Lado a lado

Posted: 4th fevereiro 2010 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo
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A convite da Folha, os escritores Vanessa Barbara, Xico Sá e Joca Reiners Terron relatam suas experiências em restaurantes caros e apertados

Folha de S.Paulo – Ilustrada
4 de fevereiro de 2010

A vida dos outros

Filipe Redondo/Folha Imagem

Piselli r. Pe. João Manuel,1.253, Cerqueira César,tel.0/xx/11/3081-6043

VANESSA BARBARA
ESPECIAL PARA A FOLHA

O Cidão só fala bobagem.

Ele é venenoso, fuxiqueiro e, segundo uma mulher de óculos, tem o pé grande. Não conheço o Cidão, mas é como se conhecesse: só se falou nisso na mesa ao meu lado, no restaurante Piselli. Em meio à decoração de latas de ervilha e garçons que se espremem para passar entre as cadeiras, a clientela vai ficando mais barulhenta em razão direta ao esvaziamento da adega.

Na mesa maior, ninguém segura a maledicência contra o Cidão. Até a senhora sentada com o marido atrás de mim já sabe que o supracitado usa camiseta regata, promove “churrascos poéticos” e arrumou encrenca com um delegado, numa história longa e sem sentido que foi interrompida com a chegada da conta.

Em restaurantes com mesas muito próximas, os homens são os que falam mais alto, sobretudo se estiverem tentando impressionar alguém na outra ponta do recinto. No Piselli, sexta à noite, é normal haver um burburinho geral e indistinto, mas também é possível escutar intimidades, conselhos, bravatas, frases sem sentido (“ele abriu uma cratera na minha cabeça”) e impressões aleatórias sobre qualquer tópico do conhecimento humano. A menção a Nova York foi ouvida seis vezes, contra duas ocorrências da palavra “ético” e uma de “calefação”.

Um jovem casal passou uns bons dez minutos se arrependendo da sobremesa escolhida, antes mesmo que ela chegasse.

Do outro lado do salão, um rapaz com bronzeado cor de laranja exclamou: “Não tem salsicha aqui nesta merda!”, no contexto de uma narrativa prolixa que se desenrolava havia cerca de 15 minutos.

Além do entretenimento involuntário e da variedade de opiniões sobre assuntos de interesse geral, a vantagem das mesas coladas é que se pode julgar impiedosamente os vizinhos. A poucos palmos de distância, é absolutamente razoável rotular uma mulher de megera e um homem de moleirão, num relacionamento que, a julgar pela conversa, vai durar no máximo até domingo. Ao meu lado, havia um desses casais: ela monopolizava a conversa e falava com a boca cheia.

Quando ele manifestou opinião própria sobre um assunto, ela discordou com um seco “não” e ele reconsiderou: “É, pode ser”. A mulher prosseguiu, triunfante: “Querer, eu não quero. Mas não significa que eu desquero”. São momentos como esse que me fazem gostar de música ao vivo.


VANESSA BARBARA é jornalista, tradutora e cronista. Publicou “O Livro Amarelo do Terminal”, Prêmio Jabuti de reportagem, e “O Verão do Chibo”, com Emilio Fraia.

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0402201019.htm

Pop cult na biblioteca

Posted: 1st fevereiro 2010 by Vanessa Barbara in esquinas, Reportagens, Revista piauí
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Piauí n. 41
Fevereiro de 2010

por Vanessa Barbara

Dieta de pífanos e parlendas reúne os mais longevos luminares da cultura local

Ao telefone, a piauiense Andréa Sousa tentava angariar reis magos para uma apresentação de Natal: “Como assim, Quantos reis magos são? Que tipo de cristão você é?”

Andréa é contadora de histórias e coordenadora de eventos da Biblioteca Pública Belmonte, no gigantesco bairro paulistano de Santo Amaro. A instituição, que em 2007 se especializou em cultura popular, oferece atrativos como esse do fim do ano, parte das comemorações do centenário de nascimento de Mestre Vitalino, o grande ceramista pernambucano. Foram dois meses de exposições, oficinas de modelagem, peças de teatro, uma feira típica de Caruaru (com réplica da casa do artista), emboladores de coco, declamadores de cordel, mamulengueiros do porte de Valdeck de Garanhuns e, como se pouco fosse, um encontro de “sensibilização musical” com a Banda de Pífanos de Caruaru.

Para gáudio geral, a participação dos músicos coincidiu com o Espaço Gourmet, uma tradição mensal da biblioteca. Trata-se de uma espécie de degustação literária cujo objetivo consistiria, nas palavras de Andréa, em “aguçar o apetite pela cultura popular”. As possibilidades do cardápio matariam de inveja qualquer praticante de invencionices da cozinha molecular. Amostra: saladinha de trovas e parlendas como entrada, medalhão de cordel guarnecido de histórias de enrolar como prato principal e, na sobremesa, bolo de trava-língua com recheio de adivinhas.

As mesas estavam postas para receber os comensais. A primeira a chegar foi Leda Abs Musa Kraml, ex-educadora sanitária que tem 88 anos e uma coleção de oitenta presépios. “Meu nome vem do latim leda, que quer dizer ‘alegre'”, avisou ao se instalar na mesa principal. E, enquanto Andréa beliscava uma prosaica banana, foi desfiando, meio a troco de nada, histórias em que o presépio de barro que acabara de ganhar da Secretaria de Cultura de Teresina se misturava com aquela imperatriz “baixotinha e manca”, a Teresa Cristina, esposa de dom Pedro ii, inspiradora do nome da capital piauiense.

Chegam em seguida a historiadora Maria Helena Berardi, de 69 anos, defensora da emancipação de Santo Amaro do resto do município, e a professora Adozinda Kuhlmann, que leciona há mais de sete décadas e educou gerações de moradores do bairro. Adozinda, de 92 anos, está elegante, com um colar de pérolas adornando-lhe o pescoço e um lenço de renda na cabeça. É considerada “a rainha do acróstico”, mas, como o cardápio do dia não contempla esse engenho poético, não se verão exemplos de façanhas adozindanas.

À mesa de notáveis junta-se uma dezena de funcionários administrativos da Secretaria Estadual da Saúde, que vieram sabe Deus por que e vão se acomodando ao som de Se essa rua fosse minha e Ciranda, cirandinha, tocados pela banda de pífanos. Também sem motivo aparente, a repórter de piauí é convidada a se levantar e recitar Batatinha quando nasce, coisa que faz com denodada galhardia. Retoma o assento sob aplausos educados.

Andréa, que sumira, materializa-se com chapéu de cangaceiro e um vistoso avental de melancias. Todos a postos, a refeição tem início com uma bela salada de trava-línguas: Cacá quer caqui – Que caqui que Cacá quer? Os convivas repetem com moderada fluidez. Mais aplausos se dirigem a dona Leda e ao funcionário público Aparecido, que se saem excepcionalmente bem na difícil articulação dos desejos de Cacá.

***

O prato principal, interpretado por Andréa, é um cordel de poeta matuto. Me enganei com minha noiva, do mossoroense Luís Campos, triste história de um romance trágico descrito em versos memoráreis, como “Ôxe! Só eu não acho mulher/ que queira se esfregar n’eu”. No desfecho – uma versão transgênero do ancestral tema da donzela guerreira -, a noiva Vicença, que se casa com o poeta, acaba se revelando: “Era macho que nem eu!” Aplausos (enquanto alguém lá atrás gargalha e engasga).

Na sobremesa, a especialidade da casa – sorvete de versos com charada e cobertura de simpatia – dá lugar à Banda de Pífanos de Caruaru, a grande atração da tarde. O venerável Sebastião Biano, de 90 anos, fica de pé para explicar que o pífano foi inventado por seu avô, Manoel Clarindo Biano, “homem curioso de ciências”. Isso em 1924, na roça. Mestre Biano conta uma longa história sobre como eles faziam buracos no talo de jerimum e sopravam para ver se saía som.

***

O pífano é um instrumento de sopro semelhante à flauta transversal, de som mais agudo e timbre mais estridente. Pode ser feito de bambu, taquara, osso e até cano de pvc. Quase sempre os tocadores são homens da roça que herdaram a arte de fazer o instrumento e não sabem ler partitura. Como Sebastião Biano, por exemplo, que pega as escalas de ouvido e ensina que sustenido é “meio dedo no buraco”. A crer na lenda, foi depois de ouvir os irmãos Biano que Gilberto Gil, fã das bandas de pífanos, criou a Tropicália.

Mestre Biano dedica a apresentação à sua “colega de década”, Adozinda, a quem faz um acenozinho. O arrasta-pé começa com uma valsa, seguida de um forró aperreado de Dominguinhos (“Que falta me faz um xodó…”). O setlist inclui ainda Asa branca e dois ou três xaxados e baiões, até terminar com o frevo Vassourinha, hino de Pernambuco. Ao final, todos se erguem e se entregam a uma ovação circular e universal. Mestre Biano bate palmas para Adozinda, que bate palmas para Leda, que parabeniza Aparecido, que agradece a Andréa, que aplaude a todos, numa generosa confraternização brindada com suco de tangerina de pacotinho em copinhos de plástico.

A turma da Saúde debanda para uma reunião. Dona Leda, talvez por caridade, convida a intérprete de Batatinha quando nasce para ir a sua casa tomar um cálice de vinho do Porto com sorvete de creme e conhecer os presépios. Andréa se afasta para cuidar da pressurosa questão dos reis magos, pois não parece ter ficado claro que eles são três. É uma vida buliçosa a de coordenadoras, escritoras, poetisas e contadoras de histórias em Santo Amaro.

Os sem-celular

Posted: 1st fevereiro 2010 by Vanessa Barbara in Crônicas, Revista Piauí
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Piauí n. 41
Fevereiro de 2010

por Vanessa Barbara

Nós, os 37, somos as únicas pessoas livres do Brasil

O telefone celular não é apenas um artefato do Coisa-Ruim, assim como a televisão é a Besta encarnada. É um rastreador do governo/alienígenas/palhaços/Grandes Corporações que serve para manter cada indivíduo sob o domínio deles. Via satélite, eles controlam aonde o senhor 9999-9999 vai, o que fala, quanto tempo demora a digerir um rosbife e tudo o que está pensando, inclusive quando, silenciosamente, comemora: “Humm, rosquinhas.”

Somos 37 os integrantes do combalido Grêmio Pan-americano de Repúdio ao Celular, organização com fins lucrativos que se dedica a imprecar contra o aparelho de telefonia móvel. No quadro de associados, figuram meu avô, o Elton John, um sujeito que mora ao sul de Tocantins, uma velha chamada Celeste que tem os dedos gordos e não consegue apertar as teclas individualmente, o Chico Buarque, o Matheus Nachtergaele, o tio de uma amiga minha, a cantora Stephany do Piauí, um andarilho chamado Ganesha Sol de Oliveira e eu.

Nos últimos meses, o número de membros só tem diminuído, devido à idade avançada dos fundadores e por conta de certos escândalos – como telefones pessoais vibrando durante a reunião de diretoria.

Em dezembro do ano passado, o Brasil chegou a 169 milhões de celulares, São 88,43 aparelhos para cada 100 habitantes. É questão de tempo para que todos os terráqueos (menos nós, os 37) estejam sob o domínio deles.

É fácil reconhecer as vítimas deles. Vejam como ficam desorientados, remexendo suas bolsas diante de qualquer ruído, mesmo quando a gente imita som de telefone com a boca. Diante de um sinal preestabelecido, como o hino do Palmeiras ou Adocica, de Beto Barbosa, todos sairão correndo para atender seus respectivos telemóveis e receberão ordens de aplicar petelecos uns aos outros. A senha para a instauração da balbúrdia será: “É o meu! É o meu!”, e nós, os 37, assistiremos ao espetáculo com um sorriso no rosto, tranquilos e gabolas.

Gostamos bastante de celulares que explodem. Apreciamos macabros ringtones que provocam sustos nos proprietários. Exultamos ao ver as filas à porta das operadoras, gente que tropeça no ônibus com o aparelho equilibrado entre a orelha e o ombro e, sobretudo, o semblante de pânico e prontidão no rosto de quem traz a maléfica engenhoca no bolso. Reagimos com euforia às pesquisas que dizem que o celular dá gota, tifo e problemas abdominais a esclarecer. Exemplo: a partir de 1994, a cidade de Londres registrou um declínio de 75% na população de pássaros, o que coincide com a popularização dos celulares na cidade.

Outro dia, li numa revista institucional uma matéria definitiva sobre as benesses do celular, elaborada inteiramente a partir de um gerador automático de artigos: cinco páginas de puro senso comum, com estatísticas aleatórias e frases de efeito a cada fim de parágrafo. O texto, que de resto era profundo como uma bateria de telefone portátil, terminava, triunfantemente, da seguinte maneira: “Com ou sem radiação, símbolo de status, objeto funcional ou companheiro virtual, não importa: o celular mudou definitivamente as nossas vidas – e o seu alcance ainda nem chegou perto de todo o seu potencial.”

***

Como se pode ver, o celular realmente frita os neurônios. Em questão de minutos. “Com ou sem radiação” virou o mote do nosso grêmio, que se gaba de ter um telefone fixo, de disco, só para receber ligações dos advogados da Cooperativa de Telefonia Móvel. Também temos orgulho de haver eleito Edson Celulari como inimigo número um da classe, num congresso que durou três horas e terminou com uma feirinha de artesanato e papéis de carta.

Uma coisa que invejamos nos usuários, porém, é a capacidade de realizar complexas operações matemáticas e calcular variantes. Exemplo: a operadora X fornece 23% de desconto na franquia mensal para quem fala 280 minutos em ligações locais, envia 100 torpedos por mês, baixa três megabytes de dados e tem uma tia chamada Lourdes. Já a operadora Y cobra só depois do primeiro minuto, permite roaming gratuito, exige fidelidade de dezoito meses e libera sem custos o envio de fotomensagens. É preciso ter doutorado em estatística para computar esses dados. Pois bem, o detentor de um celular considera todos esses fatores simultaneamente e, no final, escolhe o pior plano, com os piores atendentes, e um sinal fanho que só melhora nas cercanias do Pico do Jaraguá.

Em geral, o dono de uma linha iniciada com 6, 7, 8 ou 9 costuma estrear a engenhoca no ônibus. A quem interessar possa, se é que isso algum dia interessaria a alguém, ele grita: alô? está me escutando? estou entrando num túnel. E em seguida passa a fornecer informações em tempo real sobre o itinerário. É esse o grande barato do telefone móvel: anunciar ao pessoal de casa que já vou chegar, estou na frente do castelinho, e, pouco depois: acabei de passar no ponto do frangão, mais uns cinco minutos… É comum mentirem: em Copacabana, dizem que estão quase chegando no Méier. Ou então engatam uma conversa íntima sobre o furúnculo do cunhado, a excursão feita pela Europa, as enchentes, a evolução das espécies. Quando menos se espera, o bate-papo já virou briga, com direito a descrição dos mais recentes escândalos extraconjugais. O chato é que ninguém está autorizado a levantar a mão e tirar suas dúvidas.

***

Há também os que atendem o telefone no cinema, gritando: agora não dá, estou no cinema (não diga!). Ou os que resolvem checar as mensagens durante os trailers, projetando um facho de luz celestial que cega temporariamente até o homem da projeção. Ou então aqueles que usam o aparelho como se fosse um walkie-talkie, no viva-voz, e nem têm a gentileza de anunciar antes: “Estou aqui na praça com mais cinco desconhecidos, uns bebês, a moça do sorvete, o varredor e o pessoal que saiu do filme por minha causa. Todo mundo está ouvindo. O que você queria me contar sobre a sua micose?”

Como se não bastasse, os proprietários de celular são comprovadamente culpados por acidentes de toda sorte, como o entupimento involuntário de privadas e o congestionamento de pedestres nas calçadas. O fenômeno ocorre quando um ou mais transeuntes atendem uma chamada e passam a andar mais devagar, descrevendo um movimento de cambaleante zigue-zague, para desespero dos que estão atrás. É ruim, mas nada é pior do que tentar conversar com alguém que está mandando mensagens. De quando em quando, o sujeito levanta a cabeça, faz a tradicional pausa de quem estava em outra era geológica e pergunta: “Quem?”, alcançando o assunto com dois meses de atraso.

Nosso grêmio está aceitando novos membros. A prioridade é para quem nunca teve um celular e não pretende ter, nem sob o seu cadáver, mesmo que seja justamente para chamar a emergência e salvar a própria vida. Também podem se candidatar aqueles que possuem o aparelho mas desejam se recuperar, os ex-nomofóbicos (dependentes patológicos) e os que o deixam desligado na gaveta de casa, desde que não saibam “que botão eu aperto para atender”.

Quando decidi comprar duas tartarugas de água doce, Jacinto e Napoleão, de cinco centímetros de diâmetro, não sabia que voltaria para casa com um termostato submersível de 50W, uma bomba de água com vazão de 280 litros, um reptofiltro, uma lâmpada fluorescente de raios UV e um suntuoso aquaterrário com cascata, que é uma espécie de Caribe dos animais dulcícolas. Levei também um suplemento vitamínico que libera cálcio e vitamina B1, impedindo o amolecimento dos cascos, mas dispensei a pedra aquecida, o nebulizador de ambientes, o substrato de coco verde e um tronco flutuante de 150 reais onde os animais poderiam se divertir nas tardes mais enfadonhas. Naturalmente, a água tem que ser potável. A ração possui alta digestibilidade e vem enriquecida com sete vitaminas e ferro.

Ainda assim, Napoleão come cocô.

Na minha época, as tartarugas ficavam boiando em bacias cheias de água turva da torneira, e assim estava bom. Comiam carne crua, passeavam pelo quintal quando havia sol e não recebiam nenhum nome definido. Hoje, elas vêm com certificado de origem, são registradas no IBAMA e exigem que o candidato a dono assine um termo de responsabilidade, sujeito a ação penal e à legislação que trata de crimes ambientais. As minhas têm marcação individual e foram batizadas de Jacinto e Napoleão, como já disse, a despeito de serem fêmeas e de não atenderem quando são chamadas. (Nota explicativa: o nome “Napoleão” é uma homenagem ao gramático Napoleão Mendes de Almeida, autor de Dicionário de questões vernáculas, e não ao imperador). Ambas têm dois meses de vida, pertencem à fauna silvestre brasileira e são da espécie Trachemys dorbignyi, popularmente conhecidas como tigres d’água – devido à ferocidade, imagino.

Jacinto e Napoleão passam o dia inteiro tomando sol, comendo e dormindo. Mesmo assim, há horas em que me preocupo com a respiração ofegante da menorzinha e saio a pesquisar sobre pneumonias, avitaminoses, gastroenterites e prolapsos. A certa altura, me julguei incapaz de criá-las. Seria preciso ter doutorado em biologia e ganhar o primeiro milhão antes dos 30 anos, pensei. Considerei a possibilidade de trocar Jacinto e Napoleão por um cacto, ou quem sabe uma pedra-pomes, mas acabei desistindo ao descobrir a complexidade da composição da terra, drenagem e temperatura adequadas aos cactáceos. Isso acabou me intimidando também quanto à pedra-pomes.

A verdade é que a vida era mais tranquila sem esses curiosos animais. Por exemplo: agora, é preciso convocar alguém para alimentá-las quando passo uns dias fora de casa. Cheguei a deixar telefones de emergência com o encarregado, caso uma das tartarugas tenha algum problema ou precise de alguém que saiba cantar Brilha, brilha estrelinha para embalar-lhe o sono. Em suma, não sei dizer de quem foi a ideia de adotar Jacinto e Napoleão, mas penso no assunto toda quarta-feira, ao trocar a água do aquário, escovar as pedrinhas, carregar baldes de meleca e demais atividades fedorentas.

Agora, enquanto escrevo, Jacinto mastiga a própria pata. Napoleão se esconde debaixo de uma planta, de onde desponta só o pescoço – uma verdadeira tartaruga-folha. Comem cocô, é verdade, mas me proporcionam espetáculos diários de saltos ornamentais, mergulho livre, técnicas de camuflagem e divergência entre irmãs. Orgulhosas, elas não tentam ser afáveis com ninguém, sobretudo se esse alguém for verde e estiver em seu caminho rumo à ração flutuante. São confusas, violentas e muito, muito pequenas.

Não sei de quem foi a ideia de adotar Jacinto e Napoleão, o fato é que aqui em casa ninguém mais assiste televisão.

Em 1o de janeiro, às 7 horas da manhã, 10 mil senhores de meia-idade de shorts dry-fit e meias de cano alto ocuparam as pistas de caminhada do parque do Ibirapuera, em São Paulo. Não constituíam nenhuma manifestação e nem comemoravam o Dia da Paz Universal, embora alguns tenham se agrupado espontaneamente para puxar um bom alongamento de panturrilha – ao que tudo indica, aproveitavam a ocasião para fazer novos amigos. Foi ali que tudo começou: nas semanas que se seguiram, por toda parte, cidadãos bem-intencionados lograram êxito em cumprir suas promessas de Ano-Novo, outrora relegadas ao descaso e atribuídas exclusivamente à ingestão descontrolada de sidra. Assim, 200 milhões de brasileiros passaram a caminhar todos os dias, regular o intestino com iogurte, juntar dinheiro para o futuro e mascar chicletes de nicotina, causando a falência imediata das redes de frango frito e de hambúrguer de minhoca. A exceção foram os botecos que, antenados com os novos tempos, converteram-se em academias de ginástica e passaram a servir só suco de banana.

A indústria do tabaco persistiu por uns quinze dias, mas acabou sucumbindo à coqueluche da vida saudável e anunciou a bancarrota, antecipando seus propósitos de investir pesadamente em charutos de uva. Propósitos, aliás, firmados pelo próprio dr. Philip Morris durante a ceia de revéillon. Outro império que se extinguiu foi o dos programas inúteis de TV, que não se adequavam às novas metas de otimização do tempo livre em atividades edificantes, ao passo que, no mesmo período, as editoras de autores russos e filósofos prosperaram quase 300% em relação ao ano anterior. Também por esse motivo, os três únicos tradutores de literatura húngara do país enriqueceram da noite para o dia – embora a prerrogativa não fosse durar muito tempo, pois dezenas de estudantes tomaram como resolução de fim de ano aprender o velho idioma urálico. As lojas de conveniência 24 horas sumiram do mapa, já que toda a população passou a dormir cedo, lá pelas 9 da noite, depois de ler em família umas duas ou três passagens boas de Parmênides e amar intensamente os parentes próximos.

Em fevereiro, começaram os problemas. As pessoas que decidiram passar menos tempo na internet colidiram de frente com as que queriam arrumar uma namorada pelo MSN, inviabilizando sonhos e anulando a possibilidade de sucesso de ambas as partes. Os maridos que se comprometeram a passar mais tempo com as esposas não contavam com a promessa das contrapartes de se dedicarem mais ao trabalho voluntário. Os que se demitiram de empregos insuportáveis se depararam com desculpas dos ex-chefes, estes determinados a serem pessoas melhores e fazerem as pazes com os velhos inimigos. Diante da frustração de terem abandonado um trabalho que se tornara agora mais agradável, passaram a frequentar cursos de controle da raiva, o que não adiantou coisíssima nenhuma porque suas vagas já haviam sido tomadas por gente que, na virada, decidiu arrumar um emprego sem falta no ano que vem.

Os primeiros a abandonar seus votos foram os filhos caçulas em geral, diante de uma mãe determinada a emagrecer e um pai que havia prometido levar a esposa com mais frequência para jantar. Ficaram confusos e, na dúvida, voltaram a maltratar o cachorro. Depois seguiram-se os funcionários públicos, os jogadores de sinuca, as socialites, e, quando José Sarney anunciou que desistiria de escrever, tudo desmoronou.

Antes mesmo de chegar o Carnaval, o dr. Philip Morris abandonou o negócio dos charutos de uva e comemorou a volta da gloriosa indústria dos cigarros, brindando com um chorumento porco-pizza e um porre de sidra, das mais baratas.

São Paulo despercebida

Posted: 4th janeiro 2010 by Vanessa Barbara in Crônicas
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Revista Piseagrama n. 1
Janeiro de 2010

por Vanessa Barbara

São Paulo é uma cidade sem crianças. É uma cidade onde não se pode olhar para os lados senão pelo reflexo das janelas ou dos óculos escuros; onde não é permitido obter ou prestar atenção. São Paulo é uma cidade sem muito amor nem muito ódio, onde os que choram no ônibus são ignorados, os que pedem informações ganham um olhar desconfiado e os que cantam – pobres dos que cantam – são advertidos por um funcionário de cinza, com o estatuto interno do Metrô. Na rampa da estação Santana, é proibido brincar de escorregador.

São Paulo é uma cidade em que ninguém tem o direito de surpreender, a não ser os loucos, as crianças e os velhos. Todas as terças e quintas de manhã, dezenas de velhinhos dançam bolero, tango e rumba no Sesc Ipiranga. Enquanto isso, um outro senhor opta pela corrida de resistência: Tuplet Vasconcelos, um magro cidadão de 85 anos, já participou de 114 maratonas nos últimos quinze anos, tendo completado a Corrida Internacional paulista de 1999 em cinco horas e quarenta e cinco minutos. Deixou pra trás centenas de competidores. Há velhinhos que jogam dominó; outros tomam aulas especiais de saúde na Universidade Federal de São Paulo. A maioria anda devagar pelas ruas, em total contradição com o ritmo da cidade.

Há, ainda, os que vagam pelos metrôs a esmo, como um certo senhor sentado no banco cinza, a quem uma mulher perguntou: “Este trem vai pro Jabaquara?”, e ele suspirou: “não sei”. A réplica não demorou: “mas para onde é que ele está indo?”; novamente um suspiro e a resposta: “Olha… não sei”.

Nas ruas de São Paulo, todos sabem para onde vão; programam-se para caminhar em linha reta, rumo ao horizonte, e vão atropelando hidrantes, cachorros quietos e criancinhas perdidas. Próximo à entrada dos fundos da USP, junto à Marginal Pinheiros, uma mulher sem-teto gritava, de longe, para o filho de uns 9 anos: “Onde é que tá o Caio?” – e o menino dava de ombros, fazendo um “sei lá” engraçado com o corpo todo. Tinha um olhar meio sapeca, e escondia atrás dele uma caixa enorme de papelão (que se limitava a ficar de pé, impassível). A moça já estava virando as costas, conformada, quando a caixa caiu no chão de repente, em meio a um barulho enorme. E, de dentro, após um penoso esforço para empurrar as abas, saiu engatinhando um menino pequeníssimo, minúsculo mesmo, nem ligando para essas coisas da vida; queria apenas saracotear o mais rápido que podia, de uma ponta à outra do gramado.

Caminhando pelo asfalto, as pessoas veem guris saindo de dentro de grandes caixas, a engatinhar, e não dão a mínima. Nada atinge os que passam na rua; nem mesmo um martelo, que certo dia escapou, lenta e inexplicavelmente da mochila de um rapaz, e foi aterrissar na calçada da Avenida Paulista, causando quase nada de transtorno aos que por ali andavam. Apenas deram a volta, sem oferecer ajuda ou achar minimamente estranho. Que tivesse um martelo dentro da mochila, oras. Não é da minha conta.

Há mães que também não acham ser da sua alçada um certo garoto que cutucava a saia e a paciência dos passageiros do metrô, tentando convencer a referida progenitora a correr com ele para fora do vagão. Queria porque queria sair de lá e entrar no trem oposto, que ia para o Jabaquara e estava vazio; só para depois sair correndo de novo quando a porta abrisse e tomar, mais uma vez, o metrô para o Tucuruvi. Movido por nenhum motivo coerente, é claro. Apenas porque parecia algo bacana à beça – para a criança, não para os demais paulistanos irritados ou para sua mãe, que suspirava fundo e pedia para que ele falasse mais baixo, por favor, os moços ali estão reparando.

Em São Paulo, as pessoas morrem no meio do caminho, atravessam a rua nas horas que não deveriam e os prédios desabam, atrapalhando o tráfego. Na opinião dos taxistas, a esquina da Alameda Campinas com a Paulista é o lugar mais fácil para se atropelar transeuntes. Já no cruzamento entre as Ruas Humberto I e Conselheiro Rodrigues Alves, na Vila Mariana, os carros têm 3 minutos para circular – e as pessoas, pouco mais do que 2 segundos.

Em São Paulo, os pedestres não existem; bem como as cadeiras de rodas, os mendigos (meu nome é Francis e estou vendendo drops), as árvores e as bicicletas. Os poucos que transitam pelas ruas estão indo de um lugar a outro, preocupados com a hora do estacionamento. Nas calçadas da avenida Paulista, não se pode andar em paz sem trombar com um guardinha bravo, que normalmente apita na orelha dos que passam e os obrigam a parar. Tudo para que os carros de vidros fumê possam atravessar a calçada, rumo aos estacionamentos.

Alguns ainda resistem: todos os últimos sábados do mês, um grupo de jovens promove uma Bicicletada pelas avenidas de São Paulo e questionam a utilização das vias públicas. Vestem uma máscara branca de enfermagem e saem por aí, com seus veículos alternativos (sejam patinetes, pogobóis, skates, monociclos, bigas ou pula-saco). “Não estamos atrapalhando o tráfego, nós SOMOS o tráfego”, diz o slogan do Reclame As Ruas, movimento internacional no qual se baseou a Bicicletada paulista. A favor das aglomerações e das festas, sempre no meio da avenida.

A cada ano, cerca de 180 mil pessoas tiram a carteira de habilitação do Detran (Departamento de Trânsito). Quinhentos mil novos automóveis entram em circulação na cidade. Toda esta multidão, atordoada, decide dispor de seu direito de ir e vir geralmente ao mesmo tempo, provocando congestionamentos que já chegaram a somar 240 quilômetros, em um feriado de 1996. A distância, para se ter uma idéia, equivaleria a 3 milhões de potinhos de Yakult, empilhados um a um, embora a comparação não faça qualquer sentido. No ano 2000 houve, em São Paulo, um acidente a cada 2,9 minutos; um atropelamento a cada 44,4 minutos; um morto a cada 5,9 horas. Todos devidamente contabilizados, etiquetados e despachados – em 2002, uma das vítimas foi um pacato cavalo, atropelado no meio de uma rua do Morumbi pela cantora Sula Miranda.

A balbúrdia da cidade encontra seu buraco negro todas as sextas-feiras à noite na praça de alimentação do Shopping Metrô Tatuapé – onde reina o silêncio quase absoluto. Desde que foi inaugurado, o shopping virou ponto de encontro de deficientes auditivos, que passam a noite se comunicando em silêncio, através da linguagem de sinais. Em algumas ocasiões já chegou a haver mais de 200 deficientes auditivos no local.

São Paulo é uma cidade em que ninguém tem o direito de se surpreender, a não ser os loucos, as crianças e os velhos. Mesmo que haja tanto a ser descoberto. Mesmo que existam tantas cidades nas sombras da São Paulo que sai nos jornais.


Sobre o autor

Colunista da Folha de São Paulo, editora do site A Hortaliça e autora de O Livro Amarelo do Terminal, da CosacNaify. Escreveu este texto em 2002.

http://piseagrama.org/artigo/124/sao-paulo-e-uma-cidade-de-coisas-despercebidas/

Pós-muro

Posted: 1st janeiro 2010 by Vanessa Barbara in Traduções
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Pós-muro
Em 1989, na Europa do leste, as pessoas queriam solidariedade e liberdade para viver suas vidas fora do controle estatal.

por Slavoj Zizek
tradução Vanessa Barbara

Piauí n. 40
Janeiro de 2010

Vinte anos depois da queda do Muro de Berlim, é comum ouvir que os acontecimentos daquela época foram milagrosos, um sonho realizado, algo que ninguém teria imaginado mesmo poucos meses antes. Eleições livres na Polônia e Lech Walesa como presidente: quem poderia prever? Mas um milagre ainda maior ocorreu poucos anos depois: as eleições livres e democráticas devolveram os ex-comunistas ao poder, Walesa foi marginalizado e tornou-se menos popular que o próprio general Jaruzelski.

Em geral, essa reversão é explicada pelas expectativas “imaturas” do povo, que simplesmente não tinha uma ideia realista do capitalismo: eles queriam se apoderar do bolo e comê-lo, queriam as liberdades democráticas e abundância material sem ter que se adaptar a uma “sociedade de risco” – por exemplo, sem perder a segurança e a estabilidade (mais ou menos) garantidas pelos regimes comunistas.

Quando a névoa sublime da Revolução de Veludo foi dispersa pela nova realidade democrática e capitalista, as pessoas reagiram de três formas: algumas tiveram saudades dos “bons e velhos tempos” do comunismo, outras abraçaram o populismo nacionalista de direita, e houve ainda as que manifestaram uma espécie de paranoia anticomunista retardada.

As duas primeiras reações são fáceis de compreender, e até se sobrepõem com relativa frequência, tal como na Rússia atual. Os mesmos direitistas que, décadas atrás, gritavam “Antes morto do que comunista” [Better dead than red] agora resmungam “Antes comunista do que comer hambúrgueres”. A nostalgia pelo comunismo não deve ser levada muito a sério: longe de expressar um desejo verdadeiro de retornar à cinzenta realidade socialista, é uma espécie de luto, um jeito de se livrar delicadamente do passado. E o populismo nacionalista, longe de ser exclusivo ao Leste Europeu, é uma característica de todos os países apanhados no vórtice da globalização.

Muito mais interessante é a recente ressurreição do anticomunismo por toda parte, da Hungria à Eslovênia. Em outubro de 2006, uma onda de protestos contra o Partido Socialista no poder paralisou a Hungria por semanas. Os manifestantes culpavam os sucessores dos comunistas pela crise econômica no país. Eles negavam legitimidade ao governo que, no entanto, foi eleito democraticamente, e, quando a polícia era usada para restaurar o mínimo de ordem civil, faziam comparações com o Exército soviético que esmagou a revolução de 1956.

Em resumo, diziam que a Revolução de Veludo de 1989 precisava se repetir, já que, por trás da falsa aparência de democracia, nada mudara de verdade, pois as mesmas forças do mal davam as cartas no poder. Em dezembro de 2006, a Polônia endureceu a lei que proibia ex-colaboradores da polícia secreta comunista e pessoas ligadas ao velho regime de assumirem cargos públicos.

***

Outro aspecto do mesmo processo foi a reabilitação, nos países bálticos e na Eslováquia, dos colaboradores nazistas, transformados em “combatentes anticomunistas”. Sua colaboração, e mesmo a participação em massacres de judeus, foi considerada necessária na luta patriótica contra o comunismo. Era um mal menor. Na Revolução de Veludo ucraniana, que levou Viktor Yushchenko ao poder, cantavam-se as mesmas músicas entoadas pelos colaboradores nacionalistas que apoiaram a ocupação alemã.

Não é de se espantar que, pressionado por certos países pós-comunistas, o Parlamento Europeu tenha aprovado uma resolução que equipara o comunismo ao nazismo. E não é de se espantar que, na Eslovênia, a direita populista reprove a esquerda por ser uma “força de continuidade” do velho regime comunista. Novos problemas e desafios são julgados com base em velhos conflitos, e a luta pelos direitos dos gays é soturnamente interpretada como parte de um complô comunista para desmoralizar a nação.

Como e por que esses fantasmas reaparecem em nações onde a maioria dos jovens nem sequer se lembra do comunismo? Os anticomunistas fazem uma pergunta simples – “Se o capitalismo é tão melhor que o socialismo, por que nossas vidas continuam miseráveis?” – e a respondem de maneira direta: é porque ainda não chegamos ao capitalismo, não temos uma verdadeira democracia. Os ex-comunistas ainda estão no poder, disfarçados de proprietários e dirigentes. Precisamos de outro expurgo, a revolução tem que se repetir. É evidente a semelhança que há entre esse discurso e o velho costume comunista de atribuir seus fracassos à perpétua influência das “forças do passado”.

Essa nova geração de anticomunistas tem uma imagem da sociedade que é assustadoramente parecida com a imagem do capitalismo alimentada pelos esquerdistas: uma sociedade na qual a democracia formal é uma máscara que esconde a dominação por uma minoria rica. Em outras palavras, os anticomunistas não percebem que aquilo que eles chamam de pseudo-capitalismo pervertido é simplesmente o capitalismo.

Pode-se dizer que, após o colapso dos regimes comunistas, seus antigos partidários, desiludidos, estavam mais preparados para gerir a nova economia capitalista do que os dissidentes do populismo. Enquanto os heróis das manifestações anticomunistas continuaram a acalentar o sonho de uma nova sociedade baseada em justiça, honestidade e solidariedade, os ex-comunistas se acomodaram sem dificuldades às novas regras capitalistas. Paradoxalmente, na nova situação pós-comunista, os anticomunistas insistiram no sonho utópico de uma democracia verdadeira, ao passo que os ex-comunistas aceitaram o mundo cruel da eficiência de mercado, com toda a sua corrupção e truques sujos.

Será que o realismo capitalista é a única resposta para a utopia socialista? O que se seguiu à queda do Muro foi mesmo a era da maturidade capitalista, o abandono de todas as utopias? Será que essa época também não teve uma utopia própria? Novembro de 1989 marcou o início dos “felizes anos 90”, o utópico “fim da história” de Francis Fukuyama. Ele anunciou que a democracia liberal havia vencido, que o advento de uma comunidade mundial global e liberal estava por acontecer, e que os obstáculos que se interpunham a esse final feliz eram apenas contingentes (bolsões de resistência onde os dirigentes locais ainda não enxergavam que a hora deles havia acabado).

Em contrapartida, o 11 de Setembro marcou o fim simbólico dos “felizes anos 90”. Assinalou o começo de nossa era atual, em que novos muros estão se erguendo por toda parte, entre Israel e a Cisjordânia, em torno da União Europeia, na fronteira dos Estados Unidos com o México – mas também dentro dos próprios países.

Parece que a utopia dos anos 90 de Fukuyama teve que morrer duas vezes: o colapso da utopia política liberal-democrática do 11 de Setembro não afetou a utopia econômica do capitalismo de mercados globais, mas a crise financeira de 2008 certamente o fez. Nos anos 90, acreditava-se que a humanidade havia finalmente encontrado a fórmula para uma perfeita ordem socioeconômica.

***

A experiência das últimas décadas mostrou claramente que o mercado não é um mecanismo benigno, que funciona melhor quando deixado por sua conta. É preciso violência para criar as condições necessárias a seu funcionamento. A forma com que os fundamentalistas de mercado reagem à desordem que se sucede quando suas ideias são aplicadas é típica dos “totalitaristas” utópicos: eles culpam o fracasso em fazer concessões – ainda há muita intervenção estatal – e exigem uma aplicação ainda mais radical da doutrina de mercado.

Observamos hoje a explosão do capitalismo na China e nos perguntamos quando o país se tornará uma democracia. Mas e se isso nunca acontecer? E se o seu capitalismo autoritário não for apenas a repetição do processo de acumulação capitalista que, na Europa, vigorou do século XVI ao XVIII, mas um sinal do que está por vir? E se a “malévola combinação do chicote asiático com o mercado de ações europeu” (como Trotsky caracterizava a Rússia czarista) provar-se mais eficiente economicamente do que o capitalismo liberal? E se ficar claro que a democracia, tal como nós a entendemos, não é mais a condição e o motor do desenvolvimento econômico, mas um obstáculo?

Se for esse o caso, talvez a decepção pós-comunista não deva ser descartada como sinal de expectativas “imaturas”. Nos protestos contra os regimes comunistas no Leste Europeu, as pessoas, em sua maioria, não pediam o capitalismo. Queriam solidariedade e um tipo bruto de justiça, queriam liberdade para viver suas vidas fora do controle estatal, queriam se reunir e falar do jeito que bem entendessem, queriam se libertar da doutrinação ideológica primitiva e da hipocrisia. Aspiravam a algo que podia ser melhor descrito como um “socialismo com face humana”. Talvez essa opinião mereça uma segunda chance.

O mandaquiense

Posted: 1st janeiro 2010 by Vanessa Barbara in Crônicas, Revista Piauí
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Piauí n. 40
Janeiro de 2010

por Vanessa Barbara

Ele compra rodos de pia, chega sempre adiantado, acompanha os folhetos de desconto das farmácias, tem o coração grande e um quintal comprido

O distrito do Mandaqui, como todos sabem, localiza-se na Zona Norte de São Paulo, entre os condados de Santana e Cachoeirinha. Segundo uma pesquisa recente, tem área de 13 quilômetros quadrados e população de 103 mil moradores, dentre os quais 53% são católicos e 37%, corintianos. Ainda segundo a pesquisa, 46% dos mandaquienses possuem cachorros e 1% deles são felizes proprietários de coelhos. A média de idade é de 38 anos, com predominância de mulheres e solteiros. Há 6% de viúvos e 15% de fãs de música sertaneja. Exatos 35% são gordinhos.

O nome do bairro vem do tupi “rio dos bagres”, o que dispensa comentários, mas há outras versões. Uma delas remete a um antigo morador, que, ao encontrar em sua propriedade os funcionários da Companhia da Cantareira, disse que quem mandava ali era o “filho do meu pai”, ou seja, ele mesmo. Os vizinhos, de irredutível natureza trocadilhesca, passaram a se referir à área como terra do Mandaqui.

Os primeiros mandaquienses tinham o sobrenome Zumkeller e chegaram à região no início do século XX. Ali plantaram videiras e criaram gado leiteiro. Com a prosperidade, veio o estrelato: o patriarca Alfredo, sua esposa Judith e os filhos Eduardo, Jorge, Maurício, Lídia e Julieta viraram logradouros. Tornaram-se avenida Zumkeller, rua Judith Zumkeller e por aí vai – ainda não há consenso se a pronúncia é “Zúncler” ou “Zumquéler”. Esses foram os pioneiros e mais ilustres mandaquienses, mas não sabemos quais eram os seus anseios e preocupações.

Hoje se sabe que o mandaquiense típico não é pontual: sempre chega com escandalosa antecedência, como se considerasse o ônibus quebrado, a enchente no caminho, a manada de ovelhas interditando o farol. A antecipação oscila entre quinze e sessenta minutos, com picos de até duas horas, e o mandaquiense, invariavelmente aflito, vai procurar uma padaria para tomar um suco enquanto o compromisso não vem. É comum encontrar mandaquienses vagando pelas ruas do Itaim, sentados no meio-fio, brincando com tampinhas de guaraná e checando o relógio de cinco em cinco minutos.

O mandaquiense usa relógio de pulso. Gosta de acordar cedo, ouve rádio de pilha e acompanha a meteorologia. Quando criança, divide o cabelo ao meio e tem um desses estojos de lata, cheios de canetas e borrachas coloridas. O mandaquiense gosta de grifar, de fazer tabelas e de cumprimentar os vizinhos. Ele lê muito, pois de Santana ao Mandaqui os ônibus tendem a ficar presos no tráfego. E não é só isso: o mandaquiense acompanha com zelo os folhetos de ofertas dos mercados e das farmácias. É ele quem enfrenta multidões às cotoveladas só para comprar um abacaxi com 60 centavos de desconto.

No âmbito emocional, o mandaquiense tem um senso de humor complicado e é fácil ofendê-lo sem querer. Por outro lado, é dificílimo magoar um mandaquiense de propósito. Os mais vis xingamentos não atingem o habitante local, que, distraído, nunca acha que é com ele. Costuma ter o coração grande e um comprido quintal. Gosta de plantas e de vendedores de mandioca, nessa ordem, estuda em colégio religioso e dificilmente repete de ano.

Ele se interessa pelo mecanismo de funcionamento das coisas e pode passar semanas tentando consertar um espremedor de laranjas, debruçado sobre uma mesa cheia de arruelas e chaves de fenda. Faz ele mesmo os reparos no telhado, só para não precisar pagar um especialista. Quanto aos especialistas, os mandaquienses são os mais tenazes. Resolvem qualquer questão hidráulica, elétrica ou mecânica, e, se não resolvem, é garantia de que passarão meses tentando. Fornecerão as instruções pelo telefone, se for o caso, agregando informações recentes sobre a família, o clima e os boatos locais.

Os nativos do Mandaqui são às vezes avoados, mas, quando decidem se concentrar, gastam um tempo desproporcional em tarefas que só interessam a eles, como mandar cartas-resposta à fábrica de doce de abóbora reclamando da dificuldade de abrir os potes, com datas e horários das tentativas de libertar a guloseima. É ele que dá consistência às filas nos açougues, que congestiona a linha telefônica da Eletropaulo quando falta luz e que grita “Vai, Curíntias” durante a formatura dos sobrinhos.

***

Um diálogo típico entre dois mandaquienses pode se dar da seguinte forma:

NUNO: “O Robert Altman morreu.”
SILAS: “A Odete Roitman?”

O mandaquiense não tem senso de direção e se confunde com facilidade. Veste o pijama às quatro da tarde e adora sair para comprar engenhocas de plástico, patinhos de borracha, rodos de pia, pregadores de madeira e papa-bolinhas que não funcionam. (No bairro, ainda existem amoladores de faca e vendedores de biju.) O mandaquiense faz a lista de compras no computador e usa a fonte Comic Sans, dividindo por cores os itens de higiene pessoal, alimentação e jardinagem.

São mandaquienses em potencial aqueles que classificam os livros em ordem alfabética, dispõem as camisas do armário em degradê e possuem o mesmo arranjo de gavetas desde 1964. São mandaquienses desde criancinha aqueles que fazem uma refeição respeitando o equilíbrio dos componentes no prato – o arroz deve chegar ao fim concomitantemente ao feijão e à mistura, e esta ao suco, sob pena de “dar nojo” aos comensais.

“Dar nojo” é uma expressão típica, empregada quando algo está fora do lugar ou um forasteiro deixa a gaveta aberta, por exemplo. O nojo está para o mandaquiense assim como a guerra, a fome e a peste estarão para a humanidade no Juízo Final. Se quiser apoquentar um habitante local, é só largar uma meia do avesso em qualquer lugar da casa e ficar atrás da porta, esperando. Os resultados são imediatos.

Outra conversa característica entre dois autóctones, na porta da farmácia:

NUNO: Silas, lembra do que eu te falei agora há pouco? Sobre aquele meu primo que mora no Lauzane, e que casou na semana passada?
SILAS: Não.

***

O nativo do Mandaqui costuma ter opiniões fortes sobre os enxaguatórios bucais e não atende o telefone dizendo “Alô”, mas “Alôncio” – e aí cai na gargalhada sozinho, antes de engatar uma conversa com quem quer que seja do outro lado da linha. Principalmente se for engano. É comunicativo, mas não sabe contar piadas. Não resiste a um calemburgo do tipo “Aldo, você está atrasaldo!”. Confraterniza com os patrícios em cadeiras nas calçadas ou no balcão das padarias, onde reclama do colesterol alto e pergunta como vai o João Perninha, da bocha.

A propósito: para ter respeito e receber a alcunha de “senhor” no bairro, é necessário que o proponente seja proprietário de um comércio — o sr. Eliseu da quitanda, o sr. Irineu do bar do clube e o microempresário sr. Firmo Farias -, ou ter sobrevivido a uma hecatombe nuclear – sr. Nakamura. Agora, se o sujeito foi alçado à glória terrena apenas por jogar bocha, deve se contentar com apelidos como João Perninha, Pedro de Lara, Zé Colmeia ou Frangão.

O mandaquiense sobe e desce os morros com um guarda-chuva em punho e meia dúzia de garrafas pet na sacola, toma o 118-C lotado e sobrevive à fúria do motorista, que faz as curvas como quem toma a Prússia. Se o mundo fosse só de mandaquienses, certamente seria melhor, mas todos teriam que usar pochetes.

O sono de Polanski

Posted: 1st dezembro 2009 by Vanessa Barbara in Traduções
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O sono de Polanski
Vamos continuar chamando o fato de estupro-estupro e não nos preocupemos tanto assim com as noites do cineasta

por Jenny Diski
tradução Vanessa Barbara

Piauí n. 39
Dezembro de 2009

No início, achei apenas moderadamente interessante, num mundo repleto de acontecimentos bem mais interessantes, a notícia de que Roman Polanski havia sido preso na Suíça e seria extraditado para os Estados Unidos, por uma acusação de estupro de trinta anos atrás. Mas fui me envolvendo cada vez mais – no noticiário, no Facebook, no Twitter, no blog da London Review of Books e em conversas – na discussão entre os que acham que ele não devia ter sido preso e aqueles que pensam que deveria, mesmo depois de tanto tempo, ser enviado de volta aos Estados Unidos para cumprir sentença judicial, embora a mulher envolvida (Samantha Geimer – ela permitiu que seu nome fosse divulgado) diga agora que não quer dar continuidade ao assunto.

Tive então espasmos ao ler a petição escrita por Bernard-Henri Lévy e subscrita por Paul Auster, Milan Kundera, Claude Lanzmann, Salman Rushdie, Mike Nichols e, para citar representantes femininos, Diane von Furstenberg, as Isabelles Adjani e Huppert, Danièle Thompson e Arielle Dombasle. Nela está escrito:

Roman Polanski, detido como um terrorista comum no último sábado, 26 de setembro, à noite, quando vinha receber um prêmio pelo conjunto de sua obra, agora dorme na prisão.

Ele corre o risco de ser extraditado para os Estados Unidos por conta de um episódio que ocorreu anos atrás e cuja principal querelante já declarou, enfática e repetidamente, haver deixado de lado e abandonado qualquer interesse por uma ação judicial.

Aos 76 anos de idade, sobrevivente das perseguições nazistas e stalinistas na Polônia, Roman Polanski arrisca passar o resto da vida na prisão por atos que, na Europa, já teriam prescrito.

Pedimos à corte suíça que o liberte imediatamente, e não transforme esse talentoso cineasta em mártir de uma trapalhada político-legal indigna de duas democracias como a Suíça e os Estados Unidos. O bom senso e também a honra o exigem.

Deixemos de lado a questão de que os terroristas são comuns, em contraponto à escassez de cineastas estupradores, e como tem sido o sono de Polanski[1]. Também deixemos de lado o argumento “anos atrás” e o atual desejo da vítima de não haver ação judicial – são questões legais. E ignoremos o uso de episódio onde a palavra estupro teria sido mais precisa. Afinal, Polanski foi acusado de ter relações sexuais ilegais, e não de estupro. O abrandamento da acusação lhe foi oferecido com a condição de que ele se reconhecesse culpado, assim a garota não precisaria testemunhar em julgamento aberto. Esse foi o argumento usado por Whoopi Goldberg para exigir a libertação do diretor logo que surgiram as notícias de sua prisão, já que ele não tinha cometido um “estupro-estupro”.

O acordo entre a defesa e a acusação veio com a promessa de uma sentença de apenas quarenta dias ou menos – a fim de completar uma detenção de noventa dias para avaliação psiquiátrica e laudos sobre a liberdade condicional que fora interrompida prematuramente — e, depois, a deportação voluntária de Polanski. Quando o advogado do cineasta ouviu rumores de que o juiz quebraria o acordo, impondo uma sentença de prisão mais longa e a deportação forçada, Polanski fugiu dos Estados Unidos.

Os peticionários sugerem que a juventude sofrida do cineasta na Polônia forneceria uma espécie de explicação para que Polanski, aos 44 anos, decidisse travar relações sexuais com uma adolescente de 13 anos. É possível, mas isso não explica por que outras pessoas com um passado semelhante não fizeram a mesma coisa, ou por que gente sem um passado desfavorável agiu dessa forma. Quanto a seu talento, é evidente que há muito se pensa que os indivíduos “criativos” tendem a agir em desacordo com as normas sociais. Isso às vezes é verdadeiro, mas, a meu ver, significa que devemos julgar a obra em separado do comportamento, e não que o comportamento em si deva ser desculpado. Polanski fez filmes extraordinários, mas obras tão boas quanto Faca na Água e Chinatown não autorizam seu diretor a estuprar.

De todas as desculpas e explicações que surgiram para o comportamento de Polanski, a mais ridícula deu-se durante a audiência inicial, no relatório do agente de condicional solicitado pelo juiz:

Possivelmente desde a Itália renascentista nunca houve tamanha concentração de mentes criativas em um só local como tem sido em Los Angeles na última metade do século. Ao mesmo tempo em que enriquecem a comunidade com sua presença, essas pessoas trazem consigo os costumes e maneiras de suas terras natais, que, em raras instâncias, são discrepantes das terras que os adotaram.

(Contente-se com qualquer risada que se possa tirar dessa historinha infame.)

Quanto a sua presente condição de mártir numa “trapalhada político-legal”: o estupro foi confessado por Polanski, ninguém nega que tenha ocorrido e nem que o diretor tenha fugido quando estava em liberdade condicional, antes de receber a sentença, tendo o cuidado de não voltar aos Estados Unidos desde então. Provavelmente há outros estupradores foragidos na Europa e na América que não são talentosos cineastas e, portanto, não são procurados, o que é certamente injusto. De qualquer forma, tendo a achar que seria melhor que os procurassem, em vez de livrarem Polanski de suas responsabilidades. (Ao que tudo indica, ele ainda está devendo 500 mil dólares do acordo com Samantha Geimer.)

***

Em 1961, fui estuprada por um americano em Londres. Eu tinha 14 anos, um a mais que a garota a quem Polanski deu champanhe e meio comprimido de Quaalude, e com quem depois fez sexo oral, vaginal e anal. Em defesa de Polanski, muita gente observou que Geimer era uma modelo adolescente e que participava de uma sessão fotográfica agendada por sua mãe diretamente com o cineasta, que afirmou estar tirando as fotos para a Vogue. Como evidências extras para abrandar o crime, alguns notaram que, depois de a menina beber champanhe (encorajada pelo diretor durante a sessão de fotos), Polanski entrou numa jacuzzi e a convidou para ir junto, mas ela disse que tinha que voltar para casa. O cineasta telefonou para a mãe da menina, avisou que ela chegaria tarde e depois a deixou falar. Geimer respondeu “não” quando a mãe perguntou se queria que fosse buscá-la e, de acordo com um relato (embora não fique claro na transcrição do tribunal do júri), ela consentiu em fazer sexo oral. Ela também contou ao juiz que já havia tido relações sexuais duas vezes com o namorado, que tinha mais ou menos a sua idade.

O que chamou a minha atenção, por fim, e ganhou meu total engajamento foi a ideia de uma adolescente de 13 anos consentindo em fazer sexo oral com um diretor de cinema de 44. Não que as crianças não sejam às vezes sexuais ou mesmo, aparentemente, cúmplices no ato sexual. Ela obviamente não era inocente. (Embora a experiência sexual prévia não invalide a acusação de estupro, mesmo quando a vítima está acima da idade de consentimento.) Para fazê-la consentir, no entanto, Polanski deve ter perguntado alguma coisa. Como? Algumas perguntas parecem mais perguntas do que outras. Como será ter 13 anos e o sonho de ser estrela de cinema (tal qual a maioria das garotas dessa idade), e de repente estar na presença de um poderoso diretor, na casa de um ator famoso (Jack Nicholson), tendo bebido e tomado uma droga forte, diante da proposta de fazer sexo oral em seu ídolo ou de se prontificar para o cunnilingus?

***

Quando eu tinha 14 anos, não fui coagida ao sexo por deslumbramento e nem pelas drogas – fui constrangida a fazê-lo. Numa manhã de sexta-feira, eu estava indo a pé para a biblioteca de Notting Hill Gate, zangada depois de uma discussão com meu pai, quando um sujeito de uns 20 anos, com sotaque americano, apareceu de repente e começou a andar ao meu lado. Ele perguntou o meu nome. Eu o ignorei. Ele repetiu a pergunta algumas vezes. Aquilo costumava acontecer. O normal é continuar a andar quando um homem fala com você ou se exibe. Mas esse era muito persistente. Ele caminhou ao meu lado, disse que era cantor e que tinha escrito uma música nova. Queria saber o que eu achava dela. Quando eu disse “cai fora” pela segunda vez, ele começou a cantar. Bem alto. Hoje em dia, é claro, eu mesma poderia cantar alto na rua sem me importar com nada. Mas não é assim aos 14 anos. Fiquei desesperada. O fato de haver um homem cantando para mim em altos brados, enquanto eu andava na rua, me ridicularizava publicamente. Era óbvio que todas as pessoas do planeta estavam olhando. E rindo. Fiquei fora de mim de tanta vergonha. Pedi que parasse, ao que ele respondeu que só o faria se eu fosse até o estúdio de gravação onde ele trabalhava e o ouvisse cantar a música devidamente. Ficava ali na esquina, a poucos minutos de onde eu morava. Então ele voltou a cantar. Era amável e até engraçado, nada assustador – quando muito, insistente demais.

Eu não imaginava que um estúdio de gravação pudesse ser silencioso e vazio – pensei que haveria muita gente lá, como técnicos e pessoas à toa. Mas acho que teria ido mesmo se soubesse que estava vazio, só para fazê-lo calar
a boca. O estúdio ficava num porão a uma quadra da minha casa. Ele destrancou a porta e me deixou entrar. Fechou então a porta atrás de mim e ouvi o barulho da chave girando. O som de uma chave girando numa sala vazia é mesmo especial. Repentinamente assustada, pedi para ir embora e falei que queria voltar para casa. Mas ele enfiou a chave de volta no bolso de trás e sorriu. “Quero voltar pra casa”, disse mais uma vez, quase em pânico. “Só depois que a gente tiver se divertido um pouco”, ele respondeu. “E não adianta gritar: é um estúdio de gravação, o lugar é à prova de som.” Puxando-me pelo braço, ele me levou para dentro da sala.

Atrás de uma parede de vidro havia aquela mesa de equipamentos de gravação que a gente vê nos filmes. Na sala principal, onde estávamos, havia alguns microfones, uma bateria, uma geladeira e um sofá. Eu disse que só tinha 14 anos e ele deu risada. “Não, não tem”, ele me falou. “Tenho sim”, respondi. Ele me empurrou para o sofá e eu, já implorando – pois sabia que estava em apuros -, repeti que tinha 14 anos e era virgem. Em todo caso, eu era jovem o suficiente para acreditar que isso o faria parar para pensar. “Não, você não tem 14 anos e nem é virgem”, ele riu, enquanto erguia a minha saia. Não faço ideia se ele realmente acreditava no que estava dizendo.

Foi muito doloroso – eu não sabia que a primeira vez poderia ser assim. Gritei de dor várias vezes. Berrei o tempo todo, pedindo que ele parasse (usei bastante a expressão “por favor”). Ainda não temia pela minha vida. Ele não era violento; apenas continuava, recusando-se a parar, repetindo que eu não era virgem e ignorando quando eu dizia que estava doendo. Ele não era violento. Quer dizer, não me bateu.

Assim que ele terminou, pôs-se de pé e ajeitou a roupa. Abaixei a saia e me sentei. Ele foi até a geladeira e pegou uma garrafa de leite, oferecendo-me um gole. Quando recusei, ele bebeu quase tudo.

Depois de terminar o leite, ele me perguntou se eu queria sair para tomar um café. Mas me deixou ir para casa quando respondi que não, contanto que lhe desse meu telefone para que pudéssemos nos encontrar de novo. Ele deve ter me dito o seu nome, mas não me lembro. Então saí e andei uns 100 metros até a minha casa, onde fui direto para o quarto, tirei a calcinha e vi que havia sangue. Fui dormir.

Passei o resto da tarde na cama, cochilando e me sentindo basicamente ferida e vazia. Estava entorpecida pela experiência, mas também tinha a clara noção de que ele era muito burro de pensar que eu havia me divertido. Fiquei com uma poderosa imagem mental dele inclinando a cabeça e tomando leite. Beber leite me faz vomitar sempre. No final, minha reação solidificou-se em descaso, em vez de vergonha. Não acho que tenha sido a pior coisa que me aconteceu. Foi uma experiência ruim, doeu e eu não tinha como escapar. Mas não sinto que fui especialmente violentada pelo estupro em si, não mais do que teria sido por qualquer outro ataque desferido a mim ou a minha liberdade. Em 1961, nem é preciso dizer, ser penetrada contra a vontade era um assassinato espiritual. Tive mais nojo do que me senti envergonhada ou diminuída. Para a minha sorte, o espírito da época era diferente.

***

Ainda assim, por muitos anos, pensei no incidente como “o dia em que me deixei estuprar”.

Tinha plena consciência de ter ido voluntariamente com ele ao estúdio de gravação.

Meu “novo amigo”, como desconfio que ele devia se considerar, telefonou alguns dias depois. Meu pai atendeu, não gostou da voz dele e pediu que não ligasse de novo. Eu não havia lhe contado nada, nem falei disso a ninguém por muito tempo, apenas deixei a coisa se tornar algo que simplesmente acontecera. Cheguei a me considerar, de certa forma, culpada. Na verdade, um amigo mais velho e experiente me garantiu, anos mais tarde, que era impossível estuprar uma mulher: se a penetração ocorria, era porque ela queria. Não lhe contei sobre o estupro, mas fiquei imaginando se, nesse caso, eu devia parar de pensar naquilo como um estupro, uma vez que tinha havido penetração. Hoje já não penso mais assim, embora continue acreditando que não foi a pior experiência da minha vida.

Em busca de atenuantes, Polanski disse ao tribunal que acreditava que Samantha Geimer “não tinha sido totalmente impassível”. Ela relembrou:

Eu disse: “Não, não. Não quero entrar lá. Não, não quero fazer isso. Não!” – e depois não soube mais o que fazer. Estávamos sozinhos e eu não tinha noção do que mais poderia acontecer se eu fizesse escândalo. Então só fiquei assustada e, após oferecer certa resistência, pensei: Bem, acho que ele vai me deixar ir pra casa depois disso.

Soa verdadeiro aos meus ouvidos. Sem dúvida, Samantha Geimer (juntamente com sua mãe), assim como eu, colocou-se numa situação na qual o estupro poderia ocorrer. Talvez ela tenha correspondido, e talvez até consentido em fazer sexo oral com Polanski. Então ele a penetrou e perguntou quando fora sua última menstruação. Quando viu que ela não sabia, ou que estava constrangida demais para dizer, por via das dúvidas ele a sodomizou. Não foi gentil de sua parte? Continuemos chamando isso de estupro-estupro e não vamos nos preocupar tanto assim com o sono de Polanski na cadeia.


[1] Em 25 de novembro, a justiça suíça concedeu liberdade condicional a Roman Polanski. Mediante uma caução de 3 milhões de euros, cerca de 7,8 milhões de reais – que o cineasta obteve hipotecando o seu apartamento em Paris -, ele poderá morar no seu chalé, em Gstaad, até que se decida se será extraditado para os Estados Unidos. Ele teve que entregar seus documentos de identidade à justiça e é obrigado a usar um bracelete eletrônico que permite à polícia o monitoramento dos seus passos.

Talentosa discrição

Posted: 1st dezembro 2009 by Vanessa Barbara in Clipping
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Revista Época São Paulo
Dezembro de 2009

Um olhar perspicaz sobre a rodoviária do Tietê rende o prêmio Jabuti de livro-reportagem a Vanessa Barbara – uma quase ex-jornalista que, de tão tímida, odeia entrevistar

por Camilo Vannuchi