Este ainda não é o meu cachecol

Posted: 6th junho 2010 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
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Álvaro Garnero, 42 anos, apresentador e multimilionário, já apareceu em rede nacional untado em óleo de oliva e vestindo calça de couro, durante uma luta turca. Já cavalgou no mar da Jamaica, socializou com velhos bérberes do monte Atlas, comeu frutas secas em Damasco, tomou banho com elefantes na Malásia, andou de quadriciclo e pagou os maiores micos da televisão brasileira, sem ligar a mínima.

No sábado passado, foi ao ar o último episódio desta temporada de “50 por 1” (Record), inteiramente dedicada a viagens pelo Brasil. Foi quando o carismático e alaranjado Álvaro Garnero mostrou-se em sua melhor forma,  interagindo com o povo simples e sorrindo mais do que permitia a força humana.

Em São Paulo, aprendeu a rolar de uma escada e ateou fogo no próprio braço, durante um curso para dublês. Em Alagoas, visitou o peixe-boi Aldo. Em Joinville, vestiu colã e tentou acompanhar uma aula de balé. Uma de suas frases mais proferidas nesta temporada: “Você só escuta o pessoal rindo por todos os lados. É um negócio inacreditável”.

Tudo isso pontuado pela participação do narrador, Mario Chamie, poeta e membro da Academia Paulista de Letras. Em off, ele fornece dados históricos sobre as localidades, bem como informações gerais e adendos sarcásticos. A certa altura, reflete: “Quem não é um eterno iniciante nas grandes lições da vida?”.

Corta para Álvaro de cachecol.

No último episódio, em Porto Alegre, o apresentador trocou de adereço cervical três ou quatro vezes. Vestiu coletes modernos e postulou: “Não existe gaúcho sem cavalo”, numa frase que entrará para a história da atração. Álvaro dançou o “copérnico”, nitidamente confuso entre a dupla de cantores Hique e Nico, do Tangos & Tragédias. Emitiu inúmeras vezes seu famoso bordão: “Mas esta ainda não é a minha Porto Alegre”. Bateu com o remo na própria cabeça e caiu sem querer na água, usando um maiô azul de corpo inteiro. Vestiu bombachas. Jogou punhobol e exclamou a clássica: “Gente, vocês não têm noção”, para gáudio dos telespectadores do programa, um dos mais involuntariamente divertidos da tevê aberta.

Por fim, concluiu: “Observar a doma de um potro é um aprendizado. Esta é a minha Porto Alegre”.

Jornal Cruzeiro do Sul
1 de Junho de 2010

por Abner Laurindo

Num local em que passam diariamente cerca de 130 mil pessoas, repórter se lança ao desafio de coletar boas histórias de pessoas anônimas

 

O melodrama das questões vernáculas

Posted: 30th maio 2010 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
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A julgar pela nossa teledramaturgia, o uso do subjuntivo é bem difundido entre os brasileiros. Emprega-se com grande espontaneidade o futuro não-composto: em “Ribeirão do tempo”, novela da Record, um senador diz que o filho “não verá” algo acontecer. Ele desabafa: “Não suporto essa sua cara de deboche infindável”, o que soa muito natural. O filho responde: “Pode perder as esperanças, coroa”.

Na trama, xinga-se com pungência, dizendo que Fulano é catastrofista e bobalhão. Os personagens argumentam como num romance de cavalaria, a exemplo da loira que pondera ao namorado: “Sem dúvida, mas o que eu quis ressaltar é que…”. Alguém usa a palavra “inexpugnável” e a mocinha cai de amores.

Quase no mesmo horário, na Rede Globo, um uso acentuado de ênclises que encheria de orgulho o velho gramático Napoleão Mendes de Almeida: “Meta-se com o seu casamento e deixe o meu em paz”, grita uma das mocinhas de “Passione”, no auge do rancor. A atilada utilização pronominal não cessa nem nos momentos mais difíceis, como quando a jovem noiva indecisa pede: “Será que você pode nos deixar a sós?”.

No campo das ofensas, os arroubos léxicos atravessam oceanos (“maledeto!”, “porca miséria!”) e gerações – uma certa personagem é “tinhosa”, o marido traidor é “indecente”. Também é possível pensar em voz alta utilizando-se da seguinte construção: “Eu tenho que tirar essa mulher da minha cabeça”.

Em “Uma rosa com amor”, do SBT, nem as adolescentes fogem à correção, dizendo: “Confesso que sinto um pouco de medo”. Tomados sempre por um ímpeto sintático impecável, os personagens se referem “à pobre da magricelinha da Miriam” e, numa discussão brutal, observam: “por favor, não me enfeze, porque eu posso acabar perdendo as estribeiras”. Conjuga-se muito bem no horário nobre.

Estatísticas finais de “24 Horas”

Posted: 23rd maio 2010 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
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Foram oito temporadas de ameaças terroristas à supremacia ianque. Quase duzentas horas – em tempo real – de derramamento de sangue, abuso de autoridade e falta de respeito ao patrimônio público. Chega ao fim amanhã a série 24 horas e, com ela, a saga patriótica do agente Jack Bauer, uma espécie de MacGyver moderno que, para defender a nação, realizou proezas como sequestrar o presidente dos Estados Unidos e abrir a jugular de um desafeto com os dentes.

Às fãs que, a essa altura, ainda cobiçam fervorosamente o protagonista e dariam tudo para participar de um jantar à luz de velas com o moço, saibam que é uma péssima ideia. Segundo nossas estatísticas, são 50% as chances de se ter uma morte trágica, 25% de ser torturada pela máfia chinesa ou assassinos árabes, 37,5% de descobrir que alguém de sua família é terrorista, 12,5% de ser usada como isca, 37,5% de ter seu filho sequestrado e 62,5% de ver um ente querido ser torturado por sua cara-metade. Seu pai também pode sofrer sérias ameaças (duas em cada oito vezes) e seu ex-marido, pior ainda (três fatalidades em oito). A conta fecha em mais de 100% porque tragédias simultâneas podem ocorrer com as mesmas mulheres ­­– a média de desgraças é de 2,87 por pretendente. Há também duas chances em oito de que você enlouquecerá ou ficará catatônica.

Em 24 horas, tampouco compensa ser presidente dos EUA: há uma probabilidade de 44,4% de ser morto ou ficar em coma devido a uma ação terrorista, 22,2% de ter o próprio filho assassinado, 11% de ser apunhalado pela esposa, 22,2% de sofrer uma ação bilionária de divórcio, e só duas chances em nove de deixar o cargo sem nenhum escândalo envolvendo parentes, tráfico de material atômico ou conspiração governamental. Isso quando não se é, por si mesmo, um traidor da nação (dois em nove presidentes demonstraram pendor para a atividade).

Até agora, faltando um episódio para terminar a série, que ao todo possui mais de uma semana corrida de duração, Jack matou 261 pobres-diabos, numa média de 32,6 por dia e 1,72 por hora. Salvou o mundo. Invadiu consulados, cometeu contravenções federais, torturou à larga, estripou um homicida e sacrificou inocentes em nome da pátria. Impossível calcular quantas ONGs em defesa dos direitos humanos foram criadas por conta da série.

Por diferentes motivos, a maioria fatais, ao menos quinze pessoas próximas a Jack Bauer se arrependeram de tê-lo como amigo. Destes, quatro sofreram ação direta do agente (três tiros e um decepamento). Os inimigos não se saíram melhor, já que a taxa é de quase 100% em vilões falecidos pelas mãos do justiceiro. Ou seja: não é uma boa ideia ser colega, namorada e nem parente de Jack Bauer (dos familiares, metade bateram as botas), mas também não compensa virar inimigo. Na dúvida, ao avistá-lo chegando com as compras, mude de calçada.

O Gênesis: Idem, Ibidem

Posted: 2nd maio 2010 by Vanessa Barbara in Ficção
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Revista Pesquisa/Fapesp
ed. 171 – Maio de 2010

por Vanessa Barbara

No princípio, Deus criou o céu e a terra. Foi no tempo de Sua iniciação científica, e devo dizer que o pré–projeto já parecia fadado ao fracasso. Como assim, “haja luz”? Francamente, Iaweh. Onde fica a metodologia? O referencial teórico? E a amostra de controle? Se não citar Antonio Severino, sinto muito — não me interessa se Você é o criador da ABNT.

Era evidente que o Senhor, a despeito de ser aquele que é, não havia lido a bibliografia obrigatória (GAUTAMA, 563 d.C.; VISHNU, 1254 a.C.; ALLAH, 570 d.C.; OLORUM, 1845 d.C.; e DARWIN, 1859). Se o tivesse feito, saberia que isso tudo já foi experimentado e devidamente descartado nos melhores círculos acadêmicos. Tomemos como exemplo o cronograma de trabalho, de risíveis sete dias — no último Ele ainda queria descansar às custas da Fapesp. No plano de marketing pessoal, chegou a declarar à imprensa que, ao apreciar sua obra, “viu que era bom”, ignorando assim toda e qualquer noção de objetividade inerente ao ofício.

A verdade é que o Universo foi apenas um mal-entendido no formulário de concessão de bolsas de pesquisa desta instituição. Deus, que é obviamente um iniciante, achou que precisava de toda essa parafernália planetária para criar um “universo significativo de amostragem”. E deu no que deu. Hoje ele tem claras dificuldades para manejar seus experimentos com um bilhão de chineses, sobretudo quando se trata de testes duplo-cegos — fica difícil driblar a onisciência.

No segundo dia, o Todo-Poderoso disse: “Que a terra verdeje de verdura”, e foi muito engraçado. No terceiro dia, fez os dois luzeiros maiores: o grande luzeiro como poder do dia e o pequeno luzeiro como poder da noite. Na quinta-feira, fervilhou a água de seres vivos e aproveitou para passar um café. Dali a pouco foi a vez de moldar os animais terrestres (ref. hipopótamo). No sexto dia, o que era pra ser uma pesquisa inútil, porém inofensiva, tornou-se um pesadelo para as agências governamentais que a financiavam. Deus criou o homem à sua imagem e, não contente, removeu uma costela do ser mencionado e a mergulhou, só por diversão, num amontoado de lama — exatamente como fez aquele sujeito com a orelha no lombo do rato. Então soprou. Sabe-se lá por que, o experimento deu certo: dali saiu uma mulher, instruída para ser fecunda, multiplicar-se e subjugar os outros animais que rastejam sobre a terra.

A seguir, passou a redigir o relatório de sua monografia, que começava assim porque Deus é prolixo: “Adotaremos o método intrínseco, estético e hermenêutico em sentido restrito (existencial-ontológico) e em sentido amplo (de interpretação inespecífica), partindo da exegese textual para a conclusão sobre o todo do Universo, método que se ajudará com o retórico-estilístico e o comparativista, todos se relacionando com o psicológico, o social e o histórico-cultural”. Percebam a utilização do plural majestático, que nesse caso é plenamente adequada. Além disso, vê-se que o Magnânimo estava confuso em todos os sentidos (tanto ontológicos quanto sintáticos). Há limites para a onipotência, e eles são as normas regulamentares para a apresentação de monografias.

Em todo caso, a hipótese inicial do Alfa/Ômega era simples: “Não vai dar certo”, escreveu, citando AVICENA, 1033 (que tentou transformar pão em ouro), e os partidários da busca pelo moto-perpétuo. A título de curiosidade, o Criador inseriu uma variante maléfica na redoma de testes: a serpente. O resultado dessa empreitada empírica pode ser resumido na seguinte resposta, transcrita pelo próprio Velho a partir de uma entrevista qualitativa com foco em história oral: “Não sei onde está Abel. Acaso sou guarda de meu irmão?”.

Abandonou-se, com isso, toda e qualquer metodologia razoável. Resignado, Ele decidiu radicalizar em nome da ciên­cia. Ora, apesar do que dizem, o Deus do Velho Testamento não é vingativo; é apenas um camarada curioso e interessado em estripulias empíricas. Planejou o dilúvio, por exemplo, para ver no que dava. Mandou um sujeito matar o próprio filho num teste de psicologia comportamental. Inventou um experimento quantitativo com nuvens de gafanhotos e mais meia dúzia de pragas que assustaram o faraó a valer. Enfim, fez o que bem queria, movido pela sede de saber.

Uma de suas maiores cobaias foi Jó, um mero aluno da graduação que sempre fora íntegro e reto, temia a Ele e se afastava do mal. O teste começou como um estudo sério, mas logo descambou para uma aposta inconsequente entre o Longânimo e um certo pesquisador diabólico. Visto que a vida de Jó era perfeita, o tal pesquisador disse ao Senhor que assim era fácil ter um assistente, e duvidou que Jó continuasse fiel caso caísse em desgraça. Seguro de sua popularidade, Deus deu carta branca ao rival para fazer o que quisesse com o pobre rapaz, que, aliás, nada tinha nada a ver com isso — leu toda a bibliografia optativa, cursou as aulas de estatística, sabia redigir os formulários etc. Aquilo não era justo. Pois o Tinhoso matou-lhe todos os bois, os servos, os camelos e os filhos, provocou um incêndio, cravou-o de feridas e ficou esperando. Jó hesitou, mas no final se manteve leal ao mestre, que aproveitou a ocasião para pedir-lhe um fichamento.

A história não seria tão trágica se Deus fosse uma entidade menos avoada. Enquanto escrevia a monografia propriamente dita, deixou seus objetos de pesquisa fugirem do controle. Em poucos milênios, enquanto Ele estava distraído, um camarada atacou o outro com um atum congelado, uma velhinha decidiu viver com onze cisnes em seu apartamento de 25 metros quadrados, uma universidade criou a disciplina “História do Cocô” e um glutão tentou comer o próprio peso em pipocas. Quando Deus terminou de escrever o Abstract, por fim, ergueu sua Santa cabeça e viu que estava tudo fora dos eixos. Havia demorado muitas eras para entender os padrões de citação bibliográfica relativos a verbetes de enciclopédia — também tinha certa dificuldade em ordenar alfabeticamente os autores SCHWARCZ, SCHARZ e SCHNITZLER. Lá embaixo, o caos reinava, livre de qualquer tentativa de controle científico.

Foi quando Ele teve uma grande ideia que lhe garantiu o ingresso no Doutorado e salvou (literalmente) a humanidade. Rascunhou o último capítulo de sua tese, intitulado: “O Apocalipse”, ou “A vindima das nações”. O objetivo era dar prosseguimento aos estudos de PESTE, 666; FOME, 2012; GUERRA, 2012; e MAGOG et al., 2082, pondo fim ao ciclo experimental sem, no entanto, cair no pessimismo. Aparentemente orientado pelo pesquisador citado na história acima (BESTA, 2012), ele redigiu: “Ficarão de fora [do céu] os cães, os mágicos, os impudicos, os homicidas, os idólatras e todos os que amam ou praticam a mentira”.

Foi assim que, com cavalos, trombetas e a danação eterna dos pobres mágicos, Deus fechou em grande estilo sua pesquisa “Criação do Mundo — Aspectos Pitorescos da Trajetória do Ser Humano sob a Ótica do Senhor de Todos os Exércitos”. Ganhou um glorioso dez — glorioso mesmo.


Link para o artigo original: http://www.revistapesquisa.fapesp.br/?art=6395&bd=2&pg=1&lg=

A colecionadora de soluções caseiras

Posted: 1st maio 2010 by Vanessa Barbara in Crônicas, Revista Piauí
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Maio de 2010

por Vanessa Barbara

O ideal era fazer cinco refeições diárias, mas o dentista recomendava escovar os dentes o mínimo de vezes ao dia, a fim de preservar o esmalte. “E agora?”, perguntou-se Dolores

Tudo começou com o conselho que veio com um biscoito chinês: “Para tirar manchas de molho shoyu, é só esfregar nabo no tecido. A mancha sai na hora.” Naquele instante, sentada à mesa da cozinha diante de restos de yakissoba, Dolores teve uma epifania. Nabo e molho shoyu, mas que ideia engenhosa. Por que não podia ser tudo assim, simples e barato?

Sem demora, foi à banca e requisitou ao jornaleiro o maior número de revistas femininas que pudesse carregar. Pediu tudo emprestado, anunciando que anotaria as partes importantes e que devolveria o material sem danos ao proprietário. Dolores estava à cata de dicas – de qualquer procedência ou funcionalidade, fossem de beleza ou de mecânica automotiva. Pretendia se tornar uma especialista em improvisações mambembes.

Começou por lavar os cabelos diariamente com uma solução de água gelada e vinagre, a fim de conferir maior brilho às mechas. O cheiro de vinagre, porém, atraiu um batalhão de moscas, que, por sua vez, foram espantadas com a colocação estratégica de vasos de manjericão pela casa. Dolores entrou então num círculo virtuoso: com as moscas mortas, fez adubo para o manjericão. Com o manjericão, aproveitou para efetuar gargarejos relaxantes. Mas como continuasse a usar a solução de água com vinagre para enxaguar os cabelos, tudo quadruplicou: as moscas, os gargarejos e os vasos de manjericão.

Dolores passou a seguir todos os macetes sem fazer distinção se o consigliere era um profissional da área ou um astrólogo amador que gostava de dar pitacos. Uma nutricionista lhe indicou a dieta de Atkins, por exemplo, mas ela acabou preferindo a sugestão de uma vizinha meio surda – a dieta do alfabeto – só por estar na moda. E, além do mais, porque uma revista postulou que “os cientistas descobriram que se ater ao plano de dieta é muito mais importante do que o plano em si”.

Assim, Dolores começou o mês se alimentando de aipo, acelga, ameixa e açaí. No dia seguinte, comeu basicamente bolo. Depois, carne cozida com cebola e carqueja, cordeiro com calda de cereja, caqui e coco. Veio o dia de doce de damasco, doninha e Danone. Passou um dia inteiro à base de inhame. No dia do K, só pôde ingerir montanhas de kibe (em licença poética), kiwi e kebab, de que ela aliás não gostava. Resolveu persistir até que, depois de um jantar com vagem, vatapá e vôngole, foi ficando sem opções. No W, ainda conseguiu recorrer aos waffles, e, no Y, às iguarias japonesas com sorvetes Yopa. Mas e no Z? Não era época de zebras.

***

Havia o problema dos conselhos autoexcludentes. Na revista Magra e Feliz e em outras 742 fontes insuspeitas, especialistas afirmaram que o ideal era fazer cinco refeições diárias, respeitando a lei das pequenas porções. Isso para quem desejasse emagrecer de forma saudável. Já o dentista de Dolores lhe recomendara escovar os dentes umas poucas vezes ao dia, a fim de preservar o esmalte – ou seja, melhor seria comer tudo de uma vez, numa louca tarde de setembro. “E agora?”, ela pensou, sem achar uma saída.

Por via das dúvidas, decidiu hipnotizar-se, repetindo o seguinte mantra: “Eu estou a um passo de me tornar mais e mais magra.” Empastelou a comida de alho (que ajuda a baixar o colesterol), energizou-se com suco de cereja batido com maçã (que contém anti-inflamatórios e antioxidantes), usou hashis em todas as refeições (para comer menos) e deu uma mordida a cada dez minutos na barra de cereal, conforme o preconizado.

Dolores também comprou o livro Dicas Secretas, da Seleções do Reader’s Digest, a bíblia definitiva que prometia revelar os segredos de mecânicos, construtores, advogados, contadores, vendedores de automóveis e demais especialistas que trabalham com fatos ocultos, por trás das engrenagens do sistema. O livro lhe assegurava “o maior número possível de segredos que não apenas garantirão os seus interesses como também o farão sentir-se um gênio”.

Alguns exemplos: “Afaste a febre do feno com mel”, “Evite hematomas com cebola” e “Combata a caspa com enxaguante bucal”. Ao ler o volume, que é uma espécie de manual de autoajuda para acabar com todos os manuais de autoajuda, não descobriu nenhum segredo escandaloso (tipo: “Câncer: é só passar pasta de dente”), mas obteve 1 503 dicas genéricas para ter sucesso em nossa estada transitória pelo planeta.

Como continuasse gordota, mas agora melancólica, Dolores começou a batucar, já que as pesquisas demonstravam que “batucar em grupo é uma ótima forma de aliviar o estresse”. Um estudo comparou a composição química do sangue de cinquenta pessoas e concluiu que as que estavam batucando tinham níveis muito mais baixos de cortisol do que as que estavam apenas assistindo ao espetáculo. Passou a mastigar mirtilos (para melhorar a visão) e a carregar na bolsa uma série de objetos curiosos: um frasco com borrifador de vinagre branco e um pote com bicarbonato de sódio, para neutralizar picadas de abelha e vespa.

No capítulo sobre bem-estar, descobriu que espetos de churrasco que pegam fogo são um drama quase insolúvel para o ser humano. “Os espetos de metal parecem um aperfeiçoamento – até a hora de virar os churrasquinhos. Aí, a cada vez que você gira o espeto, a comida gira junto. Os espetos achatados trouxeram mais esperanças, mas os apreciadores de comida árabe que tentam fazer kebabs em casa logo percebem que as cebolas, pimentões e especialmente os cogumelos muitas vezes se partem quando você tenta enfiá-los”, afirma o redator, repleto de angústia.

***

Dolores aprendeu a evitar coágulos no pulmão, a tomar óleo de peixe contra as artrites, a assar o frango de bruços e a reconhecer os múltiplos benefícios do funcho e da água estupidamente gelada. Descobriu que tabletes para limpeza de dentaduras servem também para lustrar o vaso sanitário. Virou especialista em bricolagem e cultivo de cebolas em apartamentos. Comprou um tomateiro, quinze frascos de ginkgo biloba e improvisou uma joelheira de jardinagem, apesar de não ter jardim.

Primeiro, foi a favor das promoções do tipo dois por um (“São imperdíveis”, dizia o livro). Depois, contra (“Tenha discernimento”, ponderava a mesma obra, mais adiante). No prefácio, uma explicação do editor para os conselhos paradoxais: “Este é um mundo cada vez mais confuso”. Dolores também aprendeu a economizar, doando seus bens em vida – como economizar estando morta? – e escolhendo um tecido para forrar o sofá que lhe caísse bem, feito um vestido. “Vai ficar lindo você sentado nele”, anunciou o redator do livro, ainda confuso em termos de gramática.

Certo dia, Dolores deixou cair ovos no chão e decidiu usar uma de suas dicas de limpeza: polvilhou uma generosa quantidade de sal sobre o aglomerado, esperou cerca de cinco minutos e só o que conseguiu foi uma massa cremosa e decididamente nojenta de ovo cru temperado. Que ela veio a aproveitar para fazer uma máscara hidratante de ação adstringente.

“Há povos de travesseiro e povos sem travesseiro”, teorizou o antropólogo Marcel Mauss, em 1934. “Há populações que se espremem para dormir em torno do fogo, ou mesmo sem fogo. Há povos de esteira e povos sem esteira. Há, enfim, o sono de pé”, completou, em sua ânsia científica de categorizar os tipos humanos.

Podemos ir além e dividir o mundo entre aqueles que usam tesourinha de unha e os que preferem o “trim”. Uns seriam mais habilidosos com a mão esquerda e os outros, mais detalhistas. Podemos também repartir a humanidade entre os que gostam de botar o feijão em cima do arroz, em oposição aos que separam metodicamente os alimentos ou usam a fava como substrato. Hoje em dia, é essencial optar entre ninja ou samurai, entre fio ou fita dental, entre PC ou Macintosh, entre gato ou cachorro, porco ou chouriço. É possível aglutinar os elementos em subgrupos: o usuário de Mac é eminentemente samurai, gosta de gatos e usa fita dental. Há uma clara propensão ao chouriço.

Não se tratam de opções corriqueiras e sem importância, como aderir ao gongorismo, abraçar a mitologia hindu ou defender a revolução armada. Neste caso, trata-se da maior das questões, do manifesto definitivo que marca o posicionamento de cada um neste planeta: o que você prefere, rúcula ou agrião?

Alguns dados para facilitar essa decisão quase metafísica: a rúcula, também chamada de mostarda-persa, popularizou-se a partir dos anos 90. Antes disso, era uma planta selvagem, ignorada nos campos da culinária e da botânica. Hoje é utilizada em refeições devido ao seu gosto forte e amargo, capaz de anular o sabor dos outros alimentos. Trata-se, portanto, de uma usurpadora de paladares. Já o agrião é popular desde a Idade Média, quando era utilizado como emplasto para combater o escorbuto. Possui alto índice de vitaminas, ferro, ácido fólico, potássio, cálcio, fósforo, iodo e betacaroteno, além de supostas propriedades anticancerígenas. Dizem que também serve para curar verrugas. Por que, então, a rúcula reina soberana em nossas saladas?

O agrião é proletariado, é perseverança, é a gente simples da nossa terra. E disso muitos têm vergonha. Não percebem que o bom acólito da causa agriã está fazendo uma profissão de fé, uma opção clara e simples, como quem diz: “Sou a favor de bebês em geral. E de filhotes de tartaruga”. Até hoje, o discípulo pró-agrião não se conforma com a supremacia da rúcula, consolidada nas duas últimas décadas. De um dia para o outro, surgiram certas folhas mais amargas em meio ao tradicional agrião-alface-e-pepino. Depois veio o tomate seco, a mussarela de búfala e os croutons. Em poucos anos, a rúcula sufocou por completo os caules do agrião, esta valorosa verdura, que praticamente sumiu do mapa. (Só no futebol é que se continua a dizer “zona do agrião”, em referência à pequena área.) Fora os locutores esportivos, ninguém mais tem a coragem de advogar em favor do Nasturtium officinale.

A rúcula é burguesa e petulante. Quem a aprecia fatalmente se posiciona do lado errado da luta de classes, mesmo sem a intenção consciente de esmagar o campesinato. O pró-rúcula escolhe Higienópolis em vez de Santa Cecília, táxi em vez de metrô, caipirinha de lichia em vez de groselha Milani. É adepto de alguma corrente new age e saboreia seus vegetais folhosos com molho italiano. A rúcula, afinal, não tem caule significativo e nem sombra de personalidade. Ela anda de salto alto, frequenta os bares da Vila Madalena, dá escândalo em fila de banco. Apoiá-la é aplaudir a mais-valia e a exploração dos fracos – a rúcula faz as unhas, enquanto o agrião as rói.

Vamos dar uma chance ao agrião e reverter essa iniquidade histórica.

Em 13 de março, comemorou-se no mundo inteiro o Dia do Número Pi. Quem perdeu a oportunidade de idolatrar essa curiosa constante matemática não precisa se desesperar: este ano ainda teremos o Dia do Aço, o Dia da Estrada de Rodagem, o Dia do Disco Voador, o Dia do Protético e, por fim, o Dia do Protesto, em 14 de agosto. Convém já ir planejando. Será uma boa oportunidade de ir a campo, subir num caixote e se irritar com alguma instância do cotidiano, como a violência, a poluição ambiental, o urso panda e a dieta de baixas calorias. Quem tiver uma mesa, que dê um soco vigoroso no móvel. Impropérios de toda sorte estão liberados nesse dia, bem como cartazes com palavras de ordem e manifestações rancorosas em frente a órgãos públicos.

Entre os protestos mais ilustres da história, temos o dia de jogar chá no mar – a Festa do Chá de Boston –, e o momento de atirar sapatos no presidente. Não podemos esquecer de Robert Opal que, em 1974, correu pelado no palco da cerimônia do Oscar, e do neozelandês que abaixou as calças diante do príncipe Charles e da princesa Diana. Os manifestantes mais simpáticos, porém, são belgas e promovem ataques de torta doce a celebridades como Bill Gates e Marguerite Duras. Costumam utilizar tortas de creme de ovo quando o alvo é móvel, tortas-merengue de limão para ataques bruscos e tortas de creme de tofu contra economistas. Igualmente dignos de nota são aqueles que se reuniram em torno do Pentágono, em 1967, e concentraram esforços para fazer o prédio levitar. Ou o grupo de cariocas que saiu às ruas com um penico na cabeça, no protesto “Chega de cocô”. Uma simpatia especial é reservada à Frente de Libertação das Barbies, que substituiu os chips de voz de bonecos da série Comandos em Ação e de bonecas Barbie; as meninas compravam Barbies que diziam “A vingança é minha!” e os meninos ganhavam soldados que gritavam “Vamos planejar nosso lindo casamento!”. (Mais sugestões edificantes podem ser encontradas na dissertação de mestrado de Érico Assis, “Táticas lúdico-midiáticas no ativismo político contemporâneo”, disponível na internet.)

Eu, particularmente, aprecio protestos em que ninguém sabe bem o que está fazendo. São as chamadas caminhadas em grupo. Nelas, alguém pode gritar, sem motivo: “Fora, lumbago! Saia já daqui”, e ser estrondosamente seguido por uma multidão de militantes. Um rapaz com cinto de tachas já providenciaria o cartaz: “Fora, lumbago” e a procissão se dirigiria automaticamente a Brasília, com o propósito de pôr fim à bancada lobista pró-ciática. “E eu que só saí de casa para comprar broas”, diria uma senhora, pega de surpresa pelo fluxo de caminhantes, mas já pronta a dar entrevista às redes de tevê.

Contudo, não há necessidade de ter ideias ou executar ações para protestar. É possível apenas falar, como fez o francês Lluis Colet por 124 horas seguidas, embora seu discurso tenha se perdido no caminho e desandado numa palestra sobre Salvador Dalí e a cultura catalã. Outro exemplo que pode servir de inspiração é o púlpito de um programa de tevê que passa nas madrugadas de sábado, no qual Rubinho Barrichello já reclamou de ser míope e insone, uma atriz declarou que “aniversário que é aniversário tem que ter brigadeiro” e os adolescentes protestam contra a fila da cantina e o imperialismo americano. Num momento memorável, um rapaz chamado Vitor subiu à tribuna e esbravejou: “Eu protesto contra a cirurgia plástica porque eu operei o nariz e ainda sou narigudo”. Em seguida, um outro cidadão decidiu protestar contra “quem ainda acha que pum não é cultura”.  Fica aí a sugestão.

Apontamentos de um fissurado em games

Posted: 1st março 2010 by Vanessa Barbara in Crônicas, Revista Piauí
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Piauí n. 42
Março de 2010

por Vanessa Barbara

Fragmentos encontrados por um arqueólogo no HD de Darth_Gonzales15

Meu nome é Darth_Gonzales15 e a realidade continua a me decepcionar. Hoje acordei cedo — ainda não havia escurecido — e fui à padaria, onde as broas pareciam 2D e o mundo não chegava nem perto dos gráficos do Crysis. Odeio o mundo real. É sempre uma decepção opaca, lenta, antiquada e sem surround 5.1. Isso sem falar no sol, uma fonte que emana calor de verdade e não tem controle de contraste.

Estando sem a minha pintura de guerra e a clava dupla de ganchos mortíferos (Kratos!), decidi partir para a tática de espreita dentro da guarnecida fortaleza panificadora, como se estivesse num game do gênero stealth. À maneira do caolho Garrett (protagonista de Thief: The Dark Project) ou do ninja Rikimaru (Tenchu: Stealth Assassins), passei pela porta sem ter que alvejar ninguém, servindo-me apenas da astúcia e de modos furtivos. Soltei uns dez shit, mas consegui.

Por conta disso, ganhei dez pontos de estratégia e um bônus de resistência física. Também logrei passar despercebido pelo balcão de frios, queijos e embutidos graças às técnicas de camuflagem aprendidas em Metal Gear Solid 4: Guns of the Patriots, em que o herói fica idêntico à calçada, ao barril ou à lixeira mais próxima. “Eu sou apenas um velho matador… Contratado para fazer um trabalho sujo”, exclamei, saudoso do game sangrento que vendeu quase 5 milhões de cópias só no ano passado. Mesmo tendo diálogos cafonas e uma inexplicável obsessão fílmica pelos glúteos do velho Solid Snake.

De meu posto avançado entre as bisnaguinhas, tentei executar uma varredura infravermelha do ambiente analógico e hostil, mas não consegui localizar ciclopes, harpias, hidras e centauros. Só o português do caixa, o seu Manoel, que aparentemente esqueceu de personalizar sua armadura e estava de regata contando moedas de 25 centavos. Com os meus botões (Alt e F5), calculei que ele seria um tipo de goblin ou uma criatura primitiva dos mares. Força 2, Habilidade 3, Resistência 1 e Poder de Fogo 5. No final, era só o português mesmo, e nem me deixou pedir fiado.

A jogabilidade do mundo real está cada vez mais fraca.

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Passei o dia organizando os 12 quilômetros de fiação do meu centro eletrônico de entretenimento. Ao todo tenho dez diferentes consoles. Na linha de frente estão os videogames tradicionais, os que rodam jogos na tela da tevê e têm um controle chamado joystick. São eles: os Playstations 1, 2 e 3 (este último a mais avançada de todas as máquinas de brincar da história), um Nintendo 64, um Dreamcast, um Wii com prancha WiiFit, um Mega Drive com Sega cd (eu caí, desculpa) e um TurboGraphx-16 tardio, que levei numa troca desvantajosa. São traquitanas robustas, confiáveis e, em sua maioria, destravadas para rodar todo tipo de jogos piratas, digo, genéricos. O que não me impede de gastar 239,90 reais num lançamento para ps3. Meu sonho? Um Sega Saturn circa 1995 com conversor de tevê digital, para testar Panzer Dragoon Saga. (O Mojo disse que é bom.)

Depois vêm os portáteis, como o psp e o Nintendo ds, febre entre os mais jovens – diz-se que uma garota perdeu o olho após jogar 17 horas seguidas de Professor Layton and the Curious Village em seu ds cor-de-rosa. Esses têm bateria, podem ser levados no bolso e permitem iniciar uma partida de Mario Kart com a criança de 10 anos que está sentada atrás de você no avião.

Por fim, compõem minha caverna tecnológica três singelas geringonças que não são videogames, mas servem a tão nobre função: o iPhone, o MacBook Pro e o pc. Esse último contém emuladores para todo tipo de plataforma; são softwares que imitam tanto um Master System quanto calculadoras hp, mainframes da década de 50, sistemas operacionais obsoletos e todos os Zeldas jamais criados pelo homem. Tirando os de Wii e GameCube. Mas enfim.

Essas engenhocas melífluas estão todas ligadas, por meio de benjamins contíguos, nas tomadas de um único estabilizador furreca – quando aciono tudo ao mesmo tempo, Furnas emite um comunicado declarando estado de emergência.

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Acabo de empreender uma jornada na frente da tevê de 83 horas de Dragon Quest VIII: Journey of the Cursed King. As primeiras vinte horas foram boas, mas meus pés começaram a inchar e faltou substancialidade à trama, que versa sobre um estranho ente gelatinoso. O chefe final é muito fácil e eu terminei no nível 44. Estou pensando em jogar de novo.

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Fui nadar à tarde. Boa notícia: a água de Endless Ocean está cada vez mais convincente, e juro que vi um pinguim. Ou era uma tartaruga? No mais, depois de treze horas sem me alimentar, consegui uma montaria voadora épica em World of Warcraft, com drop rate de 0,01%. Sou famoso agora. Além disso, aderi à modalidade de multiplayer para 32 jogadores do Grand Theft Auto IV, o que certamente irá revolucionar minha vida social. Nada como roubar carros e promover a matança com uma gangue de amigos verdadeiramente cossacos!

Essa história de que game sangrento incita a violência não está com nada. Eu, por exemplo, nunca congelei ninguém só para arrancar a perna do indivíduo e com ela arrebentar seu crânio, como o Sub-Zero de Mortal Kombat, que, aliás, também costumava transformar os inimigos em bebês. Tampouco tenho pendor para ser um zumbi canibal (Resident Evil), que dirá para duplas decapitações, desmembramentos aleatórios e demais homicídios grotescos. Entre os meus favoritos estão o massacre da serra elétrica de Gears of War, a decapitação ritualística em Silent Hill II, o esfaqueamento de uma desconhecida em BioShock, o aparafusamento de uma donzela em Phantasmagoria, a queda súbita de Mario em cima da tartaruga (Super Mario), e, por fim, o afogamento do porco-espinho Sonic, que é muito triste e cruel (Sonic the Hedgehog).

Até no inocente The Sims, pacato jogo de simulação de vidas, é possível matar seus próprios personagens por emparedamento, sujeira, incêndio acidental ou mesmo removendo a escada da piscina, deixando o pobre-diabo se afogar.

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A interface do mundo real me irrita. Por exemplo: por que as pessoas não nos dão informações mediante a resolução de um enigma, como em Professor Layton? E por que não há bolos espalhados pela rua, como em Fat Princess, a saga da princesa gorda? Na área médica, por que não é possível extirpar tumores em dois segundos com um bisturi a laser, como em Trauma Center: Second Opinion? E como ficam as vidas infinitas, o combustível inca que dá força e o unguento satânico que ameniza feridas expostas? Será que ninguém pensou em reflorestar o mundo à força, destroçando o Oeste americano com milhares de sequóias, tal qual o herói de Sam & Max? É por isso que sempre digo: guitarra, só plugada no ps3. Exercício, só o jogo da galinha voadora na prancha do WiiFit.

Em uma palavra: papapishu.

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Hoje é 24 de fevereiro e meu primo Nuno, que mora em Nova York, já está jogando Heavy Rain: The Origami Killer, “uma aventura gráfica dramática para maiores de 18 anos”. Com mais de 2 mil páginas de roteiro, o lançamento de ps3 é aguardado pelos gamemaníacos como dom Sebastião pelos portugueses após Alcácer Quibir. “Argumento forte” e “perfeição estética” são algumas das propaladas qualidades do game, que, para o meu primo Nuno, é bem legal. “Dá para aprender a fazer origami enquanto o jogo instala seus 4,2 gigabytes obrigatórios no hd”, afirmou ele.

Em resumo: boa noite e até a Páscoa.

Neste Carnaval, a Secretaria Especial da Ordem Pública do Rio de Janeiro decidiu aumentar o cerco contra o xixi de rua. Dezenas de foliões foram detidos no ato de urinar em logradouros da cidade, antes ou depois da passagem dos blocos. Segundo as autoridades, o fenômeno da micção descarada é comum em grandes eventos, gerando para os cofres públicos um prejuízo de 280 mil litros em solução de eucalipto. O incontinente infrator é fichado por ato obsceno e atentado ao pudor, com uma pena que pode chegar a doze meses de prisão ou multa.

Porém, ao que tudo indica, as organizações ambientais discordam dos homens da lei: “Quem não faz nada pelo meio ambiente pode fazer xixi no banho”, postulou a Fundação SOS Mata Atlântica, numa campanha recente que também louvava o xixi na árvore e o xixi na chuva. Para os ambientalistas, urinar debaixo do chuveiro é deixar de acionar a descarga e poupar de 8 a 12 litros de água por dia. O mesmo aconteceria nas modalidades “na árvore”, “no mato” e “na chuva”, que sairiam de graça no acirrado acerto de contas da ecologia global – as primeiras ainda teriam a vantagem de adubar os vegetais. (É verdade que a campanha também recomenda lavar a salada e as roupas íntimas no chuveiro, mas enfim.) O fato é que o tradicional alívio na privada perde apenas para o pipi na piscina no quesito desperdício de água.

Isto posto, vem a dúvida: seria o xixi de rua ambientalmente aceitável ou, além de repugnante, uma falta de educação passível de indiciamento? Muitos se posicionaram contra a liberação diurética não convencional, enquanto outros saíram urinando à larga e passaram a quarta-feira de Cinzas na companhia de Salvatore Cacciola e de um arlequim triste no presídio de Bangu. Na esperança de enriquecer o debate e ajudar o leitor a decidir seu posicionamento, elencamos aqui algumas das mais importantes estatísticas sobre o xixi na vida moderna, que se seguem.

Primeiro, aos desavisados: comer aspargos pode deixar o xixi com cheiro ruim. Isso ocorre porque algumas das substâncias da leguminosa contêm enxofre, que é metabolizado e provoca um aroma desagradável na urina de 40% da população mundial. Em No caminho de Swann, Marcel Proust trata dessa questão e, laudatório, declara que o bom aspargo “transforma meu penico num frasco de perfume”. Outro grande achado científico é que os peixes urinam. Abelhas também. E que repolhos adubados com xixi humano crescem mais frondosos.

De acordo com estudos, xixi verde acusa presença de azul de metileno no organismo; xixi laranja é sinal de muita cenoura e abóbora. Xixi rosado pode ser ingestão exagerada de beterraba e, se o seu xixi fica fosforescente ao sol, procure um médico ­– porque isso é muito esquisito.

Ao descer do módulo lunar, o astronauta Edwin Aldrin exclamou: “É lindo e desolador”, e imediatamente ficou com vontade de tirar água do joelho. Foi o que fez, aos olhos de todo o universo, dentro de um traje reforçado com 21 camadas de diferentes materiais. Foi um grande passo para a humanidade, já que o último astronauta a esvaziar a bexiga em órbita, Alan Sheppard, não deu tanta sorte no sentido mais clássico da impermeabilização indumentária: teve que suportar uma poça amarela que lhe subiu pelas costas e alojou-se na área do pescoço. Fosse um folião, ainda seria preso ao som de “Chiquita bacana, lá da Martinica” e acabaria em Bangu.