandar, obrigou os músicos a tocarem 32 vezes a Marcha do Leão da Noroeste, levando a torcida ao delírio. O time foi campeão e o resto é História com agá maiúsculo.

Uma História, é triste registrar, que não é feita só de lauréis e apoteoses. O início das vacas magras correspondeu ao advento de cinco rapazes de Guarulhos. Em 1995, o Brasil tomou conhecimento dos Mamonas Assassinas, banda de rock debochado que em pouco mais de um ano venderia 2,3 milhões de cópias do CD homônimo, o único que gravariam em estúdio. “A gente conheceu os Mamonas em 1993, quando eles ainda eram a Banda Utopia e viram o nosso show no Aeroanta”, contou Paulo Mancha.

O músico achou as letras cômicas do Mamonas suspeitamente parecidas com as dele. Havia referências em comum, tanto nas letras como nas performances. O Tubaína, por exemplo, também descrevera gente que ia para o litoral fazer farofa a bordo de uma Brasília. Como o sucesso ofusca tudo – em certo momento, os Mamonas Assassinas chegaram a vender 50 mil discos por dia –, “a gente é que começou a parecer cópia deles”, recordou Mancha. Ele entrou em depressão por seis meses e até hoje não ouviu o disco dos rivais. “É uma coisa emocional, não racional”, concede. “Eu sei que eles não me copiaram de propósito e também sei que eram bons músicos, bem melhores do que a gente, além de terem um faro comercial que a gente não tinha. Eles foram naquilo que é sucesso – falar palavrão, piada sexista. Nosso humor é mais debochado, menos escancarado, não tinha como virar popular.”

É dessa época a abreviação do nome da banda. Tubaína do Demônio lembrava Mamonas Assassinas. Ficou Tubaína mesmo. A banda também sofreu uma reformulação. Desavenças afastaram Paulo Bife, substituído – como não? – por Américo Cebola. Aos dois se juntou Wagner Kawata, engenheiro civil cuja função era operar os botões de play e pause da bateria eletrônica. Kawata fora colega de Mancha na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo.

Em meados dos anos 90, Kawata mudou-se para o Japão, e a cidade onde se estabeleceu foi devastada por um furacão. “Aí a gente espalhou que não tinha sido furacão coisa nenhuma, era ele que tinha destruído tudo”, conta Mancha. Assim nasceu a canção Engenheiro doido, cujo refrão ricamente rima “que a todos mata” com “Wagner Kawata”. Procurado pela reportagem, Kawata, hoje um renomado profissional, não quis dar declarações, limitando-se a exclamar: “Nozes! Ainda existe essa música?!”

***

O próximo capítulo da saga tubainense, decerto o mais jururu, tem como locus Birigui, o que é crudelíssimo. Assim como aconteceu na relação de Dublin com James Joyce, a cidade que a banda cantara em versos pungentes os abandonou. Para início de conversa, com exceção do Sesc, todo mundo lhes deu o cano, inclusive a prefeitura. “Os caras chegaram a cancelar show sem avisar a gente”, lamenta-se Mancha. “Cansamos de levar calote de Birigui e ficamos extremamente putos com a cidade. Todo mundo quer roubar o Tubaína.”

A gota d’água foi a adoção de Birigui pelos humoristas Paulo Bonfá e Marco Bianchi, apresentadores do programa Rockgol de Domingo, da MTV. Segundo Mancha, o Tubaína mandou um CD para a produção do programa, que o adotou como trilha de fundo. Aos poucos, o charme da cidade foi se impondo, e os apresentadores passaram a incluir Birigui, “a Massachusetts brasileira”, nos seus comentários. De súbito, Birigui viu-se cortejada por gente mais famosa e decidiu dar as costas a quem sempre a prestigiara. O município se tornou (mais ou menos) célebre em todo o território nacional. Mas pouca gente sabe que a palavra “birigui” vem do tupi-guarani e significa “mosca que sempre vem”, já que mosquitos hematófagos de dimensões reduzidas empesteiam a região (até hoje).

Não satisfeitos em dar calote nos músicos, os biriguienses deitaram por terra os bravos homens do Tubaína, substituídos no altar da devoção popular pelos apresentadores da MTV. Para cúmulo do desencanto, em janeiro de 2005, Paulo Bonfá recebeu um convite oficial da cidade para desfilar em carro de bombeiros. Na ocasião, recebeu do prefeito a chave da cidade. “Eu juro, cara!”, vocifera Mancha, compreensivelmente indignado.

Procurado pela reportagem, Paulo Bonfá se fechou em copas e, talvez, tenha se abespinhado com as perguntas: declarou que não tinha “interesse em ajudar pessoas desconhecidas a se promover às minhas custas”. Sugeriu que escrevêssemos sobre temas de maior relevância.

Menos mal que um vereador de Birigui, que fez a Câmara Municipal aprovar uma moção de agradecimento à banda, em reconhecimento ao fato inequívoco de que, sem ela, o programa Rockgol jamais teria colocado o município no mapa artístico nacional. “Mas a chave da cidade não deram”, objeta Mancha. “Ou seja, a gente não entra mais em Birigui. Se quiserem nos rever, mandem o Bonfá abrir a porta.”

Quem saiu perdendo, indubitavelmente, foi Birigui: versos recentes do Tubaína não mencionam mais a cidade; foi substituída pelo bairro paulistano da Mooca.

***

O Tubaína passou os últimos anos em banho-maria devido à agenda atribulada dos seus integrantes. Na atual formação, a banda é composta por Américo Cebola (Américo de Almeida Filho, nos registros civis), 47 anos, professor de engenharia da UniSant’Anna; Galvão Chucruts (Ricardo Galvão), 23 anos, engenheiro e professor de rockabilly no The Clock Rock Bar; Felício Imprevisto (Luiz Felício Finotti), 46, técnico em informática; e Paulo Mancha, que cursou engenharia química, mas mudou de ideia e hoje é jornalista.

Mancha foi editor nas revistas Superinteressante, Galileu, Quatro Rodas e Época, na qual escrevia sobre ciência. Teve passagens insólitas pelos periódicos Náutica e Offshore. Recebeu menções honrosas no Prêmio Abril de Jornalismo e, em 1993, foi agraciado com o Prêmio Volvo de Segurança no Trânsito por uma reportagem sobre a falta de educação do brasileiro ao volante. Nos últimos tempos, abrilhantou a redação das revistas Terra, Próxima Viagem, Aviação em Revista, Viajar pelo Mundo e agora é editor-chefe das publicações Viajar (de turismo) e Voar (de aviação), atividade que conjuga com a de comentarista de futebol americano para o canal BandSports.

Essa última função causou espécie nos fãs mais extremados e ideológicos da banda. O autor da candente Bauru vs. Big Mac, o libelo paroquialista contra a empáfia americana, teria se rendido ao império ianque? Dezoito anos atrás, entre as inúmeras peculiaridades norte-americanas a serem espezinhadas, a canção incluía exatamente o futebol que se joga por lá:

Uma brincadeira de mão
Um monte de marmanjos se dando porrada
Correndo atrás de uma bola amassada.

Em defesa própria, Mancha alega que passou a gostar do esporte depois que compreendeu as regras. “Posso odiar os americanos, mas adoro esse jogo”, diz, sem pedir desculpas pela heterodoxia. Acrescente-se que poucos se dedicaram a decifrar todas as camadas significativas de Bauru vs Big Mac. A canção decerto critica o egocentrismo ianque, mas foram raros os que perceberam que o Tubaína também faz um comentário acrimonioso a respeito daqueles que, tão presos ao próprio umbigo quanto os americanos, embarcaram na sugestão de que Birigui é o centro do mundo. Nisso, que poderia ser chamado de megalomania caipira – uma das grandes especialidades do Tubaína – residiria a sátira mordaz do grupo.

Tome-se, a título de exemplo, uma canção polêmica, De Queluz eu não passo, manifesto anticarioca que em 1994 rendeu ao compositor uma ameaça de morte pelo telefone. Na letra, um sujeito apaixonado diz que faria tudo pela amada:

Por você eu subo as montanhas de Campos do Jordão
Por você eu nado de Cananéia a São Sebastião.

Tudo, valei-nos o padre Manuel da Nóbrega, menos socializar com “essa moçada ishperta” – leia-se, os cariocas. A balada termina com um cândido:

Oh, baby
Por você tudo eu faço
Mas de Queluz eu não passo!

(Para quem faltou a essa aula de geografia: na Via Dutra, Queluz é o derradeiro bastião Paulista antes da fronteira com o Rio.)

***

Arrumar um baterista é o principal obstáculo à continuação da banda. Também seria bom descolar um canto para tocar. E talvez retomar o patrocínio da Iwamoto Produtos Alimentícios, fabricante das pipocas Gasparzinho, que a cada show fornecia 300 pacotes do produto para distribuir à buliçosa plateia.

Até 2007, o Tubaína se apresentava mensalmente no Dinossauros Rock Bar, no bairro paulistano de Pinheiros. Na época, tinham um baterista de carne e osso, Felício Imprevisto, assim alcunhado por faltar seguidamente a compromissos devido a “um imprevisto”. Pararam de tocar justamente por isso: era impossível compor novas canções sem um baterista que comparecesse aos ensaios. “O baterista que não é chato, toca razoavelmente bem e está disponível é como o dragão na garagem do Carl Sagan: não existe”, ensina Mancha.

Mancha continua a ser o pilar da banda, o Domingos Jorge Velho a desfraldar a heroica bandeira das treze listras em plagas inóspitas. Até os últimos dias, era ele quem marcava as apresentações, divulgava o grupo e arcava com o prejuízo. Num determinado momento, chegou a tirar do próprio bolso 1 500 reais por show. Era uma produção grandiosa, que exigia palco, cortinas, figurino, camarim e cotonetes gigantes. Como apresentar o Rap do Império Romano sem uma toga de César? Trata-se de uma canção histórica, que narra a “parada que começou com a bronca de dois manos”, leia-se, Rômulo e Remo. Roma vira Império e, certo dia, acontece o pior: “Eles empataram César na escada da quebrada.” Ao perceber o fim, o Imperador se vira para Brutus e exclama a questão imorredoura: “Até tu, que era meu truta?”

Mancha desistiu de viver do Tubaína. “Quando lancei o primeiro CD, ainda tinha esperança de virar músico profissional, mas aí descobri como o mundo das gravadoras é nojento e decidi que aquilo não era pra mim”, diz. Chegou a participar de reuniões com grandes selos, mas os executivos queriam transformar a banda numa cópia dos Mamonas Assassinas. Diziam coisas como: “Vamos botar um vocalista bonitinho”, “Eu quero que vocês cantem essas músicas todas com sotaque nordestino”, “Botem mais palavrão nas letras.”

A saída foi desistir do estrelato e continuar a compor canções que incluem a palavra “queijadinha”, ou épicos como Deus e o diabo em Sorocaba, sobre uma partida de gol a gol entre o Criador e o Coisa-Ruim, que se cruzam em plena Vila Hortênsia.

É com essa verve, e com tremebundo amor à Terra de Piratininga, que o Tubaína prepara a sua volta. O show de reestreia será, é claro, em São Paulo, mais uma vez no Dinossauros Rock Bar, no dia 29 de outubro, às 22h22 em ponto. Estará presente até o baterista Luiz Felício Imprevisto (salvo se lhe ocorrer um imprevisto).

O Verão do Chibo – Canto dos Livros

Posted: 30th agosto 2010 by Vanessa Barbara in Clipping
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Canto dos Livros
30 de Agosto de 2010

por Rodrigo Casarin

Viram que contei no último post sobre minha ida à Bienal do Livro de São Paulo e falei dos livros que comprei? Pois bem, o primeiro que escolhi para ler foi O Verão do Chibo. Excelente opção. Leitura rápida, gostosa, que flui facilmente. Suas 120 páginas podem muito bem combinar com uma tranquila tarde passada numa rede, por exemplo.

Resumidamente, o livro narra a história de uma criança de férias, que percebe que as coisas já não são mais como eram antes. Muitos dos seus amigos não querem mais se divertir com as antigas brincadeiras. Os mistérios que os instigavam agora não parecem mais tão interessantes. O universo lúdico que criaram parece abandonado. E, o mais importante, seu irmão mais velho, o Chibo, não é mais a mesma companhia de outrora.

Mais do que uma boa leitura, O Verão do Chibo é uma excelente reflexão sobre o crescimento. A emoção presente nas passagens narradas e nos pensamentos da criança é de deixar o leitor, no mínimo, comovido.

O romance foi escrito a quatro mãos, duas de Emilio Fraia e duas de Vanessa Bárbara, uma das minhas escritoras preferidas dentre aquelas (e aqueles) que são considerados a nova safra da literatura nacional, e que já teve livro analisado e até deu entrevista aqui para o Canto dos Livros.

Os suricatos: poder e cobiça

Posted: 29th agosto 2010 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
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Se Fredo e Vito Corleone coçassem as costas com os pés; se Carmela Soprano comesse larvas de insetos; se Ray Liotta fosse o chefe da máfia de Kalahari e se Donnie Brasco tivesse o focinho pontiagudo, poderiam ser os protagonistas de “No reino dos suricatos”, série do Animal Planet que tragicamente parou de ser exibida no país.

Produzida pela Oxford Scientific Films, a novela estreou em 2005, misturando gravações de câmeras ocultas com uma narração essencialmente dramática. Para quem está por fora, suricatos são mamíferos de 30 centímetros de altura, da família dos mangustos.

A abertura da série tem um quê de “Maria do Bairro”: apresenta os personagens como “a rebelde Tosca”, “o intrépido Mitch”, “o pequeno e corajoso Shakespeare”, “o encrenqueiro Houdini” e “o vilão Hannibal”, todos eles animaizinhos ansiosos e alertas.

Ao longo da saga, o clã dos Whisker tem seu Michael Corleone, que no caso é uma suricata fêmea chamada Flower. A semelhança é clara: o especial “No reino dos suricatos: O começo” é praticamente uma refilmagem de “O poderoso chefão”, só que com suricatos. Em 75 minutos, mostra a ascensão e queda da matriarca guerreira, com direito a amores proibidos, expulsão da família e posterior redenção.

O filme parte do nascimento de Flower, “a escolhida”, e passa pela trágica morte de sua irmã Petal, numa cena de suspense que nada fica devendo aos grandes mestres do gênero. Introduz o andarilho Youssarian, galã da novela e membro do clã inimigo. “Uma coisa é preciso reconhecer: Youssarian é completamente sem noção”, diz o narrador, acerca das conquistas amorosas do efusivo mangusto. Pois ele tem um irmão, o lépido Zaphod, que acaba faturando a mocinha – visto que é justo, reto e polido. O antropomorfismo é tolo, mas isso não faz a menor diferença.

Como nos melhores filmes de gângsteres, os Whisker têm que disputar seu território com a família Tattaglia dos suricatos: os mesquinhos Lazuli, que são parentes do novo amor da heroína. A essa altura, quase ouvimos os heróis dizerem algo como: “Flower, você é minha irmã e eu te amo. Mas nunca fique contra a família de novo. Nunca”.

Então eles mordem as próprias patas e saem para caçar minhocas.

Perfil no blog Casmurros

Posted: 26th agosto 2010 by Vanessa Barbara in Clipping

Blog Casmurros
26 de agosto de 2010


Qual foi o primeiro livro que você leu e que teve impacto sobre você?
Foi uma coletânea de contos dos Irmãos Grimm, uma série de livrinhos de bolso bem pequenos e com as letras minúsculas, que traziam histórias atrozes como a das irmãs “Olhinho, Doisolhinhos, Trêsolhinhos”, que tinham cada qual a quantidade de globos oculares que apregoavam. Lembro de uns contos sobre uma moura demoníaca que ficava nua em cima de uma árvore segurando uma abóbora (?), do menino teimoso que morreu e seu bracinho ainda tentava sair da terra, e, enfim, de uns contos de fadas que envolviam salvar princesas mediante a execução de tarefas sem sentido, tipo matar uma cobra de três cabeças e pegar um ovo dentro do mar.

Alguma vez você considerou a hipótese de não ser escritora?
Claro! Eu quis ser caixa de supermercado (botões que abrem gavetas!!), secretária (adoro ordem alfabética), dançarina, astronauta, antropóloga, poeta e jogadora de vôlei. Entre outras coisas. Até hoje ainda finjo ser várias coisas, como tradutora, repórter, cronista e revisora de legendas de filmes em polonês.

Na sua opinião, todas as histórias já foram escritas ou ainda é possível criar novas histórias? Há novas formas de contar histórias?
A história sobre a menina que morreu de tanto beber água ainda não foi escrita. E a do homem que não tinha nuca (se bem que o Saramago…). Sempre há novas formas de contar histórias já conhecidas. A minha piada preferida, por exemplo, é a seguinte: “Era uma vez um porquinho que tinha uma perna só. Ele foi se coçar e caiu.” Numa das mais recentes versões, o referido suíno foi tratar do eczema, encontra dificuldades no consultório por questões de carência do plano de saúde, resolve lutar pelos direitos dos deficientes, se apaixona por um quilo de presunto etc.

No que você está trabalhando agora?
Estou trabalhando numa graphic novel (HQ) chamada “A Máquina de Goldberg”, em parceria com o Fido Nesti, que será publicada pela Companhia das Letras. Terminei um infantil chamado “Endrigo, o Escavador de Umbigos”, em parceria com o Andrés Sandoval, que sairá pela editora 34. E, por fim, estou escrevendo um romance, em parceria comigo mesma, chamado “Noites de Alface”.

Quem são os seus escritores favoritos com mais de quarenta anos?
Eles podem ter muito mais de 40 anos? Eu gosto de Gustave Flaubert, Jorge Luís Borges, Marcel Proust, Franz Kafka, Lewis Carroll, Lawrence Sterne, Júlio Cortázar, J.D. Salinger, Edgar Allan Poe; de Rubem Braga, de Carlos Drummond de Andrade, de Luis Fernando Verissimo, dos jornalistas literários (Michell, Talese), de HQ (Will Eisner, Fone Bone, Spiegelman).

*Ilustração: Nathália Lippo.

Uma catraca para a fama

Posted: 22nd agosto 2010 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
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Foi por razões acadêmicas que me propus a resenhar o programa “Busão do Brasil” (Band), tendo publicado um livro-reportagem sobre o Terminal Rodoviário do Tietê (O Livro Amarelo do Terminal), e ciente de minha condição de especialista em questões de transporte coletivo.

Nessa atração, o primeiro reality show itinerante da TV brasileira, doze participantes ficarão confinados num ônibus que percorrerá 4 mil quilômetros, com paradas em 16 cidades diferentes. O prêmio é de 1 milhão e será entregue no destino final, São Paulo, em outubro.

A despeito das elevadas expectativas, foi impossível assistir até o fim. As brigas violentas por uma lata de leite condensado, a falta absoluta de graça/interesse e a supremacia da lycra no vestuário dos participantes acabaram impossibilitando a empreitada.

Diante desse revés, apresento aqui minha sugestão para um reality show dentro de um coletivo, que se passaria durante uma viagem do 701-U, Jaçanã – Butantã/USP, onde, a exemplo da atração da Band, “o psicológico fica lá em cima” e “é preciso ser um guerreiro”.

Os participantes do reality serão 38 pessoas sentadas e 74 em pé, que terão que conviver por 2 horas e meia com um fardo de tecidos, uma samambaia e dois travesseiros carregados por uma senhora que, antes de sair, exagerou no perfume.

Durante o programa, o cobrador ficará encarregado de assuntar com as celebridades, fazendo perguntas íntimas, eliminando os que param na porta sem a intenção de descer e anunciando provas-relâmpago, como a do “um passinho pra frente, por gentileza”, que acontece sempre que um novo membro tenta embarcar.

A prova mais temida da atração, porém, ocorre quando alguém cochila e perde o ponto. Ela se chama: “Vai descer no próximo” e é de um suspense insuportável – o pobre coitado tem que se acotovelar entre sacolas de mercado, canos de PVC e uma patrulha de escoteiros, vencer a catraca e se arremessar em direção à saída, quando então descobrirá que é tarde demais e que o programa chegou ao fim: o ônibus pifou e os passageiros ganharam como prêmio uma caminhada noturna pela avenida Guapira.

Aí começa outro reality show, inspirado em “No Limite”.

Discípulos de Bottini

Posted: 15th agosto 2010 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
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“Compre! Compre! Compre!”, dizia Ciro Bottini no canal de vendas Shoptime, pedindo “música para quem ligou a tevê neste momento”.

Naquela época, o célebre apresentador aprovava os produtos com o selo de qualidade do dedão e dialogava com a dona de casa, fazendo ele mesmo a pergunta (com voz fina) e respondendo logo em seguida: “Mas, Bottini, dá pra passar as fotos para o computador com essa câmera digital?”.

Era irresistível. Ainda que fosse um multiprocessador de 20 quilos que brilhava no escuro e triturava coturno, dava vontade de ter um em casa.

A moda começou com Luiz Galebe, que, em 1987, fundou o programa “Shop Tour”, na época veiculado só de madrugada. Hoje há dezenas de atrações similares. A mais conhecida é o “BestShop TV” (Gazeta), que chega a ter cinco horários ao longo do dia. (Um deles vai das 22h30 às 6h.)

No catálogo, garbosas máquinas de fazer pão, panelas elétricas de arroz, massageadores e aparadores de pelos. Não há nada mais zen do que assistir ao programa sem um telefone por perto, alternando com o infomercial da escada articulada que pode ser montada em até 14 posições e o aparelho de fitness que dá choque na barriga enquanto você trabalha no escritório.

As apresentadoras são loiras, têm as unhas cintilantes e articulam exageradamente as vogais, como se estivessem falando com um vaso de plantas. Enaltecem os utensílios de cozinha e, não raro, derrubam comida no chão ou deixam queimar a bisteca. Conversam o tempo todo com o sonoplasta e se referem aos vegetais folhosos como “taliças”.
A fim de convencer a dona de casa, proferem frases como: “O alumínio sabe espalhar o calor como ninguém”. Sobre os aparelhos de ginástica, dizem morbidamente que eles “liberam o corpo e a alma”, ao que alguém no sofá de casa faz o sinal da cruz.

Para esses profissionais da persuasão, aparelhos pequenos são “compactos”, estampagem cafona é “alegre” e até um simples prato está equipado com “tecnologia pura”.

É o que nos resta na madrugada: ver como fazem os apresentadores para vender um inseto de pelúcia “divertido e colorido”, um tocador de MP4 com rádio-relógio e um bafômetro – todos no mesmo lote, numa promoção bombástica de 6 parcelas de 49,99.

Folha de S.Paulo – Ilustríssima
15 de Agosto de 2010

Muito além da sarcoidose

Posted: 8th agosto 2010 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
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À exceção dos médicos, ninguém se importa com a questão da verossimilhança na série “House” (Record, qui. à 0h15; Universal Channel, qui. às 22h). Nela, o protagonista age como um detetive, elucidando diagnósticos complexos em seu hospital.

A despeito da respeitável média de casos solucionados, o dr. Gregory House não é o melhor dos médicos para se consultar.

Primeiro porque o sujeito é internado com uma leve coriza e sai de lá com a doença de Creutzfeldt-Jakob, num prognóstico otimista de 45 minutos de vida. Além do mais, não há moléstia neste planeta que lá não se cure com uma boa punção lombar, farta exposição à radioatividade ou um amputamento randômico.

Isso quando não se desmaia de repente e, no hospital, acabam te induzindo ao coma e a uma biópsia cerebral, para então revelarem a sua verdadeira condição de hermafrodita.

O momento mais marcante da série, porém, não envolve a inoculação proposital de malária num paciente, mas a internação do próprio dr. House num hospital psiquiátrico, logo no início desta temporada.

O episódio duplo já começa desolador, exibindo imagens desfocadas da desintoxicação de House. Em seguida, ele sai raivoso do confinamento, alimentando a claustrofobia e a paranoia dos colegas só para ganhar uma partida de basquete.

A uma moça deprimida, pergunta casualmente se ela cortou os pulsos e, ao ser repreendido, diz: “Desculpe, o suicídio é assunto proibido? Droga, acabo de entrar e já quebrei uma regra. Acho que vou me matar”.

Com o tempo, porém, ele desenvolve uma afeição curiosa pelo colega de quarto, Alvie, um ruidoso rapper bipolar, o que culmina com sua participação num show de talentos. Quando Alvie sobe ao palco e esquece o que rima com senil, o dr. House grita, da plateia: “Meu colega de quarto é um imbecil”.

No ritmo, Alvie pergunta a House o que fazer para melhorar. A resposta é certeira: participar de um show de talentos.

De um modo muito mais verossímil do que se poderia esperar, a redenção ali surge em pequenos momentos. Um deles é quando a gordinha tímida dança a macarena. O outro é quando Alvie olha pela janela e vê House partindo, com sua camiseta de carinha feliz.