Às quintas-feiras à tarde, havia aula de francês na faculdade do Mosteiro de São Bento. Lá fora, o sol batia em cheio nos camelôs, os executivos saíam para almoçar e as estátuas vivas escorriam tinta do rosto. As pessoas comiam cachorro-quente com purê de batatas, enquanto um bar era fechado pela vigilância sanitária. Lá dentro, porém, era século dezenove: a sala de aula dava para o jardim do mosteiro e a gente aprendia os partitivos, o futuro próximo e os pronomes “en” e “y”.

O professor Alfredo Fressia reclamava do calor e nos dizia, filosoficamente, “ça met longtemps pour se devenir lui-même” (é preciso muito tempo para se tornar si mesmo). As salas eram enormes, com pé-direito alto e crucifixos por toda parte. Havia dez alunos por turma, algumas velhinhas de vestidos floridos e um delegado de terno sob um calor de trinta graus. Os monges se confundiam nas conjugações e o professor Alfredo recitava poemas. Não havia prova e nem chamada oral. A gente lia trechos do romance Manon Lescaut, achava que “chaussures” eram salsichas e conversava sobre a vida, a meteorologia, os trens de alta velocidade. Houve uma aula, em pleno verão, em que passamos duas horas falando só de gansos. Discutiu-se de tudo: dos gansos do Capitólio, do ímpeto agressivo da espécie e do fato de serem “animais multiuso”. A conversa foi derivando para a diferença entre grilo e grelha, depois passou ao termo em francês para “carrinho bate-bate” e, por fim, aterrissou estrondosamente num poema em latim que dizia: “Cacatio matutina (est) medicina. Cacatio meridiana nec bona nec mala. Cacatio serotina ducit hominem ad ruinam”, uma trovinha graciosa sobre os benefícios de frequentar o banheiro pela manhã.

Nas aulas de francês, a gente aprendeu de tudo. Na maior parte do tempo, tratava-se de “un bavardage inconsistant”, ou seja, um notório papo furado, que, não raro, terminava com um trava-língua qualquer: “Ton thé t’a-t-il ôte ta toux?” (Teu chá tirou a tua tosse?). No fim do ano, debatemos um crime hediondo em detalhes, com os verbos todos no lugar. Eu sei recitar até hoje que “a polícia encontrou pedaços de um cadáver num vagão de trem”, e que, nas semanas seguintes, mais membros do mesmo corpo foram encontrados em outros trens. Faltava só uma coisa: a cabeça. Jamais foi encontrada.

Alfredo fazia troça das frases do livro de exercícios: “‘Teus sapatinhos novos me agradam’, que frase mais babaca”. Já o professor de latim, baixinho e sereno, vivia passando vagarosamente e cumprimentando o abade. Na parede, não havia relógios. O tempo corria para trás nas aulas de francês do mosteiro São Bento — como se fosse sempre à tarde e nós usássemos chapéus.

Luzes acesas

Posted: 29th março 2009 by Vanessa Barbara in Crônicas, Metrópole, O Estado de São Paulo
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Todas as noites, ele chega do trabalho, acende a luz da cozinha e põe o cachorro em cima da bancada, perto da janela. Todas as noites, ele escova o animal, que fica encostado no vidro, espichado, morrendo de cócegas. “Amor, ele está penteando a loira bizarra de novo”, diz a vizinha míope, espantada.

Todas as noites, o casal do apartamento da frente bota o bebê pelado no sofá e liga a televisão. Da janela vê-se a mulher passar a roupa vagarosamente, enquanto ele abre uma cerveja e vigia o filho. A vizinha míope acha que a criança é do mal. Eles assistem tevê sem pular os reclames e ficam horas sem se mover.

Há outro casal que veste o pijama às quatro da tarde, um pijama engomado de gola e bolsinho, listrado ou xadrez. “Amor, eles já estão de pijama”, diz a mesma vizinha, tomando certas providências quanto ao próprio vestuário.

Já o advogado da janela de baixo passa as madrugadas de camisa social, cochilando em frente à tevê, e às três da manhã acorda sem saber qual é a capital da Alemanha, quanto tempo a água leva para ferver e se já é hora do almoço. Às vezes ele passa um pano no chão da cozinha, às vezes discute procedimentos jurídicos ao celular. Outro dia estava lendo um livro sobre a China.

A velhinha do lado assiste a programas de culinária no volume máximo e nunca trocou a maçaneta dourada da casa. Às vezes ela fica espiando o corredor pelo olho mágico, quando está sem sono ou quando é sábado à noite.

As luzes estão acesas em todos os apartamentos da vizinhança, e há no ar um cheiro de feijão. É sempre tarde. As moças chegam do trabalho com seus sapatos de salto, os homens largam as pastas na mesa e abrem a geladeira. As crianças vão dormir cedo por causa da escola, os cachorros se enrolam no canto da sala, resmungando palavras em francês. A esposa se põe a contar o que aconteceu no escritório, sem poupar o marido dos mais vívidos detalhes, por exemplo: ela espirrou três vezes antes de assinar o contrato, ela comeu um abacate inteiro, outro dia pensou em pintar a unha de vermelho, mas acha melhor não. O marido bota um filme no aparelho de DVD e os dois dormem antes de descobrirem que é dublado. Amanhã é preciso lavar a roupa, jogar as batatas fora, pagar a conta do gás. Amanhã é preciso acordar cedo, fazer o café, limpar o umbigo.

A vizinha míope anda o dia todo de pantufas, às vezes senta perto da janela e corta as unhas do pé. Ainda não sabe direito trocar as lâmpadas, mas lava a louça como ninguém. Quando chega a madrugada, ela senta no sofá e começa a ler um livro bem grosso, de capa dura, em companhia das luzes que vão se apagando, uma a uma, até sobrarem o barulho dos caminhões de lixo e o porteiro lá embaixo, assistindo a uma reprise do Pica-Pau.

Retrato do terminal

Posted: 21st março 2009 by Vanessa Barbara in Clipping
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Jornal O Povo
21 de março de 2009

por Raquel Gonçalves, da Redação 

    

“Hoje eu consertei o zíper da minha blusa no 701-U”, declara uma jovem passageira. “Espero encontrar meu grande amor nessa linha”, afirma outro rapaz, sonhador. O trajeto coerente do 701-U, Jaçanã–Butantã USP, é até hoje um modelo de racionalidade no tráfego. Em seus 163 minutos de percurso, segundo informações oficiais da SPTrans, o coletivo passa pelas ermas ladeiras do Tucuruvi (assim como os 177H e P, que espantam galinhas pelo caminho), chega portentosamente às principais ruas de Santana, às nem tão principais assim, a uma certa viela chamada Perpétuo Jr. e vai além, sempre atrás de um Corsa, pela avenida Tiradentes, Ipiranga, Consolação e Cardeal Arcoverde, onde é cercado de carros por todos os lados e acolhido em uma alegre e estanque quermesse local. (Segundo relatos, em certos trechos dá pra ver o mar.)

Durante essa jornada, muitos passageiros optam por escutar música, papear ou falar ao celular. O fundo do ônibus se transforma em dormitório, onde os peregrinos encostam-se ao vidro e usam as blusas como travesseiro. Outros cochilam de boca aberta e há sempre uma moça que descasca o esmalte das unhas. De pé, os estudantes lêem folhas de xerox, com canetas marca-texto presas na boca.

Pensando nisso, e diante da evidente escassez de ocupações alternativas, elaboramos uma lista de atividades para exercer a bordo desse coletivo.

1) Massagem nos pés
2) Conhecer a vida, obra, curiosidades e preferências do cobrador, do motorista e de treze passageiros, aleatoriamente
3) Jogar forca no vidro (quando está chovendo)
4) Dormir, acordar, comer, mascar chicletes e voltar a dormir
5) Olhar o relógio de minuto em minuto, gritando a cada hora cheia
6) Inventar enigmas obrigatórios para poder passar pela catraca
7) Estalar todas as articulações do corpo
8) Planejar seu futuro em 815 pedaços de papel
9) Rasgar tudo e escrever um haikai
10) Abrir um pacote de bolachas recheadas e fazer amigos
11) Gritar “tarântula!”, e depois fingir que está dormindo
12) Cronometrar quanto tempo o ser humano consegue ficar completamente imóvel
13) Ficar próximo ao controle do Bilhete Único para ver quanto crédito as pessoas possuem no cartão, invejando os abastados e ridicularizando os depauperados
14) Olhar pra fora e perceber que ainda estamos no meio do caminho

Segundo fontes, a Prefeitura de São Paulo pretende transformar o 701-U num centro cultural e desportivo. Nele, a população nômade terá acesso a palestras, atividades lúdicas e cursos profissionalizantes. Ao passar pela catraca, será possível jogar tênis, ter uma animada aula de rumba, assistir ao curso prático “O que podemos aprender com os gansos?”, realizar caminhadas e assistir na íntegra os discursos de José Sarney

Sem xixi na galocha

Posted: 1st março 2009 by Vanessa Barbara in Reportagens, Revista piauí
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Piauí n. 30
Março de 2009

por Vanessa Barbara

O bandeirantismo completa cem anos com rãs, pelúcia e banho de cano, mas sem o entusiasmo de uma invasão do Palácio de Cristal

No dia 4 de setembro de 1909, no Palácio de Cristal, em Londres, 11 mil meninos de várias partes do Reino Unido se juntaram para encontrar pela primeira vez o criador do escotismo, lord Robert Stephenson Smyth, o barão Baden-Powell. Sem serem convidadas, 24 garotas se infiltraram na reunião dos escoteiros. “Ficamos sabendo do encontro por meio do grupo escoteiro local”, contou uma delas, que tinha 13 anos e morava em Camberwell, ao sul de Londres. “Não havíamos sido convidadas e nem tínhamos permissão para ir, mas pegamos emprestados alguns uniformes e chapéus e fomos.” Algumas das meninas escreveram cartas a Baden-Powell usando apenas suas iniciais, para que ele pensasse que eram rapazes, e assim conseguiram se inscrever.

Apesar do dia frio e chuvoso, elas andaram quase 10 quilômetros até o Palácio de Cristal porque não tinham dinheiro para o ônibus. Ao chegarem, foram barradas por um organizador que fez troça das moçoilas – o escotismo era uma organização estritamente masculina. Incansáveis, elas conseguiram entrar sorrateiramente, por entre um grupo de escoteiros.

Dentro do palácio, filas de rapazes, com seus totens e chapéus, desfilavam e saudavam Baden-Powell, que, satisfeitíssimo, inspecionava as tropas. Seu humor azedou quando vislumbrou o grupinho de fedelhas num dos cantos da arena. Elas ainda tentaram se esconder, mas ele se aproximou a passos largos e inquiriu: “Que diabos vocês estão fazendo aqui?” A líder das meninas respondeu: “Queremos fazer a mesma coisa que os rapazes, queremos ser escoteiras.” Baden-Powell respondeu que era impossível, mas, mais tarde, disse que ia pensar no caso.

Durante o resto da cerimônia, as garotas foram apupadas pelos rapazes, e mesmo assim não se abalaram. Depois da leitura de um telegrama de cumprimentos do rei Eduardo VII, como todos os presentes elas ergueram seus chapéus e totens. Foi graças à pressão das meninas que, no ano seguinte, Baden-Powell determinou que sua irmã Agnes fundasse a vertente feminina do escotismo, que no Brasil se chamou Movimento Bandeirante, em homenagem aos brasilianos de São Paulo que, a poder de ferro e fogo, dilataram a fé católica e o império luso.

O bandeirantismo brasileiro comemora neste ano nove décadas de vida. Em 2010, será a vez do centenário mundial, quando todos os membros da World Association of Girl Guides and Girl Scouts organizarão festas nacionais e internacionais para celebrar a data, sempre no centésimo dia do ano (10 de abril). As comemorações se estenderão por três anos, o tempo que, da Inglaterra, o movimento levou para se espalhar pelo mundo. O primeiro acampamento mundial comemorativo está marcado para o ano que vem, no Canadá, e até lá os bandeirantes firmaram o compromisso de fazer 100 grandes amigos.

Sim: os bandeirantes. Ao contrário do que imaginam os leigos, o bandeirantismo não é uma associação só para moças. A partir da década de 60, passou a receber também meninos e hoje é uma organização mista, distinta do escotismo, mas com princípios e técnicas semelhantes. Pode-se dizer que o escotismo se concentra em aventuras e pioneirias (amarras, bivaques, orientação, sobrevivência na selva) e o bandeirantismo, em campanhas beneficentes, projetos educacionais e jogos – embora isso não seja regra e comportamentos possam variar de região para região.

***

Espíritos malignos invadiram o acampamento durante a noite. Foi em outubro de 2001, em Araçariguama, no interior paulista, quando uma menina fez xixi nas galochas de tanto medo e as crianças tiveram que resgatar a chama da magia por entre as árvores, sem pistas e sem lanterna – e parece que havia morcegos.

Três anos antes, num acampamento em Parelheiros, na periferia de São Paulo, uma bruxa horrenda assaltou o forte apache e, em uma atitude destemida que virou notícia, “a Camila pegou uma minhoca com a mão”.

Em 1992, sempre em São Paulo, dessa vez em Boituva, foi a máfia chinesa que assombrou. Quatro sábios de branco vagaram pelas barracas distribuindo pistas, enquanto os malfeitores de preto capturavam membros das equipes. Alguém passou por uma ponte baixa e foi agarrado pelo pé. Nos acampamentos bandeirantes, os jogos são mirabolantes e até as crianças de 5 anos enfrentam monstros, índios loucos e esqueletos.

Em abril passado, num sítio em São Bernardo do Campo, os núcleos bandeirantes Acauã e Itatiaia organizaram um acampamento para cinquenta participantes. O tema, que em geral é apenas uma desculpa para criar os jogos, era “alto astral”, ou seja, horóscopo. Os jogos foram preparados com algumas semanas de antecedência e incluíam circuitos com cordas, lama e toldos escorregadios. Os bandeirantes foram divididos em quatro equipes, simbolizando a terra, a água, o fogo e o ar, e tiveram de cumprir uma infinidade de tarefas vagamente relacionadas aos signos. Por exemplo: na base do signo de Sagitário, que, segundo o zodíaco, é marcado pela liberdade e a aventura, passaram por um labirinto de cordas com os olhos vendados e apanharam ingredientes para um almoço mateiro.

Os bandeirantes só costumam descobrir o tema na abertura do acampamento. Às vezes, são surpreendidos pelos jogos em andamento enquanto lavam a louça ou escovam os dentes: surge um feiticeiro envolto em uma nuvem de fumaça e começa a ditar as regras. Ou então os adultos (chefes escoteiros ou coordenadores) desaparecem misteriosamente, deixando o acampamento às moscas e um mistério para as crianças desvendarem. Outras vezes, os jogos são contínuos e as equipes passam dias e dias na sequência da mesma história, incorporando os personagens relativos ao tema. As fadas e os magos – os bandeirantes de 5 a 9 anos – já estão acostumados com a idéia. Em suas reuniões semanais, que em geral acontecem aos sábados, participam do “encantamento”, atividade em que formam um círculo e, cantando uma música, assumem a personalidade de médicos, besouros, artistas, expedicionários, marcianos, ou bananas. Levam a brincadeira tão a sério que, num feriado de Semana Santa, uma coordenadora teve que “desencantar” por telefone uma criança que tinha saído mais cedo da atividade e continuava agindo como uma cenoura.

As demais categorias de bandeirantes (B1 e B2, de 9 a 15 anos) e guias (de 15 a 18 anos) também realizam reuniões semanais, em que participam de jogos educativos nas áreas de saúde, habilidades, cultura, cidadania, meio ambiente e participação comunitária. O bandeirantismo também se dedica a gincanas, visitas a creches e asilos, competições esportivas, brincadeiras de roda (às vezes com letras em espanhol que ninguém entende, ou cantigas famosas de significados obscuros como “Era um sapo/ que morava no rio/ com seu traje verde,/ mas morria de frio/ E a senhora sapa/ tinha um amigo/ que era professor”), jogos de cidade, caças ao tesouro, debates, pinturas, teatro etc. A idéia geral é ensinar através de jogos.

***

Na saída para o acampamento, uma coordenadora foi logo avisando: “Olha o dedo no nariz!” As crianças se dispersaram pelo ônibus. As fadas e magos dormiram na frente com seus macaquinhos de pelúcia, os B1 ficaram falando sobre a escola e comendo salgadinhos, algumas B2 comentaram que gostavam de tomar banho frio porque faz bem para a pele e os guias tocaram pandeiro. Ao chegar ao sítio Garça Branca, todos descarregaram a bagagem e começaram a montar o acampamento.

Foram postas de pé duas cozinhas (com mesas de bambu e toldo) e doze barracas para os B1 e B2, além de onze redes para os guias. A montagem levou a tarde inteira e foi cansativa. “Tem uma rã no seu pé”, avisou uma das guias e a amiga, ocupada em reforçar uma amarra, nem se incomodou. Alguém reclamou que seria mais rápido montar um kit instantâneo de redes e toldo, e a coordenadora de guias retrucou que seria como comprar hambúrguer pronto para o acampamento. Ou pedir pizza.

Redes de náilon foram estendidas entre troncos de árvores, em dois ou três andares. Os que dormiam no último andar não podiam levantar à noite para ir ao banheiro. Há uma técnica complexa de subir nas redes, que exige agilidade e equilíbrio. Nenhum tombo grave foi registrado.

As fadas e os magos, que não precisavam montar o próprio alojamento, pois iam dormir num galpão, se dispersaram pelo campo. Duas fadinhas apostaram corrida: “Quem chegar primeiro perde”, disse a pequena Letícia, de 5 anos, a tempo de se corrigir: “Não, não, quem chegar por último, senão a gente vai ficar parada.” A certa altura da tarde, ela e Luna, dois anos mais velha, pediram socorro aos bandeirantes que passavam com bambus: “Alguém ajuda a gente a descer da gangorra?”

A bandeira do acampamento foi hasteada quase no final da tarde e assim começou o cerimonial de abertura com brincadeiras e divisão de equipes, quando os bandeirantes produzem gritos de guerra, totens e identificação. A equipe Minhoca saiu na frente. O jantar foi macarrão com almôndegas.

***

Baden-Powell fez carreira militar na Índia e na África e chegou a general. Comandou inúmeros regimentos, entre os quais promovia espetáculos de teatro, competições de caça ao javali e passeios de bicicleta. Um dia, dividiu os soldados em pequenas unidades de meia dúzia (que, no escotismo, foram chamadas de patrulhas e, no bandeirantismo, de equipes) que nomeavam seu próprio líder. Também criou insígnias e prêmios de eficiência. Ele achava que o trabalho, inclusive o militar, rendia mais se fosse realizado de maneira interessante. Desenvolveu jogos e competições que uniam a prática e a diversão, e os aplicou no escotismo.

O primeiro acampamento escoteiro da história foi organizado por Baden-Powell em 31 de julho de 1907, na Ilha de Brownsea. Compareceram vinte meninos. No primeiro dia, foram formadas quatro patrulhas: Maçaricos, Corvos, Lobos e Touros, sendo escolhidos os monitores e distribuídos os demais cargos. Cada patrulha tinha sua barraca e era identificada pelas cores das quatro fitas que os integrantes portavam no ombro e pela bandeirola que os líderes carregavam num bastão. Em cada dia, os escoteiros trabalharam um tema diferente: técnica de acampamento, observação, artes mateiras, cavalheirismo, salvamento de vidas e patriotismo. Lá ocorreu o primeiro Fogo de Conselho (cerimônia em torno de uma fogueira com histórias, esquetes e músicas).

O acampamento foi um sucesso e Baden-Powell reuniu sua filosofia em um manual, Escotismo para Rapazes, publicado em 1908, que é usado até hoje. Ele afirma no livro que “compreendeu que estava aí a oportunidade de ajudar os rapazes de sua pátria a se desenvolverem para uma robusta virilidade”. Há outros trechos memoráveis, como uma seção dedicada à continência ou abstenção de prazeres sexuais, na qual o autor diz que o desejo pode ser despertado por se ter comido demais, pela constipação ou por se dormir em cama macia, muito quente, com muitas cobertas. O livro ensina como tocaiar emas, como ficar de cócoras e como afiar bons cotocos. A despeito de alguns ensinamentos ultrapassados, é um bom manual de referência para pioneirias, orientação, cozinha mateira, sinais de pista, observação e outras técnicas de campo.

Com suas técnicas e jogos, Baden-Powell queria que as crianças e jovens aprendessem a agir por conta própria e se autoconhecessem. “O instinto natural do menino é de fazer despontar a própria personalidade por meio de um exercício que chamamos jogo”, escreveu. “Ele tem um desejo de realizar-se: quer fazer coisas e superar dificuldades para se sentir diferente.” O general cita a educadora Maria Montessori para dizer que, encorajando as crianças nos seus desejos naturais, em vez de instruí-las naquilo que o adulto pensa que deveriam fazer, é possível educar sobre uma base mais sólida e mais ampla.

***

A chuva atrapalhou um bocado o acampamento em São Bernardo. No segundo dia, o jogo noturno foi cancelado porque a tempestade estava forte e, em vez de Fogo de Conselho, fez-se uma lamparada, na qual a fogueira é substituída por lampiões. O banho de B2 e guias aconteceu numa “cachoeira” a quinze minutos do campo – na verdade, três canos de plástico que desaguavam num riacho. Na volta do banho, a chuva apertou. Alguns jogos foram feitos debaixo do aguaceiro. As fadas e magos se dispersavam de cinco em cinco minutos e alguns se recusaram a participar. “Santa Catarina é longe, fica perto do Japão”, informou uma das fadas à amiga, durante um jogo, sem qualquer motivo aparente. Patos e galinhas passeavam placidamente pelo campo, enquanto os bandeirantes tentavam acender uma fogueira debaixo de chuva para preparar o almoço. Às vezes, os maiores também se dispersavam e as brincadeiras se estendiam além da conta.

Desde a invasão das meninas no Palácio de Cristal, o Movimento Bandeirante passou por várias modificações. Nos anos 60, atingiu no Brasil o auge de 20 mil membros. Hoje, segundo o censo da Federação de Bandeirantes do Brasil, o efetivo é de 4 500 inscritos em catorze estados. Recentemente, o movimento aderiu à onda do “ano do voluntariado” e passou a dar mais atenção a projetos como Ouça, Aprenda e Viva (de prevenção a Aids), o Dia Global do Voluntariado Jovem e o Dia de Fazer a Diferença. Ao mesmo tempo, para os cerimoniais de reflexão, adotaram-se mensagens edificantes de paz e harmonia, como textos falsamente atribuídos a escritores famosos que falam de persistência, arco-íris, criatividade e lendas milenares da China rural. Os jogos deram lugar a dinâmicas de auto-ajuda. Baden-Powell foi ficando para trás.

***

O jogo é uma ocupação voluntária, exercida dentro de certos limites de tempo e de espaço, segundo regras livremente consentidas, acompanhado de um sentimento de tensão e de alegria, e de uma consciência de ser diferente da vida cotidiana. Essa é a definição do historiador Johan Huizinga, que, em Homo Ludens, enumera as suas principais características: liberdade, evasão da vida real, desinteresse, isolamento, ordem e limitação. Ainda assim, não é o oposto da seriedade, pois pressupõe que os participantes adotem seu universo com a maior gravidade possível – ele funciona melhor quanto mais for levado a sério.

É o caso da criança que não podia deixar de agir como cenoura. Ou dos muitos casos de agressão, com vassouras e panelas, aos adultos fantasiados de Sujeira ou Vírus, mesmo depois de eles terem retirado as máscaras de vilões. O segredo é despertar nas crianças um entusiasmo que chegue ao arrebatamento, sustentando um ar de mistério e de segredo compartilhado. Nas palavras de Huizinga, “a sensação de estar ‘separadamente juntos’, numa situação excepcional, de partilhar algo importante, afastando-se do resto do mundo e recusando as normas habituais, conserva sua magia para além da duração do jogo”.

Para a educadora Vania D’Angelo Dohme, a informalidade com que Baden-Powell colocou em prática suas idéias educacionais, utilizando elementos desafiadores para a época, pode ter prejudicado a aplicação de seu método nos dias de hoje. Eis o que ela escreveu num artigo para a União dos Escoteiros do Brasil: “Elementos inovadores e criativos ficam um pouco abafados perante tradições e costumes característicos da época em que foram concebidos, e acabam por fazer parte do seu contexto, dando uma aparência, para quem os observa apenas superficialmente, um pouco velha e ‘rançosa’. Neste panorama, o conteúdo educacional fica pouco visível à sociedade em geral e, às vezes, até pouco percebido e explorado pelos próprios integrantes.”

A maioria dos coordenadores bandeirantes não tem formação em pedagogia ou conhecimentos específicos para cuidar das crianças. Apesar de frequentarem treinamentos ocasionais, são movidos a puro ânimo e boas intenções. Muitos são bandeirantes desde a infância e passaram por todos os ramos antes de assumir a coordenação de um grupo, aos 18 anos. Eles se conhecem de outros acampamentos, identificam-se em fotos de dez anos atrás e continuam empolgados com o bandeirantismo. Outros são pais dos novos bandeirantes que, um dia, se oferecem para ajudar numa atividade e acabam ficando para compor a diretoria (secretaria, tesouraria, presidência) ou a coordenação. Todos os cargos não remunerados.

Há ainda jovens voluntários que ficaram sabendo do movimento e resolveram participar: são estudantes de direito, marketing ou administração, além de professores de geografia, comerciantes, bancários ou nutricionistas que demoram a se acostumar com o método bandeirante. Para coordenar as crianças, o requisito básico é possuir uma espécie de entusiasmo peculiar que lhes dá disposição para participar de reuniões de planejamento aos domingos de manhã, desfiles cívicos nos feriados e longas madrugadas recortando sinais de pista.

Alguns núcleos têm a sorte de possuir coordenadores com essa característica, outros não. É esse, em suma, o risco que corre o Movimento Bandeirante: perder o entusiasmo que o mantém de pé. O mesmo entusiasmo que levou as meninas inglesas a invadirem o Palácio de Cristal.

Em 1995, no pico do Jaraguá, duas bandeirantes receberam a tarefa de um coordenador faminto: atravessar o campo à noite para buscar caquis. Na reta final, perceberam que os caquis eram tomates, e tiveram que fazer tudo de novo, correndo de olhos fechados e mãos dadas, numa mistura de pavor e empolgação.

Em 1999, em Embu-Guaçu, uma “bomba-relógio” teve que ser desarmada pelas equipes, que quase atingiram a histeria coletiva à medida que o tempo se esgotava.

Em 2001, bandeirantes chegaram sozinhos até a rodoviária paulistana, guiados por uma bússola e uma carta de navegação.

No acampamento de São Bernardo não houve nada parecido. Ao contrário, houve dispersão e desatenção. Em meio a um jogo de bases, duas fadinhas fugiram para ir ao banheiro e não voltaram mais para suas equipes. Uma B2 impaciente pediu para uma coordenadora ler mais rápido as tarefas da base. Um bumerangue clandestino foi apreendido. Para tristeza dos coordenadores, ninguém chegou a fazer xixi nas galochas.

Mulheres notáveis

Posted: 1st março 2009 by Vanessa Barbara in Crônicas, Metrópole, O Estado de São Paulo
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Em 8 de março, comemora-se o Dia Internacional da Mulher, um momento para celebrar as conquistas políticas, sociais e econômicas do sexo feminino desde o doloroso tempo das cavernas, passando pela época dos aventais e a era das polainas na aula de aeróbica.

Ao longo da história, foram muitas as mulheres que se destacaram pela audácia e pioneirismo. Algumas permanecem anônimas. Por exemplo, Sandra Luchian, de 15 anos, da Moldávia, que não tinha dinheiro para comprar o livro do Harry Potter e passou as férias do verão de 2005 copiando-o à mão. Ela preencheu cinco cadernos com o texto de 607 páginas, discriminando os diálogos em azul e as narrações em preto, para facilitar a leitura. Ou a americana Leslie Tipton, a pessoa que escapou mais rápido de uma mala fechada. A contorcionista conseguiu sair da bagagem em apenas 13,31 segundos e entrou para o Guinness Book. Há mulheres que carregam imensos fardos na cabeça, mulheres com onze filhos, mulheres matemáticas, mulheres santas, mulheres fãs de Star Trek e até mulheres barbadas. Há mulheres como a sul-coreana Cha, de 68 anos, que tentou tirar a carteira de motorista 772 vezes, ou a búlgara Daniela Simidchieva, considerada a pessoa mais inteligente do mundo, com um Q.I. de 192, mas que não consegue arrumar emprego. Simidchieva é mãe de três crianças e possui cinco títulos Ph.D.: em economia, engenharia eletrotécnica, engenharia industrial, inglês e sociologia.

Trinta e cinco mulheres já ganharam prêmios Nobel, e mais de quinhentas foram eleitas prefeitas de cidades brasileiras nas últimas eleições. Há mulheres astronautas, mulheres-bomba, mulheres mecânicas, mulheres gordinhas e mulheres que andam o dia todo de galochas por opção profissional. São do sexo feminino as inventoras do pára-brisa, do liquid paper, do filtro de papel, das fraldas descartáveis, da lava-louças e das primeiras lentes de óculos. Também foi uma mulher, lady Mary Montagu, que introduziu no mundo a vacina contra a varíola, e foi a filha de lord Byron a primeira programadora de computadores da história. No caso, Ada Lovelace utilizou seus conhecimentos de matemática avançada para ajudar Charles Babbage, inventor de um artefato analítico que é considerado o primeiro computador. Também uma mulher projetou o primeiro cinto de castidade canino, em 1903, para manter a pureza do pedigree de seus cães.

Não podemos esquecer da sueca que passou 27 dias com uma aranha dentro da orelha, “grande como a unha de um dedão”, e da senhora inglesa que atacou um intruso com seu gnomo de jardim. “Ele ficou estirado no chão e comecei a gritar. Voltei para a cozinha e peguei um rolo de macarrão, caso ele acordasse. Não queria quebrar outro gnomo”, disse a heroína. E, por fim, lembremos da sueca idosa que vivia com onze cisnes em seu apartamento de 25 metros quadrados.

Gente de esquerda

Posted: 15th fevereiro 2009 by Vanessa Barbara in Crônicas, Metrópole, O Estado de São Paulo
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Eis que Barack Obama é um presidente canhoto. É o oitavo líder do mundo livre a escrever com a mão esquerda, e, além disso, gosta de chá gelado de amora – o que não vem ao caso. O fato é que a vitória de Obama traz à tona uma série de questões pertinentes sobre a categoria. Por exemplo: uma das conotações de canhoto é “sinistro”, que em latim significa tanto pernicioso quanto agourento. E “canhoto” é sinônimo de demônio. Nos tempos da Inquisição, eles eram considerados mensageiros da morte, praticantes de bruxarias e enviados do Diabo. Está na Bíblia: “A mão direita de Javé faz proezas! A mão direita de Javé é excelsa!”, e assim o termo “direito” se relaciona ao correto, ao justo e ao bom, e o “destro” à destreza. Para piorar, há quem acredite que Alá tem duas mãos direitas.

Os canhotos que se virem. Aproximadamente 90% da população é destra, os demais abrem as latas com dificuldade, mancham os dedos de tinta de caneta e se entortam inteiros para usar tesouras. As carteiras escolares em geral têm apoio de um lado só, obrigando o canhoto a se encurvar para escrever. E mais: eles não têm vez em esportes como o polo, pois são proibidos de usar a mão mais habilidosa. Réguas, fitas métricas, agendas telefônicas, teclados, todos seguem a ordem tradicional da esquerda para a direita. Só recentemente foram lançados no mercado relógios que correm no sentido anti-horário, para quem vê o mundo no esquema invertido.

Mas há sinais de resistência. Em 13 de agosto do ano passado, Dia Mundial do Canhoto, o senador Marco Maciel fez um emocionado discurso pró-esquerda, reivindicando carteiras escolares diferenciadas. “Como canhoto, observo que somos uma minoria esquecida”, disse ele, aos chefes do Poder Executivo. “A Constituição de 1988, sr. presidente, foi altamente inovadora, em especial no que diz respeito às minorias: adolescentes, idosos, índios, igualdade étnica etc., sem contar a ampla cobertura na área de Previdência Social, mas nada dispõe sobre os canhotos. Enfim, os canhotos também são filhos de Deus.”

Há inclusive provas de sua superioridade: dos cinco criadores do Macintosh, quatro pertenciam à confraria, assim como metade dos Beatles (Paul e Ringo) e dois dos três astronautas da Apolo 11 (Neil Armstrong e Buzz Aldrin). Aliás, o primeiro passo do homem na Lua foi com o pé esquerdo. Reza a lenda que os ursos polares são todos canhotos e que os papagaios usam a pata esquerda com notável habilidade. Além disso, os canhotos enxergam melhor debaixo d’água e pensam mais rápido em tarefas que exigem intensa troca de informação entre os dois lados do cérebro.

Por essas e outras, já estava na hora de o mundo mudar de mão.

A nossa rua

Posted: 1st fevereiro 2009 by Vanessa Barbara in Crônicas, Metrópole, O Estado de São Paulo
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No Mandaqui, a gente comia tatu-bola, tomava banho de chuva e tinha medo da Ana Paula, que batia nas meninas só porque elas eram mais altas. A gente vestia todas as roupas do armário para brincar de Elefantinho Colorido e dava voltas no quarteirão de meias para comemorar uma vitória no futebol. A gente esnobava as crianças mais novas e falava mal da Cássia, que nunca fez nada de mal pra ninguém, desculpa aí, Cássia, você não é orelhuda — foi mal. A gente brigava feio a cada quinze dias, arrumava novos amigos na rua de baixo e jogava ovos no quintal dos outros, por represália.

Na rua 2, a gente estendia uma rede de vôlei no portão dos Pessoa e da Mariângela, e ficava jogando até escurecer ou a mãe de alguém chamar para tomar Nescau, causando constrangimento na vítima e duas semanas ininterruptas de troça. Quando passava carro, a gente saía correndo com uma vassoura para erguer a rede bem alto, senão a antena do veículo enroscava e todo mundo começava a gritar como se o universo fosse acabar ali mesmo, num vórtice laranja de cacos de vidro, bambolês e pitangas. Quando descia caminhão na rua, o Gustavo se arremessava no portão para desamarrar a rede, enquanto os outros se estendiam no asfalto para impedir a passagem do bólido automobilístico, mártires do vôlei mambembe numa rua pouco movimentada, em descida, que é para dificultar ainda mais o esporte tupiniquim.

Nos dias de frio, ficávamos sentados na calçada enrolados num cobertor, discutindo sobre coisas muito importantes. A gente roubava no truco, no taco e furtava luzinhas de Natal dos nossos desafetos. A gente idolatrava o Menelau, um cão que viveu cem anos e que não latia nunca. A gente morria de medo da Selma: quando a bola caía no telhado do 136, o time se evaporava em dois segundos, mergulhava atrás dos arbustos, descia correndo o escadão, corria até Parelheiros e pensava que aquele era o momento mais perigoso de toda a nossa existência — a Selma saía no portão com a bola na mão, gritando, eu sei que vocês estão aí, enquanto a gente encomendava nossa alma ao Criador e rezava baixinho. A Selma era brava.

Nas férias de julho, a gente brincava de escritório: o Bernardo era o chefe e a Paula era uma das secretárias. Furtávamos uma dezena de aparelhos velhos das nossas casas ou de antiquários de quinta categoria, tipo telefones quebrados, grampeadores industriais, fichários, cadeiras de rodinhas e, um dia, chegou um computador 386 no qual a gente fazia fichas cadastrais dos funcionários usando o Bloco de Notas. Às vezes a gente derrubava o chefe e promovia todo mundo, ou rolava alguma briga com o pessoal do sindicato e uma turma de dissidentes abria concorrência na casa do lado.

Hoje o meu irmão tem uma mesa só dele no Banco do Brasil, sai de casa cedo pra brincar de escritório e não chama ninguém.

Piauí n. 28 [só no site]
Janeiro de 2009

por Vanessa Barbara

Beligerância e rancor em evento tipicamente klingon

No auditório da Livraria Cultura do Conjunto Nacional, em São Paulo, inúmeros klingons se reúnem para bradar o hino da vitória: “YIjah, Qey’ ‘oH”, eles repetem, zangados e com a mão no peito, numa letra que diz que a batalha já começou. No dia 17 de novembro, às 19h30, cerca de cinqüenta bancários e analistas de sistemas vestiram suas fantasias de trekkies e prestigiaram o Dia do Guerreiro Klingon, no lançamento dos quadrinhos Herança de Sangue, promovido pela livraria Devir e a Federação da Frota Estelar de São Paulo.

Os klingons são uma raça guerreira do universo da série Jornada nas Estrelas (Star Trek). No início, eram inimigos dos humanos, mas, ao longo de diversos episódios e filmes, se aliaram à Federação Unida dos Planetas e passaram a formar um pelotão de elite dos bonzinhos. Seu código de honra é militar, baseado no bushido japonês e nas religiões nórdicas. Para um klingon, todo dia é um bom dia para morrer.

O contra-almirante Sandro Feliciano, de 34 anos, mais conhecido como Gork, foi o primeiro klingon a aparecer no evento. Cumprimentou o almirante Wilton Mendonça Ferreira Junior, 44 anos, que na vida real é auditor fiscal do Bradesco, e brandiu sua bat’leth (espada de honra) aos presentes. Seu uniforme era preto, com coturno e calça de couro. No peito, grampeou dois jogos americanos metálicos e espetou broches de doação de sangue, segurança no trabalho e outras insígnias. Colou sobrancelhas espessas da mesma cor dos cabelos compridos e castanhos, além de uma máscara de testa rugosa, marca registrada dos klingons da Nova Geração. “É um assunto que não comentamos com forasteiros”, justifica um representante da raça, sobre a questão da testa. Trata-se de um dos temas mais discutidos da noite: na série clássica, com Kirk e Spock no comando da Enterprise, os klingons tinham a aparência normal com a sobrancelha mais grossa e a testa lisa. Na Nova Geração – capitaneada por Jean-Luc Picard -, talvez porque os produtores tivessem mais verba, a mitologia ficou mais complexa e as testas, rugosas.

O contra-almirante Alexandre “Worf” Lancieri, de 37 anos, professor de jiu-jítsu e ex-lutador de Mixed Martial Arts (uma espécie de vale-tudo), tem a testa comum e um uniforme mais sóbrio. É ele o único falante do idioma klingon (que estuda há oito anos) e um dos palestrantes da noite. “Você acaba procurando uma raça na qual você se enquadra, no meu caso, uma raça que dá porrada em todo mundo”, justifica. “Por ter uma cultura guerreira, sou muito fã dos klingons, então a minha série preferida é A Nova Geração, na qual se formatou a cultura klingon, e a Deep Space Nine, a partir da quarta temporada. Foi assim: um belo dia eu liguei a televisão na falecida TV Manchete, vi aquela baita nave da Enterprise e aquele cara ali, o Worf. Ele começou a dar pancada em todo mundo e eu pensei: ‘Esse aí sou eu’.” Worf, vivido pelo ator Michael Dorn, foi o primeiro klingon a tripular uma nave da Federação.

Há também uma moça klingon, Larissa Ortiz de Souza, 22 anos, estudante de moda, e seu namorado trekkie, que veste um uniforme amarelo no estilo pijama. Ambos têm uma visão da série mais bem-humorada, principalmente na tosca parte de efeitos visuais. Quando a discussão são os efeitos de câmera na hora de simular a turbulência na nave, eles dizem: “Tem sempre alguém que cai pro lado errado”. Já Michel “Vegore” Vega, 33 anos, bancário, é um klingon mais bravo, que faz caretas e olha feio para os humanos. Ele vigia uma das extremidades do auditório da Livraria Cultura enquanto Gork guarda a porta, de pé, feito um segurança dos portões do inferno. Sandro é técnico químico, trabalha com saneamento básico e gosta da raça de Worf por causa da inspiração japonesa e nórdica, e não por sua inclinação a exterminar organismos vivos.

Às quinze para as oito começa um debate sobre cultura klingon que se estende até as nove, com perguntas inflamadas do público. “Gostaria que você falasse sobre a política dos klingons passando pela guerra de Cardássia com Martok e com Gowron na Nova Geração, falar da importância do chanceler, da política em si”, pede um membro do fã-clube. “Qual é a população do planeta Klingon?”, questiona outro. De repente, chega um red shirt e cumprimenta os amigos. Red shirts (camisas-vermelhas) são os coadjuvantes da série que servem apenas para morrer logo após serem apresentados ao espectador, comprovando o perigo enfrentado pelos protagonistas. O sujeito em questão apareceu, sorriu para a platéia e disse que é sempre preciso haver um red shirt. Também apareceu, atrasado, um curioso casal klingon, que se sentou na primeira fileira e dizimou com seus fêisers todas as pessoas que lhes desagradavam.

Durante o debate, foi dito que o idioma klingon é a língua fictícia mais falada no mundo – há inclusive uma célebre tradução de Hamlet, que os aficionados dizem ter sido composta originalmente em klingon e vendida a Shakespeare por um viajante do tempo. Além de possuírem uma língua marcante, os klingons são muito fortes, têm os ossos robustos e uma personalidade aguerrida. Entre seus ritos de passagem, o de puberdade implica em andar por um corredor polonês recebendo choques do bastão da dor. O rito de casamento inclui o Kal’Hyah, despedida de solteiro do klingon, que consiste em passar uma semana num deserto sem comer, vertendo sangue, suando e fazendo provas de resistência física. “Tudo isso para pegar uma mulher barbada?”, pergunta um fã menos ortodoxo, deixando muitos indignados: há, sim, mulheres klingons muito belas, “mas ao estilo klingon”.

A discussão foi longa e, durante as partes mais controversas, foram ouvidas algumas pérolas. “Como diz aquele velho ditado klingon: errar é humano”, observou Michel, fazendo cara feia para a máquina fotográfica de uma criança. “Que os seus pratos sejam sempre servidos vivos”, “Se está no seu caminho, derrube” e “Você é feio” são outros ditados populares. Falou-se também sobre o calcanhar-de-aquiles da raça: o sangue cor-de-rosa. Por causa da censura, em um dos filmes da série, os produtores tiveram que pintar o sangue dos klingons de cor-de-rosa, tornando-os uma das raças mais caçoadas da mitologia. “Por que não amarelo, verde, ou preto?”, eles se revoltam.

Quase no fim da palestra, um klingon inflamado xingou o outro: “Hab SoSlI’ Quch”, ou seja, “Sua mãe tem a testa lisa”. É um xingamento fortíssimo. Aliás, o dicionário klingon não registra nada afetuoso ou amigável. Em lugar de um “olá”, apenas grunhidos como “nuqneH”, que pode ser traduzido como um ríspido: “O que você quer?”. De fato, reza a lenda que os klingons são rudes, truculentos e só gostam de matar. Mas, ao terminar o debate, ironicamente, eles pediram licença, recolheram seus fêisers e foram embora, sem trombar em ninguém.

TV Paciência

Posted: 25th janeiro 2009 by Vanessa Barbara in esquinas, Reportagens, Revista piauí
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Janeiro de 2009

por Vanessa Barbara

A eletrizante programação do transporte público paulistano

Em São Paulo, a bordo do ônibus Praça do Correio/SESC Orion, linha 5 317, o cidadão pode passar 119 minutos até atingir o destino final. Muita gente viaja de pé. Embora o percurso à tarde seja razoavelmente livre de trânsito, é possível envelhecer lá dentro.

“Para se fazer um atabaque, cortam-se pequenas ripas…”, é uma das coisas que o paulistano aprende durante o trajeto. Desde o começo do ano passado, 1 034 coletivos receberam monitores de LCD com programação das companhias BusTV Brasil, TVOut, BusMídia e TVO. Assim, é possível embicar na avenida 23 de Maio como um leigo e sair dela na condição de semi-especialista em confecção de atabaques. A TVO, presente em 468 coletivos de oitenta linhas, como a SESC Orion, conta com a cobertura geográfica mais ampla, “especialmente desenvolvida para o entretenimento dos usuários de transporte público”. Exibidas em aparelhos de 17 polegadas, as vinhetas de um minuto e meio apresentam dicas de saúde, beleza, cidadania e boas maneiras. Apesar de permitido pela portaria da SPTrans, a programação não tem som, segundo a TVO, para respeitar “o direito que os passageiros têm de não serem incomodados”.

Enquanto o ônibus passa pela avenida Interlagos, o viajante aprende o que é memória RAM e assiste a uma animação (incompreensível) com pinguins que tomam bolas de neve na cara. Em seguida, é submetido à propaganda de um desodorante seco, com legendas minúsculas. De dez em dez minutos, o sermão: “Você sabe o que é sífilis? Informe-se antes que seu bebê descubra.”

A maioria dos usuários tenta não prestar atenção nas imagens que se sucedem, brilhantes e vertiginosas, nas telas à frente. Encostam a cabeça no vidro ou olham pela janela. Há um monitor na ponta dianteira do ônibus e outro diante do cobrador, de modo que poucos bancos ficam imunes ao bombardeio visual.

Algumas das vinhetas da TVO contam histórias de figuras locais, como a do jogador de basquete Marcos Vinícius, que, antes de se profissionalizar, pegava três ônibus para ir aos treinos. Outras dão dicas de atrações no interior de São Paulo, como a Folia com Bonecões, em Atibaia, em que há figuras gigantes com cabeça de papel machê. Também na telinha, um pacato senhor dá instruções sobre a pesca de matrinxãs. Quando o ônibus já está na avenida Senador Teotônio Vilela, lotado, e o termômetro marca 32 graus, os passageiros são presenteados com vívidas imagens das cachoeiras de Brotas, de praias e de rios caudalosos.

***

O espectador, que paga 2,30 reais pela passagem, também aprende curiosidades históricas sobre os óculos, o relógio, o algarismo romano e o rinoceronte. E no final, ainda com meia hora do trajeto faltando, eles estão de volta: o atleta Marcos Vinícius, a memória RAM e os matrinxãs.

No metrô, o viajante dispõe da TVMinuto, do Grupo Bandeirantes. O cardápio de atrações inclui blocos de dez segundos com as principais manchetes do dia (“Karl Lagerfeld cria moeda de ouro com rosto de Coco Chanel”, “Exploração excessiva de atum vermelho diminui 10% em 2008”). O espectador ainda pode aproveitar as dicas de teatro, a previsão do tempo, os indicadores econômicos e o horóscopo – a propósito, os nativos de Libra devem tomar cuidado para não se entregarem aos prazeres da gula.

Toda a programação, silenciosa, é intercalada por vinhetas sobre o “plano de expansão do metrô”, em que os passageiros são informados sobre o funcionamento da Linha C-Esmeralda, a criação de novas estações, a modernização dos trens e as melhorias no sistema. Há também os alertas: “Não dê esmolas. Ofereça a sua ajuda a entidades assistenciais de sua confiança”, “Mantenha bolsas e mochilas à frente do corpo”, “Não deixe as crianças se sentarem nos degraus das escadas” e “Não segure as portas. Isso provoca atrasos em todos os trens”. Entre as notícias mais urgentes, há surpresas: “Comer barra de cereais é uma opção saudável e prática para o lanche.” Algumas empresas também anunciam nas telas, como se não bastassem os displays de propaganda junto à parede e ao teto do vagão.

Com a Lei Cidade Limpa, a capital paulista ficou proibida de veicular propaganda em cartazes pelas ruas, mas nos subterrâneos e dentro dos ônibus, a terra é de ninguém. No metrô, há propaganda nas catracas, nas colunas, nas escadas rolantes, nas paredes, nas janelas e nos vagões. Alguns dos trens são envelopados com reclames de refrigerantes, faculdades, chocolates, instituições de crédito e perfumes. Juntam-se a isso mais 528 monitores nos trens da linha verde, 2 256 na linha vermelha e 2 448 na linha azul.

E, ainda assim, o paulistano médio não aprendeu a fazer um bom atabaque.