Rugas de televisão

Posted: 1st agosto 2010 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
Tags: , ,

Muitas vezes, a TV nos faz envelhecer. Aqui em casa, há ocasiões em que permanecemos hipnotizados por horas a fio, sem conseguir desligar o aparelho, presos irremediavelmente num programa qualquer. Quando saímos do transe, é setembro e já temos bisnetos.

A atração pode ser ruim ou enfadonha, não importa. É comum escutar nossos neurônios estalando, fritando, cometendo suicídio. Ainda assim, por alguma razão, continuamos sintonizados.

A categoria de programas desnecessariamente longos inclui reality shows como “American Idol”, que até maio começava às nove da noite e ocupava toda a madrugada de sábado, no canal Sony. Há também os épicos infomerciais de cintas elásticas que se alastram pelos canais numa espécie de loop demente.

Na Record, houve uma edição do “Programa do Gugu” (dom., 16h às 20h) em que se construiu uma casa para uma espectadora. Tudo nos fazia acreditar que o processo era exibido em tempo real, pois o programa deve ter durado umas boas duas horas. Prego a prego.

Nosso novo entorpecente domiciliar é o “Tribunal na TV” (Band, sex., 23h15), programa que faz a reconstituição dramática de crimes polêmicos, sob a narração do jornalista Marcelo Rezende.

No dia 23, o caso era um homicídio por asfixia de gás, estrangulamento e afogamento de uma mulher grávida de 9 meses, perpetrado pelo próprio marido na banheira de hidromassagem. O apresentador, num texto exageradamente emotivo, lança mão de inúmeras pompas narrativas para criar suspense, antecipando as atrocidades que virão e pondo em dúvida o desfecho.

Um grupo de atores sui generis assume o papel de cada um dos envolvidos. Com a naturalidade de um filólogo parnasiano, eles dizem coisas como: “O que é um filho, senão o reflexo de um amor?”. Ou: “Ele nunca me inspirou confiança. Ora grosseiro, ora distraído”.

O crime é contado de forma fragmentária, cheia de saltos temporais, talvez com a intenção de manter o espectador mentalmente confuso, sem condições de se defender desligando o aparelho.

Foi o que houve conosco naquela sexta-feira. Ao fim do programa, acordamos do transe televisivo a tempo de botar nossas dentaduras no copo d’água e ir dormir, reclamando de um leve lumbago.

Um beijo para os meus familiares

Posted: 25th julho 2010 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
Tags: ,

Espremer-se com um grupo de amigos a fim de caber no enquadramento e sorrir para a máquina fotográfica está entre as práticas mais degradantes do ser humano. Não há páreo para as pochetes, o telemarketing, as excursões a Porto Seguro, a podologia com ênfase em micoses, o vestido balonê.

Pior que isso, só os agrupamentos formados em torno de um repórter e uma câmera de TV, em geral na avenida Paulista. É quando o indivíduo perde de vez a noção do ridículo, decidindo espontaneamente que vai fazer “poropopó” vestido de esquilo durante uma passeata em comemoração ao Dia Mundial da Vergonha Alheia.

“O repórter Fulano de Tal está com a colônia alemã em Blumenau, é com você, Fulano”, anuncia o apresentador no intervalo de uma partida da Copa, e corta para um correspondente tentando encaixar o ponto na orelha.

Em questão de segundos, ele dá a deixa para a galera (entre eles, o homem vestido de esquilo), e o que era até então um bate-papo entre cinco senhores pacatos vira uma balbúrdia concentrada diante da tela. Ao que tudo indica, é o momento mais empolgante da vida daqueles alemães – todos tocando fole e com vestes típicas.

É ainda mais triste quando o evento só existe em função das emissoras ali presentes. Alguns câmeras de TV costumam liderar marchas de protesto e dirigem as massas, solicitando que parem, voltem, façam tudo de novo. “Estamos ao vivo”, ele informa, e os populares fazem a festa, com os “urrús” de praxe. “Corta”, ele diz, e todo mundo vai pra casa cuidar de seus afazeres.

Os closes na gente simples do povo, no popular exaltado e na viúva inconsolável deviam ser proibidos por lei. A gracinha final da repórter de tailleur afetando intimidade com o entrevistado podia muito bem dar cadeia, sem direito a sol no pátio.

Gente que acena para as câmeras, olhando de esguelha para ver se a gravação já acabou: três meses de trabalhos forçados. Dançarinas sorrindo e rebolando com vistas a se destacar das demais: Sibéria nelas. Populares indignados querendo aparecer: extração dentária com chave de grifo.

Quanto aos repórteres, a única punição suficientemente rigorosa é o voto de silêncio.

Gordinhos no Pantanal

Posted: 18th julho 2010 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
Tags: , ,

Dos dezoito últimos temas abordados pelo programa “Globo Repórter” (Globo, sex. 22h), 38% pertenciam ao escopo da saúde, práticas alternativas e hipertensão. Outros 33% se referiam à vida selvagem. Há também a categoria “países exóticos” (16%), “psicologia materna”, “Doutores da Alegria” e “Chico Xavier” (os 13% restantes).

No “Câmera Record” (Record, sex. 23h), o programa de documentários da concorrência, o Pantanal apareceu duas vezes nos oito últimos episódios. Substanciais 37% foram devotados à saúde e alimentação. Porém, no dia 9 deste mês, ocorreu na emissora um feito digno de alarde: um especial que unia a vida selvagem às dicas de bem-estar. O título: “O Pantanal que salva vidas”.

Assistir aos dois de uma vez, um após o outro, é um exercício de resistência.

Naquela ocasião, na Globo, o assunto era a Amazônia. Logo de início, a câmera focalizou o repórter camuflado em meio à folhagem. Como era de se esperar, ele caminhou até chegar num ponto, onde mostrou ao espectador uma dicotiledônea com propriedades miraculosas e/ou cicatrizantes. “Por essas bandas é assim”, disse a narração, sempre criativa.

Por exemplo: os índios são chamados de “guardiões de toda a sabedoria”, a floresta é “cheia de mistérios” e a chuva “chega sem avisar”. Depois de um intervalo comercial, também sem avisar, o foco passou para a Nova Zelândia, do que se conclui que deve ter havido um saudável aproveitamento de material.

Nesse tipo de programa, a figura do repórter só serve para fazer gracinhas, apontar-e-mostrar zebras na paisagem e ter experiências antropologicamente desastrosas.

Enquanto isso, na Record, o tom era parecido, mas menos previsível. Um sujeito decidiu comer uma aranha e disse que tinha “gosto de caju”. Um pantaneiro descalço aceitou usar sapatos. Há um close ousado num tatu fedido.

Com vistas a contribuir para a fertilidade da imaginação dos produtores, aí vai uma lista de novos temas para os programas: aftas. O mecanismo das roldanas. Aqualoucos. Pelota basca. Tartarugas brutais. Gota. Extraterrestres. Metafísica aplicada. Código Morse. Ou partam logo para um especial sobre gordinhos hipertensos no Pantanal lendo Chico Xavier e domando zebus.

Detetives pouco selvagens

Posted: 11th julho 2010 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
Tags: , ,

Ele tem medo de germes, agulha, leite, morte, cogumelos, altura, multidões, elevadores, coisas redondas, lençóis e filhotes (nessa ordem). Também evita o contato com liquidificadores e abelhas – e com abelhas em liquidificadores.

Adrian Monk, o detetive menos destemido de San Francisco, finalmente desvendou seu principal caso, após oito temporadas tentando descobrir quem matou a esposa Trudy, na série “Monk”.

Nesse período, mesmo sendo dependente de lencinhos de limpeza e sofrendo de um severo transtorno obsessivo-compulsivo, ele conseguiu resolver 125 crimes. Venceu os meliantes mais durões e encarou sérias ameaças, embora tivesse pânico de joaninhas. (“Tem natureza nas minhas mãos!”, ele grita, após se sujar com terra.)

Adrian Monk é a prova televisiva de que as limitações pessoais podem ser contornadas e até transformadas em qualidades – “é um dom e uma maldição”, afirma. Ele costuma dizer: “Você vai me agradecer mais tarde”, enquanto desinfeta uma evidência ou alinha os pés do cadáver.

Monk usa sua patológica fixação pelos detalhes para identificar o que ele chama de “peças fora do lugar” na cena do crime. “Esta sala é um pesadelo do feng-shui!”, reclama. Para ele, tudo precisa fazer sentido. Por mais que, na vida cotidiana, essas minúcias quase o tornem incapaz, são elas que lhe dão vantagem durante a investigação, convertendo suas fraquezas em forças.

Outro grande exemplo desse paradoxo é o detetive Columbo, da série homônima, a quem ninguém dá a mínima porque é vesgo, malvestido, descabelado e confuso. É justamente esse o seu método de solucionar crimes: aproveitando-se da arrogância alheia.

Quanto mais poderoso o assassino, mais superior ele se sente e, assim, tenta didaticamente trazer o pobre detetive à luz. É aí que Columbo, prestes a sair da sala e agradecer pelas informações – para alívio do suspeito -, diz: “Só mais uma perguntinha”. E desmonta o caso.

Em suma, ambos são “o oposto do Batman”, têm olho de vidro ou podem surtar diante de inofensivas gaitas, mas, no final, levam a melhor. Com todas as peças do homicídio encaixadas, Monk pode, enfim, descansar. “A menos que eu esteja errado, o que, você sabe, eu não estou…”

Campeões de audiência

Posted: 4th julho 2010 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
Tags: ,

A cada programa de TV que vai ao ar, dúzias de projetos sem nexo ou possibilidade de audiência são rejeitados. Pois a série “Campeões de Audiência” (Canal Brasil) aposta justamente nesse rico filão. Em treze episódios, o ator e diretor Michel Melamed desenvolve 26 ideias que canal nenhum, em plena e sã consciência, teria coragem de produzir. “São programas com temas tão estapafúrdios que nem traço no Ibope tentarão”, explica.

Se algumas dessas ideias são pretensiosas, outras mereciam ir imediatamente para o horário nobre. Como o “Game do Fodido”, em que dois pobres-diabos disputam para ver quem é o mais desafortunado. “Eu mesmo não almocei”, observa Melamed, gabando-se. Um dos concorrentes é mudo, tem pontes de safena, tifo, tumor, lepra e nome no SPC. O outro é cego, tem asma, arteriosclerose, tétano, tuberculose e tentou o suicídio oito vezes. Como se não bastasse, é judeu, negro e índio. Acirrada, a disputa seria resolvida nos detalhes (“Uma diarreia! Piolho! Unha encravada!”).

Há programas que certamente enriqueceriam nossas tardes: “Joelho TV” faz do salgado de presunto e queijo uma estrela. “Aqua Mondo” exibe uma degustação de águas com celebridades. “TV TV” é um debate aberto ao público num sofá no Largo da Carioca.

“Favela Planet”, por sua vez, é um especial de viagens dedicado às periferias. “Agora a gente vai pegar o bondinho e encontrar o Guedes”, ele anuncia, no Morro de Santa Marta, cujos principais pontos turísticos são a laje do Michael Jackson e a imagem da santa. “Quais são as opções de estadia por aqui?”, ele consulta um morador, com o guia na mão.

Já o programa “Os Melhores Açougues, Arames Farpados e Solos de Bateria do Mundo” é exatamente o que diz o título. “Celebrity Sono TV” entrevista atores como Rodrigo Santoro, que dá um boa-noite literal à câmera e passa cerca de 6 minutos dormindo em rede nacional.

“As Mais Belas Lágrimas do Mundo” passa a receita do kit choro: cebola, cânfora, colírio e cuspe. O convidado Matheus Nachtergaele é pedido para interagir com um pneu e se emocionar. “Eu pensei em começar dizendo: ó, pneu, quanto você já rodou. Mas depois eu percebi que você é novo”, diz, inconsolável. E chora.

AH1292261464x3482

Piauí n. 46
Julho de 2010

por Vanessa Barbara

Duelo de mentes em visita noturna ao aquário

“Quando eu era menor, queria ser paleontólogo”, diz Andrei, de 5 anos. Naquela época, ele era tolo e ingênuo. “Hoje eu quero ser biólogo marinho”, anuncia, diante de vinte pessoas e um atento cardume de ciclídeos.

Com seu conhecimento enciclopédico adquirido via Google e documentários do Discovery Channel, Andrei foi a grande atração daquele sábado à noite no Aquário de São Paulo, localizado no bairro do Ipiranga, não longe do riacho que?- dizem?- ouviu d. Pedro i declarar a nossa independência ou morte. O aquário abriu as portas para passeios noturnos há um ano e meio. Na noite em questão, os funcionários recebiam um grupo fechado de 100 visitantes que se dividiram em cinco turmas de vinte pessoas, cada qual com seu monitor.

À encarregada do grupo de Andrei?- Fernanda, aluna do penúltimo ano de biologia?-, coube a tarefa mais difícil da noite: responder às dúvidas do curioso petiz. Durante a chamada oral, Andrei fez perguntas sobre classificação taxonômica, principais predadores lacustres, dimorfismo dos ciclídeos, coloração das rãs Xenopus e até acasalamento písceo. “Esse menino é muito precoce”, constata uma visitante, logo antes de se dar início ao percurso de aproximadamente 75 minutos.

A monitora confessa: “Meu Deus, estou tomando um banho! Eu vou levar você para a minha faculdade, Andrei!” Cogitou-se a hipótese de o menino ministrar uma aula magna para a turba ignara de universitários, em troca do que ele seria agraciado com o título de doutor honoris causa, o que talvez provocasse muito berro e gritaria entre os pares da pré-escola.

O passeio começou com a distribuição de minilanternas aos visitantes. Em seguida, um a um, os grupos penetraram nos mistérios do museu. Mistérios que já se faziam presentes na primeira seção visitada?- a dos mamíferos -, pois, a despeito do nome, o Aquário de São Paulo não abriga apenas peixes e animais aquáticos entre os seus 3 mil hóspedes. Há, por exemplo, um filhote de lontra neotropical, um bando de macacos bugios, um tamanduá-mirim de nome Lipe, um lobo-marinho bastante sociável e inúmeros tucanos-toco.

Foram eles os primeiros a receber o público, às 20 horas em ponto, já que possuem hábitos diurnos e precisam dormir cedo. Logo de início, uma decepção: “Aqui temos o lobo-marinho”, anunciou Fernanda diante de um monte de pedras e folhas e um tanque de água absolutamente vazio. “Ele está deitadinho no canto, ali em cima”, ela tentou apontar. Os feixes de luz bem que arriscaram uma varredura, mas nada se viu além de uma sombra indistinta. Talvez secretamente entediado, Andrei aproveitou para informar aos leigos que, na África, o predador do lobo-marinho é o tubarão-branco.

Surge então a estrela animal da noite: o bonachão Tapajós, que nada em círculos e come escarola. É um peixe-boi de 113 quilos e 2 metros de comprimento, o primeiro exemplar do mundo a ser exibido em cativeiro. Tapajós reside num tanque de 1 milhão de litros de água, o principal do aquário, e divide a moradia com bagres, jaús, tambaquis e pirarucus. A temperatura é mantida entre 25 e 27 graus, como na Amazônia.

Para gáudio de Fernanda, Andrei, embora soubesse que o peixe-boi é um mamífero, desconhecia certos aspectos do pirarucu. “O pessoal da Amazônia usa a língua dele como ralador porque é áspera e rala mandioca e queijo… as meninas usam as escamas para lixar a unha”, contou, satisfeita por poder ensinar alguma coisinha ao menino. Ele ouviu com atenção, mas deixou claro que sabia, desde muito, que os pirarucus comem piranhas, o que deslustrou um pouco a alegria da moça. E também não pareceu se espantar com a existência do peixe-gato, um tipo que tem bigodes parecidos com o dos felinos.

***

Decerto em conluio com o lobo-marinho, a pequena lontra também se recolheu a seus aposentos e não deu o ar da graça. A atitude foi imitada pelos bugios. Mas Andrei estava em missão científica e nada susteria sua empolgação. O tamanduá-mirim lhe pareceu uma maravilha, apesar de ele não conseguir enxergá-lo muito bem. Fernanda fremiu de prazer antecipado ao perguntar: “Alguém quer adivinhar o que o tamanduá toma para substituir o leite da mamãe?” Ah, Andrei não sabia, não! Sem demora, ela revelou: “Da-no-ni-nho! Com frutas! Batido no liquidificador!”

Quando era, digamos, menos maduro, Andrei gostava era de dinossauros. Aos poucos foi se apaixonando pelos peixes, a ponto de obrigar a mãe a peregrinar por todos os aquários do estado. A família mora em São José dos Campos, a 91 quilômetros da capital paulista. No dia da visita noturna, Andrei havia acordado no hotel às seis da manhã e arrastara a mãe e a avó para o zoológico e o Zôo Safari. Além do Aquário de São Paulo, ele já visitou o de Santos, o de Santo André, o de Ubatuba, o do Guarujá e o de Aparecida. Seu preferido é um do Japão, país que ainda não teve oportunidade de conhecer; por enquanto, contenta-se em explorar o remoto aquário via internet.

Andrei seguiu trocando considerações com a monitora por entre tanques de lambaris, tubarões, jacarés, piranhas, pinguins e garbosas tartarugas. Discordou veementemente da alegação de que a píton seria a maior cobra do mundo, desbancando até mesmo a sucuri: “Não é! Eu já ouvi falar de uma maior! É a cobra-grande!” Quando Fernanda admitiu que nunca tinha ouvido falar de cobra-grande, imediatamente espalhou-se o boato de que Andrei acabara de descobrir uma nova espécie. Todavia, até cientistas grandes falham?- e dessa vez o pequeno estava errado. A píton era mesmo a maior cobra do mundo; a candidata de Andrei vinha em segundo lugar.”Cobra-grande” era apenas um outro nome para a sucuri.

Ciente de que percalços fazem parte da vida do pesquisador, Andrei não esmoreceu e continuou a responder corretamente às perguntas da monitora. Sim, o cascudo come sujeira, as tilápias são ciclídeos, alguns tubarões são ovovivíparos, e, se as tartarugas às vezes engolem sacos plásticos, é porque os confundem com águas-vivas.

Ele achou por bem informar que seu peixe preferido era o baiacu e perguntou se a monitora já ouvira falar de “arraia-pintada”. Sim, ela conhecia. E peixe-lua? E salamandra gigante? E peixe-arqueiro? Recebendo finalmente uma resposta negativa, o rapaz explicou: “O arqueiro é um peixe que cospe água e derruba os outros de longe.” Ponto para Andrei, que, a propósito, já comeu tatu.

O passeio terminou com um jantar oferecido pelo museu. Não foi servido nenhum tipo de peixe.

A síndrome do excelente Effenberg

Posted: 27th junho 2010 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
Tags: , ,

“Então os desbravadores europeus se espalharam para o centro da África e…”, discorreu Galvão Bueno, durante o modorrento confronto entre Inglaterra e Argélia, no último dia 18.

É nos momentos mais soníferos dos jogos mais mornos que os narradores esportivos têm que provar seu valor, entretendo os ouvintes com sua sabedoria aleatória. Naquela ocasião, discutiu-se a estampa florida da bermuda térmica de um dos atletas. Em seguida, Galvão declarou que o melhor em campo era o juiz do Uzbequistão.

Os locutores aproveitam o ensejo para lançar mão de todos os seus recursos de oratória. Uma seleção pode, por exemplo, “assimilar” o gol adversário e efetuar fortes passes “em profundidade vertical” (o popular chutão).

Em transmissões, é comum dizerem que o jogador “primeiro tentou na categoria, depois na raça”, ou seja, primeiro tentou roubar a bola, depois apelou para uma sangrenta voadora. Menciona-se a “desinteligência” do esquema tático para se referir à burrice do técnico, e o “bom humor da torcida” quando esta emite palavrões de fazer corar Edmundo, o saudoso Animal.

Entre as gafes históricas da narração televisiva está uma transmissão da Copa de 74 feita por um pool de comentaristas, entre eles Galvão Bueno. O trio narrava um ataque do time da Bulgária, quando a bola saiu pela linha de fundo e foi tiro de meta para a Suécia. Nesse momento, a câmera deu um close no placar do estádio: “Austrália 0, Alemanha Oriental 0”. Pânico na cabine.

Galvão Bueno não tinha nada a fazer senão continuar: “Vai a Austrália para o ataque e a Alemanha Oriental se defende como pode”, informou, numa locução esquizofrênica em que a Bulgária chutou por cima do gol da Suécia e quem bateu o tiro de meta foi a Austrália. Ambos tinham as mesmas cores de uniforme ­– amarelo de um lado e branco do outro.

Mas o maior tropeço ainda estava por vir. Na Copa de 94, conforme reza a lenda, um locutor colombiano se superou, entrando imediatamente para o cânone. Primeiro disse: “Stefan Effenberg está com a bola, que bom jogador é Stefan Effenberg… excelente Effenberg”.

E, logo em seguida: “Senhores, substituição no time da Alemanha. Entra Stefan Effenberg”. Silêncio incômodo.

Folha de S. Paulo – Ilustríssima
20 de Junho de 2010

As pilhérias literárias de Carlos & Carlos Sussekind

RESUMO O celebrado romance “Armadilha para Lamartine” (1975) é uma original e irônica reelaboração que Carlos Sussekind fez dos exaustivos diários de seu pai, que registram 30 anos de vida privada e política no Brasil. Dois jovens escritores visitam o autor e conhecem os divertidos diários de seu pai, que são a matriz de sua obra.

O escritor Carlos Sussekind na praia de Copacabana.

VANESSA BARBARA
ANDRÉ CONTI
fotos DARYAN DORNELLES

O CARIOCA CARLOS SUSSEKIND DE MENDONÇA FILHO, 76, é uma espécie de saci literário. Entre as traquinagens de sua lavra, a que mais lhe dá orgulho é a da “correspondência machadiana do além”, executada há cinco décadas.

O crítico Augusto Meyer nem era de seu círculo de amigos, mas, na condição de autoridade em Machado de Assis, tornou-se alvo da patuscada. Carlos escolheu, entre as valiosas cartas de Machado herdadas do avô (Lúcio de Mendonça, fundador da Academia Brasileira de Letras), uma que contivesse vagas menções familiares que pudessem passar como relativas a Meyer. Envelopou-a e remeteu-a ao intelectual, endereçada com pena Malet e nanquim, caligrafia rebuscada e o nome: “Joaquim Maria M. de Assis”. A brincadeira consistia em imaginar com que cara ficaria Meyer ao receber, pelo correio, uma carta endereçada a ele do punho de seu ídolo.

Carlos não tinha como saber das repercussões da pilhéria. Ao longo da entrevista concedida à Folha, numa tarde de ventania em Copacabana, o escritor fez revelações e admitiu que as brincadeiras, em sua maioria, tinham como objetivo conquistar teimosas donzelas. Foi o que ele quis com a carta de Machado para Augusto Meyer: impressionar uma moça da família do crítico.

Certa feita, namorava uma jovem marxista quando descobriu, entre os papéis do pai, um cartão manuscrito com os seguintes dizeres: “Desejo-lhe um feliz Natal. Ass.: Luís Carlos Prestes”. Sem vacilar, enviou-o à bem-amada, já que o cartão não trazia data nem o destinatário. Deu certo.

MAQUINAÇÕES Sua maquinação mais bem-sucedida, porém, é “Armadilha para Lamartine”, romance de 1975. A autoria é creditada a “Carlos & Carlos Sussekind”, já que o romancista se baseia no diário do pai, proeminente jurista de mesmo nome. Sussekind Filho adulterou passagens, trocou nomes de pessoas, situações e referências, compondo uma narrativa meio ficcional e meio verdadeira, que se concentra em acontecimentos referentes ao ano de 1955.

A crítica da época foi positiva e o livro ganhou notoriedade entre leitores seletos, que o julgaram extraordinário. No posfácio, o escritor e psicanalista Hélio Pellegrino declara que, “do ponto de vista de sua estrutura, o romance apresenta o rigor e a elegância formal de uma partida de xadrez, jogada por um mestre”. A poeta Ana Cristina Cesar o chama de “livro único na ficção brasileira”. A crítica de literatura Leyla Perrone-Moisés aproxima-o de Machado de Assis, no que diz respeito à temática e ao uso da ironia.
Em seu conteúdo, os fatos narrados na “Armadilha” são quase todos verídicos, por improváveis que sejam, e o mesmo se pode dizer dos demais livros do autor: “Ombros Altos” (de 1960, reeditada em 2003 pela 7Letras), “Que Pensam Vocês que Ele Fez” (Companhia das Letras, 1994) e “O Autor Mente Muito” (Dantes, 2001), este escrito em parceria com o psicanalista Francisco Daudt da Veiga -que afirmou que a “Armadilha” é “a mais fiel das autobiografias, ou seja, tudo é inventado”.

Até os mínimos incidentes são confirmados pelo autor, que, portanto, mente muito menos do que se poderia supor. O título de seu próximo romance, se existisse, seria “Não sou quem eu era, não sei quem eu sou”.

OBSESSÃO Todos os livros de Carlos Sussekind, o filho, partem da mesma obsessão: o diário escrito pelo pai, Carlos Sussekind de Mendonça (1899-1968), respeitabilíssimo corregedor de menores do Tribunal de Justiça, autor de obras como “O Sport está Deseducando a Mocidade Brasileira” (1922), “Norma Talmadge e a Expressão das Emoções na Cinematographia Americana” (1923) e “Algumas Suggestões à Educação Sexual dos Brasileiros” (1927). Um sujeito sério, portanto.

Com a mesma diligência que dedicava aos processos despachados em sua “varandola-gabinete” (a varanda de um apartamento em Copacabana), ele manteve, ao longo de 30 anos, um registro ultradetalhado de seu cotidiano, que abarcava temas tão díspares quanto os bloqueios intestinais de seus entes queridos, o preço da carne, a saúde do papa Pio 12, as belas gengivas da nova Miss Brasil, os discursos de Carlos Lacerda no rádio, a queda de Perón, a bomba atômica e a campanha de Juscelino à Presidência.

A herança está guardada até hoje nas estantes de Carlos Sussekind, o filho: aproximadamente 70 volumes em capa dura, preenchidos com caligrafia segura, caprichada e absolutamente sem rasuras. A obra completa tem cerca de 30 mil páginas e é entremeada por prosaicos recortes de jornal, em que figuram as obsessões do jurista. Retratos da atriz Gina Lollobrigida alternam-se a instantâneos do líder comunista Ho Chi Minh e da família na praia.

Nesse épico da vida privada, o dr. Sussekind fala sobre seus hábitos matutinos, suas idas à farmácia, as desavenças familiares e como tem passado a noite. Num dia, diz que a mulher “sofreu as consequências da comida com vinagre que tivemos ontem à noite”. Noutro, relata ter sido “forçado a dar expansão a uma acumulação extraordinária de gases no intestino”. E dá detalhes: “Fi-lo com o mínimo de ruído possível. Mas o Lamartine ouviu, apesar de tudo. E foi certificar-se do que era, imprudência que lhe custou caro ao olfato”. Lamartine é a persona literária do filho.

BONS IMPULSOS O diário é o relato de uma vida sem sobressaltos, metódica e implacável, que parece “não corresponder aos bons impulsos” de quem a descreve. O jurista se ocupa de questões comezinhas e vive sempre com a impressão nítida de haver deslocado alguma costela ou apanhado uma virose fatal: “Quero fixar bem esses detalhes para amanhã auxiliar o meu possível médico assistente, se não a me curar, pelo menos a me passar um atestado de óbito decente.”

O dr. Sussekind fala do seu peso, sempre acima do que gostaria, e dos filmes a que assiste no cinema, como um com Jane Russell, “o maior abacaxi de todos os tempos. Houve, até, vaias. E, para isso, sai um homem de casa, com sua esposa, luta por condução e perde a sua noite, tão digna de melhor emprego!”.

De sua “varandola-gabinete”, ele dá notícias sobre as mais divertidas insignificâncias da rotina, acalentando boas providências tais como: “Verificarei segunda-feira sem falta”, a respeito de uma disparidade de peso nas balanças de farmácia. Ou: “Hoje o dia foi de todo inexpressivo”. E ainda: “Noite besta, portanto”.

É na obsessão pela compulsão paterna que consistem os quatro livros de Carlos Sussekind, romances alegadamente ficcionais que se baseiam em anotações do diário e em patuscadas verídicas. “É muita besteira”, diz, sorrindo.

SANATÓRIO Concentrado nos anos de 1954-55, “Armadilha para Lamartine” relata os acontecimentos reais que levaram à igualmente real internação de Carlos Sussekind, então com 21 anos de idade, no Sanatório Botafogo. Preso no hospício e sem ter o que fazer, o rapaz fingia receber telepaticamente as páginas do diário do pai, identificado no livro como “dr. Espártaco”. Fez sucesso entre os colegas. “Eu tinha que arrumar um jeito de me divertir”, afirma Carlos, relembrando o acontecido.

O triste episódio que resultou em camisa de força aconteceu às 8h da manhã de 30 de junho de 1955. O rapaz passara a noite fora, “no número 418 da Barata Ribeiro”, mas voltou a tempo de tomar café com os pais, “no 326 da Gustavo Sampaio, apto. 901”. Na época, seus melhores amigos eram Alexandre Eulálio -futuro professor de teoria literária na Unicamp- e Joaquim Pedro de Andrade, diretor de “Macunaíma” e expoente do cinema novo. O que ocorreu em seguida continua nítido na memória de Carlos. Num ímpeto irrefreável, ele dirigiu-se à praia do Leme, a poucos quarteirões dali. Sem camisa, ganhou a avenida Atlântica. No calçadão, resolveu tirar o calção. Lá pela altura do Posto 1, já estava inteiramente nu. Caminhou em direção ao mar. Foi censurado pelos banhistas, que atiravam bolas de areia. Um garotinho chegou a oferecer-lhe o calção. Alguém chamou a radiopatrulha.

Na ocasião, Carlos/Lamartine afirmou que havia morrido e que estava felicíssimo, pois isso não lhe custara nada. Alegou depois que era Jesus Cristo e saiu correndo atrás da irmã, querendo atirar-lhe coisas (“Deteve-se, porém, quando chegou a vez de uma jarra mais pesada e mais custosa”). Sua expressão era abobalhada. Só hoje ele entendeu o que realmente houve naquela manhã, há mais de 30 anos. “Eu acreditava estar numa outra dimensão”, explica, com ar divertido.

ORIGEM Ao que tudo indica, a origem do surto foi um pensamento que teve, certo dia, enquanto passeava na areia de mãos dadas com a namorada, trançando um caminho entre as cadeiras dos bares da orla. “A gente passava andando e ninguém percebia, o que era bem esquisito”, lembra.
Pouco depois, para piorar, presenciou um diálogo entre seu amigo e o garçom de um boteco, em que ambos repetiam as mesmas palavras de forma desconexa, mas ninguém além dele parecia estranhar. “Aquilo só podia estar acontecendo em outra dimensão, foi a conclusão que eu tirei. A dimensão em que eu estava não era aquela em que as outras pessoas estavam”, justifica.

Foi com o intuito de comprovar essa tese que Carlos, tal como ele percebe hoje, despiu-se em plena praia do Leme -de início, as pessoas não pareciam se importar. Ao entrar no mar, seu objetivo não era exatamente morrer, pois “estava em outra dimensão”. Como resultado da peraltice, o futuro escritor, que nos diários é chamado pelo apelido de Caíco, passou quase dois meses num sanatório e chegou a ser tratado com eletrochoques (“Passava o dia inteiro com dor de cabeça”).

Enquanto isso, um sofrido dr. Sussekind intercala as novidades do noticiário à aritmética das despesas com a internação do filho. Na sua obsessão de descrever tudo, ele não tem como compreender o que se passa com Carlos/Lamartine. O livro se constrói na tensão entre o relato do drama familiar e a repercussão do suicídio de Getulio Vargas, em agosto de 1954, com os discursos radiofônicos de Carlos Lacerda, o que faz da “Armadilha” uma obra-prima do romance político.

Diz-se que uma das agravantes do surto foi, justamente, o fato de Carlos sentir-se aprisionado pela ação opressiva do pai, que impunha um controle absoluto sobre tudo e todos: a família, os colegas, a China comunista. “O mundo, o país e a cidade convergem para a casa, centro que se quer estável no olho do torvelinho”, atesta Leyla Perrone-Moisés, em artigo publicado no “Mais!” em 26/9/1993 e disponível em folha.com/ilustrissima.

ENCANTO & INVENÇÕES Em “O Autor Mente Muito”, Carlos afirma ter feito fama literária como um desses “malucos de carteirinha” que, após um único surto e consequente internação, “passam anos recordando o assunto, como se tivessem feito parte da campanha da Itália na Segunda Guerra”.

No livro, escrito a quatro mãos com seu próprio psicanalista, ele comenta que, após anos de terapia, foi dado como incapaz de distinguir entre ficção e realidade. Resolveu então ceder de vez e misturou à narrativa suas invenções mais encantadoras.

A principal delas é a “suprema leveza” – um circo com bailarinos de papel que é acionado por estática. O brinquedo é montado numa pequena forma de pizza, coberta por um papel-filme, e seus protagonistas são confetes que ele mesmo confeccionou com um furador de papel. Tal qual um feiticeiro, Carlos esfrega a manga da blusa no objeto e, surpresa!, os papeizinhos iniciam uma dança nervosa, colando-se ao plástico e se enganchando sofregamente. A namorada que ganhou o mimo não achou a menor graça. “Casou-se com outro”, ele reclama.

O MICO-PRETO O diário do dr. Sussekind é famoso por suas lacunas, silêncios e omissões. De início, ficava guardado numa prateleira alta, fora do alcance da família: “A barreira dos 30 centímetros foi uma das tantas que, uma vez estabelecidas lá em casa, eram respeitadas com a concordância de todos para preservar a anormalidade da família”, escreve Carlos. Com o tempo, passou a ser lido por todos. Daí os expedientes que o autor usava para desconversar.

Há uma suposta amante de quem ele falava o tempo todo, d. Camila Soares, sob o pretexto de ser uma “amiga espiritual”. Há o seu inacreditável problema com os bondes: a crer nos diários, na volta para casa, os motorneiros estavam sempre trocando o letreiro depois que ele já se sentara, e o resultado era “o bonde tomar um rumo imprevisto, ele ter que saltar no meio do caminho e chegar invariavelmente atrasado ao jantar em família”. Ou seja, uma inventiva desculpa para ocultar seus encontros clandestinos.

Há o assédio das moças com quem travou conhecimento na repartição. Estas viviam lhe oferecendo números de telefone, endereços e locais de encontro, que terminantemente recusava: “E aí está a que perigos se expõe, num dia quieto, um homem de bem”.

O capítulo do mico-preto é assim chamado por ser uma longa passagem do diário que o filho gostaria de descartar, como uma carta de mico, por julgar desagradável. São revelações sobre a vida sexual do dr. Espártaco, trechos em que o jurista fala de sua intimidade com a esposa e a amante. Por causa desse capítulo, publicado em “Que Pensam Vocês que Ele Fez”, Carlos resolveu destruir os três últimos volumes do diário. Está arrependido até hoje. “Como havia isso, essa dúvida de se aquilo era de minha autoria ou de meu pai, aproveitei para manter uma ambiguidade que não se resolveria nunca”, contou em entrevista ao pesquisador Fábio Bortolazzo Pinto.

“Uma coisa ou outra: ou eu tinha forjado aquilo, que seria uma grosseria inqualificável, ou aquilo era a própria verdade e eu a estava revelando. Então ficou essa complicação que eu resolvi muito mal.” Entre os volumes perdidos, estavam as impressões do pai de Carlos sobre o golpe de 64.

IRRELEVÂNCIAS Ao longo de sua carreira, Carlos trabalhou na confecção do dicionário Houaiss, foi tradutor e ilustrador. Hoje, aposentado, passa as tardes digitando as páginas do diário do pai, sem previsão para concluir a tarefa. Coleciona dicionários antigos e é cinéfilo. Adora passear na rua e observar as pessoas.

Carlos escolheu o dia da entrevista à Folha para render-se a uma extravagância permitida por sua nutricionista. Nos últimos meses, um problema renal o obrigou a uma dieta rígida: só pode comer livremente uma vez por semana. Almoçou penne com gorgonzola, pera e “aroma de pimenta”. De sobremesa, um tiramisù pequeno demais. “Não como doce há dois meses”, lamenta, tecendo loas ao sorvete de café choc chip da marca Itália, guloseima de sua predileção.

Assim como o diário paterno, o cinema é uma de suas fontes preferidas de irrelevâncias. Embora goste de assistir a todo tipo de filme, Carlos é um prodigioso especialista em atores secundários que o tempo esqueceu. Wendell Cory, por exemplo. “Você sabe quem foi Wendell Cory? Pois então. Assim que ele apareceu na tela, seu nome surgiu nítido em minha memória.” Ele adotou um livro de referência, o “The Movie Stars Story”, de Robyn Karney, que traz os 500 mais notáveis atores de todos os tempos. O critério é o seguinte: quem estiver mencionado no livro não vale. “Então nessas horas sei que estou lúcido, apesar de ninguém mais saber”, afirma.

MUTIRÃO DE COPISTAS O diário do pai se faz presente em cada coisa que Carlos escreveu na vida. Para comemorar seu aniversário de 70 anos, em 2003, ele reuniu os amigos na livraria Dantes, no Leblon, e pediu-lhes que ajudassem a digitalizar as páginas já datilografadas do documento. Cada um recebeu 15 laudas.

No mutirão de 101 copistas, estavam o jornalista e editor Paulo Roberto Pires, o poeta Armando Freitas Filho, a crítica literária Flora Süssekind e o documentarista João Moreira Salles, além da professora na UERJ e pedagoga Ira Maciel, então sua namorada. Durante a entrevista, ele afirmou várias vezes que “adoraria” digitalizar o diário e publicá-lo gratuitamente na internet, mas que, na verdade, não lhe importavam os preciosos panoramas históricos contidos no documento. (Uma de suas filhas pretende dar uso acadêmico aos diários.)

“Danem-se as relevâncias!”, exclama Carlos. “Tudo o que quero é achar graça, quando isso estiver completo, em estabelecer associações curiosas, coisas que só serão possíveis quando tudo estiver transcrito em texto eletrônico”, diz. “Imagine eu pegando a palavra ‘safado’ ao longo de 30 anos, e reparar a mudança de conceito, às coisas e pessoas a que se aplica, construir uma história juntando os dias em que as safadezas foram registradas.” Donde se conclui que, aos 76 anos, Carlos continua um grande galhofeiro. É assim que vai se esquivando de um destino “pior que a morte”: a seriedade.


André Conti, 28, é editor de livros e tradutor. Vanessa Barbara, 28, escritora e crítica de TV da Folha. É autora de “O Livro Amarelo do Terminal” (Cosac Naify) e do romance “O Verão do Chibo” (Alfaguara), com Emilio Fraia. Pág. 4

Em “Roma”, como os romanos

Posted: 20th junho 2010 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
Tags: ,

Aqui em casa, somos patologicamente suscetíveis a séries de tevê. Os efeitos se mostram mais impactantes quanto mais distante está o seriado da nossa vida real – na época de “Família Soprano”, por exemplo, não demoramos mais que quinze minutos para aderir à Máfia.

Durante meses, tomamos Nescau batido na padaria enquanto discutíamos quem ia virar “capo” e quem ia virar presunto. Nunca foi tão descolado sair à porta de casa em pantufas para apanhar o jornal. Aliás, o episódio em que Bobby Bacala compra um trenzinho de brinquedo nos fez chorar aos soluços, tanto que foi preciso intercalar com um trecho de “Barney e Seus Amigos”, a título de calmante.

Recentemente, passamos a andar de capuz só por causa de outra série, “The Wire”, excelente drama policial que enfoca o tráfico de drogas num subúrbio de Baltimore. Agora, ao avistar um homem da lei dobrando a esquina, gritamos “Five-O!”, que é a gíria usada para se referir aos policiais (em homenagem a “Havaí 5.0”). Montar escutas telefônicas também não nos oferece mais nenhum mistério.

“The Wire”, aliás, tem o melhor final de série de todos os tempos. O caneco de melhor início vai para “Lost”, embora o episódio de abertura da sexta temporada de “House” nos tenha conduzido às lágrimas. A comoção doméstica foi ouvida até pelo porteiro do prédio vizinho, que passa a madrugada assistindo reprises de “Pica-Pau”.

“Monk” nos fez andar na rua encostando o dedo nos postes. Após nove temporadas de “Arquivo-X”, suspeitamos de uma conspiração em plena reunião de condomínio. “Millenium” foi a opção dos dias mais tristes, só porque era uma história trágica e nos dava a sensação de que “havia gente bem pior”. Em nossa fase “24 horas”, só se entrava na cozinha com um chute na porta, na ânsia de torturar os melhores donuts.

O efeito nem sempre é coerente com os propósitos da série: “Columbo” nos fez sentir muito espertos, ainda que amassados, confusos e meio vesgos. “Twin Peaks” nos deixou mais esquisitos. “Em Terapia” provocou silêncios amuados, angustiados, confusos. “Top Chef” deu alguma utilidade à cozinha, recinto menos prestigiado da casa.

Quero só ver quando começarmos “A Sete Palmos”.

Volta, “Walk Talk Show”

Posted: 13th junho 2010 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
Tags: ,

“Olá. Posso te conhecer?”, pergunta Robson de Andrade Gonçalves, entrevistador do extinto programa “Walk Talk Show” (TV USP). Com o microfone na mão, seu trabalho era abordar populares que passavam pelo campus da universidade, sem pauta e nem objetivo específico. “Oi. Tudo bom?”, ele insistia, e havia quem respondesse: “Não”.

Isso nunca foi motivo de constrangimento para Robson, codinome Rob Ashtoffen. O programa “que fala, fala, fala, e anda, anda, anda” durou duas temporadas e não tinha nem sombra de roteiro. Num episódio típico, o destemido repórter se aproximava de alguém e perguntava o que lhe desse na telha, seguindo ocasionais sugestões transmitidas via walkie-talkie pelo diretor do programa.

Só na conversa fiada, ele descobriu coisas extraordinárias como a biblioteca do centro acadêmico da USP–São Carlos, que abre inclusive aos domingos, quando “é só chamar ali no portão que eu abro”, segundo a encarregada. É a única instituição acadêmica a ter um cachorro residente, o Bob, e dois morcegos, o Maconha e o LSD, que veem tudo de ponta-cabeça. A bibliotecária-chefe aparece em fotos institucionais mostrando o dedo do meio. Foi ela quem, em 1983, causou tumulto no campus: “Peguei um carrinho de pedreiro, invadi o alojamento e recuperei os livros atrasados”, contou.

Robson costuma aparecer de forma inesperada e, diante da falta de assunto, pergunta coisas como: “Você pretende ter filhos?” ou “Você acha que a criação da sua mãe te influenciou a não ter sonhos?”, este último a um calouro da faculdade sem objetivos de vida. “Não estou me empenhando muito por nada”, o sujeito confessou.

A um professor de astronomia, papeou sobre manchas solares e questionou se o apocalipse estava próximo. A uma moça que pregava anúncios no mural, conseguiu extrair a constatação muito íntima de que “os meus cartazes são bem colados”. Sociabilizou com a moça do hot-dog, com um maluco local e com duas estátuas.

“Não sou um entrevistador, sou uma pessoa que conversa”, declarou. Para o rapaz, o ofício de entrevistar “é que nem boiar na água, né?”.

Robson, talvez o melhor entrevistador da TV, é um insólito estudante de biblioteconomia.