O Dia da Fantasia de Gorila

Posted: 18th janeiro 2009 by Vanessa Barbara in Crônicas, Metrópole, O Estado de São Paulo
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No Dia Mundial da Fantasia de Gorila, comemorado no próximo 31 de janeiro, pessoas de todas as crenças e nacionalidades resgatam suas roupas de gorila do armário, vestem-nas com garbo e saem batendo de porta em porta, a fim de festejar esse feriado tão peculiar. À diferença das efemérides de fim de ano, não há troca de presentes, ceia com frutas secas, reencenações dramáticas, guloseimas típicas ou sentido moral de qualquer naipe. O Dia da Fantasia de Gorila não traz renovação aos homens de boa vontade, esperança ou paz interior – trata-se apenas de uma confraternização para gente vestida de gorila, ou gorilas vestidos de gente.

A data foi criada pelo cartunista Don Martin, da revista Mad, em 1964. Na tirinha, o personagem Fester Bestertester acusa o feriado de ser um embuste criado pelos fabricantes de fantasia de gorila para nos empurrar mercadoria. Na sequência, ele é repetidamente surrado por macacos que batem à sua porta – quer dizer, todos os seres que surgem para vê-lo, sejam mulheres ou bananas, abrem o zíper de cima a baixo para revelarem um gorila homicida. Até um gorila homicida pode abrir o zíper para revelar um igual.

O emprego indumentário da fantasia de gorila é considerado uma das grandes tradições ocidentais deste século, perdendo apenas para o Dia de Falar Como Um Pirata (19 de setembro) e o hábito de usar pochetes. Um dos motes da comemoração é o seguinte: “Festeje o Dia da Fantasia de Gorila – Porque você não tem nada melhor para fazer.” Trata-se de um bom argumento para divulgar a impersonalização símia. Celebridades como o cantor Robbie Williams já saíram às ruas na pele de um macaco, além do piloto de Fórmula 1 Kimi Raikkonen e o diretor do time de beisebol dos Red Sox, Theo Epstein, que a utilizou para despistar a imprensa. Até o músico Bono, vocalista do U2, foi flagrado em Nova York vestindo uma máscara de macaco, por razões insondáveis.

As massas também costumam aderir aos folguedos: nos últimos cinco anos, mais de 3 mil cidadãos já correram pelas ruas de Londres na Grande Corrida dos Gorilas, que este ano acontecerá em setembro. É um evento beneficente que une o incomparável prazer de correr numa fantasia de macaco à urgente causa de proteger os gorilas-da-montanha em extinção. Como se não bastasse, é a maior aglomeração de pessoas em fantasia de gorila do mundo.

Na internet, é possível encontrar vídeos amadores de sujeitos cortando a grama ou fazendo apresentações de negócios vestidos à caráter. Por aqui, até o momento, a Prefeitura de São Paulo não divulgou um calendário de eventos específico para a data. Tampouco o governador do Estado se pronunciou a respeito. Ainda não ficou claro se as autoridades locais pretendem boicotar a data ou se, quem sabe, irão finalmente abrir o zíper da cabeça aos pés e se juntar à festa.

Antologia pessoal

Posted: 11th janeiro 2009 by Vanessa Barbara in Clipping
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O Estado de S.Paulo
11 de Janeiro de 2009

ANTOLOGIA PESSOAL

Vanessa Barbara, jornalista e escritora
“Não gosto do hábito de se levar muito a sério” 

Nascida em São Paulo, em 1982, Vanessa Barbara é jornalista e tradutora. Além de colaborar com a revista Piauí, é colunista do Estado. Edita o almanaque virtual A Hortaliça (www.hortifruti.org), no qual se entrega aos trocadilhos tolos e fala da conduta absurda. É autora de O Livro Amarelo do Terminal e O Verão do Chibo, ficção escrita com Emilio Fraia.

Que livro você mais relê?

Histórias de Cronópios e de Famas, de Julio Cortázar, que tem um humor melancólico cheio de poesia e animaizinhos imaginários.

Dê exemplo de um livro muito bom mas injustiçado.

Todos os livros do Campos de Carvalho (A Lua Vem da Ásia, A Chuva Imóvel, O Púcaro Búlgaro e A Vaca de Nariz Sutil), que são muito estranhos, mas ninguém presta atenção. Ele já começa com: “Aos 16 anos, matei o meu professor de lógica. Invocando a legítima defesa – e qual defesa seria mais legítima? – logrei ser absolvido por cinco votos contra dois, e fui morar sob uma ponte do Sena, embora nunca tenha estado em Paris.”

Cite um livro que frustrou suas melhores expectativas.

Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez. Fora a parte em que a moça come cal da parede, não gostei muito.

E um livro surpreendente, ou seja, bom e pelo qual você não dava nada.

História Universal da Infâmia, de Jorge Luis Borges. Não é que eu não desse nada pelo livro, mas porque o escolhi por acaso (a capa era bonita) e não fazia ideia de que seria tão bom. O próprio Borges o trata como uma coletânea de exercícios literários e confessa alguns de seus vícios: as enumerações díspares, a brusca solução de continuidade, a redução da vida inteira de um homem a duas ou três cenas.

A boa literatura está cheia de cenas marcantes. Cite algumas.

Uma delas é a cena do Tristram Shandy, do Laurence Sterne (capítulo 11 do livro 3), em que, por conta da dificuldade de abrir uma sacola, um personagem esconjura o outro apenas por ter feito nós demais. É uma enorme imprecação em latim, totalmente desproporcional ao incidente: “Maldito seja no seu cérebro e no vórtice, nas têmporas, na fronte, nos ouvidos, nas sobrancelhas, nas faces, na mandíbula, nas narinas, nos dentes incisivos e molares”, que dura cinco páginas.

Que livro bom lhe fez mal, de tão perturbador?

 Hercólobus ou O Planeta Vermelho, de V.M. Rabolú. É um livro que fala sobre um cataclismo que está por vir: a colisão do planeta Hercólobus que segue em direção à Terra. Em Hercólobus, os nativos usam cinturões cheios de “botões vermelhos, azuis e amarelos que acendem e apagam como um farol. Quando se veem em perigo, apertam um botão-mãe capaz de fazer voar uma colina e desintegrá-la no céu”…

E que livro mais o fez pensar?

A Outra Volta do Parafuso, de Henry James. Me fez pensar em acender todas as luzes, ligar a televisão e esquecer aquela história, que é muito assustadora.

De qual autor você leu tudo?

Julio Cortázar e J. D. Salinger. Ambos escrevem com um ritmo diferente, sem presunção e sem ignorar o lado bizarro das coisas.

Existe algum autor com o qual você jamais perderia seu tempo?

Sim, com os espíritos que psicografam livros como Violetas na Janela e Tempo de Colher Melões, principalmente o espírito Lucius, que não tem senso de estrutura, personagem e unidade aristotélica.

Cite um livro que foi fundamental em sua formação, mesmo que hoje você não o considere tão bom como na época em que o leu.

Na adolescência, li a obra completa (80 livros) da Agatha Christie. Um dos meus preferidos era O Inimigo Secreto, que aparentemente tem os personagens mais chatos da história do crime. Outro importante para a minha formação foi Germinal, de Zola, em que eu chorei no final. Na mesma época li As Vinhas da Ira, de Steinbeck, foi uma fase muito otimista.

Os livros de autoajuda são mesmo todos ruins, ou isso é puro preconceito da crítica?

Gosto de Ser Feliz, de Will Fergunson. É sobre um editor de livros que prepara a publicação de uma obra de autoajuda perigosamente persuasiva e abrangente. O livro estoura na lista de mais vendidos e uma epidemia de felicidade se espalha pela Terra. Ser feliz é uma obra de antiautoajuda, que nos livra desta abominável ânsia por contentamento com um sarcasmo muito peculiar.

Um livro que você acha que deve ser muito bom, mas jamais leu.

A Consciência de Zeno, de Ítalo Svevo. A média de pessoas que vem me procurar para sugerir o livro é de 3,5/dia, portanto ele assumiu um lugar de honra na pilha de próximos.

Um livro difícil, mas indispensável.

Estou lendo Ulisses, de James Joyce, mas por tabela. Dois amigos estão fazendo uma leitura minuciosa e bilíngue do livro, então toda semana eu pergunto o que aconteceu com o sr. Bloom, o que ele comeu, se já escureceu e leio os trechos selecionados.

Um livro que começa muito bem e se perde no caminho.

A Bíblia. O começo é eletrizante, com histórias de poder, luxúria, paixões incandescentes, ambições desmedidas, crimes hediondos e sexo. Tem um capítulo sobre uma mulher que dá à luz um filho cujo pai é uma pomba. Aí depois perde um pouco, sabe? Aquela coisa de quatro cavaleiros do Apocalipse nunca me convenceu.

Um livro que começa mal e se encontra.

Os Irmãos Karamázov, de Dostoiévski. Não que comece mal, mas eu demorei para engrenar – quando engrenei, levei comigo para a praia, se é que é permitido levar um Dostoiévski para a praia.

Um livro pior do que o filme baseado nele.

Tubarão, de Peter Benchley, dirigido pelo Spielberg. Dizem que os livros B dão ótimos filmes, como Blade Runner.

Que livros que contrariam suas convicções, mas são imprescindíveis?

Dom Quixote, de Cervantes, e Cândido, de Voltaire, contrariam minhas profundas convicções de que não se deve contar a história inteira no subtítulo dos capítulos, por exemplo: “Das admiráveis coisas que o extremado Dom Quixote contou que vira na profunda cova de Montesinos, coisas que, pela impossibilidade e grandeza, fazem que se considere apócrifa esta aventura”, ou “O que sucedeu aos dois viajantes em relação a duas moças, dois macacos, e aos selvagens chamados orelhões”.

Cite exemplos de livros assassinados pela tradução e exemplos de boas traduções.

Eu até gosto das más traduções, às vezes dão outro sabor ao livro. Cresci lendo livros antigos que não respeitavam a reforma gramatical de 1971 e usavam acento diferencial (A Menina do Capuchinho Vermêlho), e outros tinham traduções tão ruins que o livro se tornava pitoresco. Meus preferidos de hoje são o Sergio Flaksman e o Paulo Henriques Britto.

Que livros sempre presentes nos cânones que não mereceriam seu voto? E ausentes nos quais votaria?

Não gosto de Clarice Lispector nem de Rubem Fonseca. Os cronistas são muito injustiçados – acho clássicas algumas crônicas de Rubem Braga, Drummond, Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos, Luis Fernando Verissimo.

De que livro demolido por críticos você gostou?

O Senhor dos Anéis, de J.R.R. Tolkien. Não é exatamente um livro demolido pela crítica, mas não é bem visto por muita gente.

Cite um vício literário que você considera abominável.

Não gosto da presunção, do hábito de se levar muito a sério. “Quem nos resgatará da seriedade?”, pergunta Julio Cortázar num artigo de A Volta ao Dia em 80 Mundos. O artigo fala desse vício de escritores: assumir a solenidade de quem habita no Louvre tão logo se põe a escrever, com uma ruga de amarga experiência humana, endurecendo o pescoço e subindo ao ponto mais alto do guarda-roupa.

O bar do Firmo

Posted: 4th janeiro 2009 by Vanessa Barbara in Crônicas, Metrópole, O Estado de São Paulo
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Firmo de Faria, 83 anos, dono de um lendário bar no Mandaqui (à Rua Ires Leonor, 181), é um senhor de movimentos lentos e olhar de quem já viu de tudo. Há quase 60 anos, todos os dias, ele está atrás do balcão servindo bebidas, cigarros, pãezinhos, balas e até canetas. O bar é um pouco escuro, mas acolhedor, e existe no bairro desde março de 1950 – até antes do restaurante nordestino O Mocofava, na mesma rua desde 1976. Alguns o tratam de “seu Firmo”, outros só usam “seu Faria” (há polêmicas), mas o fato é que todos o conhecem e passam acenando. Seu Firmo às vezes parece triste, outras vezes se engaja numa conversa inflamada sobre algum acontecimento local. Tem dias que usa boina, tem dias que fica apenas sentado no balcão, cansado de olhar o relógio.

O Bar do Firmo fica em frente ao ponto de ônibus, um poste verde sem toldos e nem bancos para sentar. O proprietário disponibiliza cadeiras de plástico aos que esperam o coletivo e sempre acena para todo mundo, dizendo: “Vais passear, menina?”, mesmo que seja segunda de manhã e esteja chovendo. Há um japonês que toma cerveja ali todos os dias desde o Descobrimento, e um sujeito muito simpático de bochechas grandes. Eles caminham em ziguezague de volta para casa quando o seu Firmo fecha seu estabelecimento, antes de escurecer, e há quem diga que demoram para conseguir enfiar a chave no buraco da fechadura.

As mulheres têm um carinho especial pelo dono do bar, que nunca deixa de cumprimentá-las com um respeitoso: “Oi, linda”, quando uma delas passa por seu campo de visão. Elas se sentem lisonjeadas e jogam o cabelo de forma ousada em resposta ao galanteio. Mas não deviam se empolgar tanto – fontes fidedignas já viram passar, do outro lado da rua, uma senhora de aproximadamente 90 anos que foi recebida com um “Oi, linda”.

Seu Firmo já viu muito agarra-agarra e atropelamento no ponto de ônibus; já viu uma Kombi matar uma senhora e muitas outras coisas tristes. No fim da tarde, ele olha para o céu em busca de sinais meteorológicos, embora more ao lado do bar. Lembra do tempo em que havia cavalos soltos na rua e pouquíssimas casas construídas. Lembra também da época em que vendia muito pãozinho de manhã – agora os pães se amontoam nas estantes, entre garrafas de pinga e baleiros, e nenhum comprador faz fila.

Ultimamente, seu Firmo está sendo ameaçado pela presença de outro bar bem ao lado, construído na garagem de uma casa. O boteco tem uma televisão e uma mesa de sinuca, fecha às 11 da noite e toca forró aos sábados e domingos. Os donos do imóvel são seus próprios compadres que o conhecem há 60 anos. Ele fica chateado, mas se recusa a desistir: “Estou com essa idade, não posso ficar em casa parado”, diz, e torna a abrir o bar todas as manhãs.

Em tempo: esta semana, o Firmo disse que vai esfriar.

Melhores livros de 2008

Posted: 1st janeiro 2009 by Vanessa Barbara in Clipping
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Zero Hora/RS
Janeiro de 2009

Estrangeiros | Nacionais

Botas de Papai Noel em tricô

Posted: 25th dezembro 2008 by Vanessa Barbara in esquinas, Reportagens, Revista piauí
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Dezembro de 2008

por Vanessa Barbara

Uma esquina sonífera

Duas semanas após o Grande Prêmio de Interlagos, é dada a largada: “Vamos começar: são treze pontos na agulha com a cor preta”, e treze senhorinhas passam a tricotar freneticamente. Não se trata de nenhuma competição, mas do curso “Botas de Papai Noel em tricô: como lavar e passar”, ministrado por Maria Julia Rivelli no espaço Viver Casa & Gourmet, na Vila Mariana, em São Paulo.

De acordo com a descrição do site, o recinto é um “lugar capaz de receber públicos variados de forma dinâmica e harmoniosa”. Localizado próximo à estação Paraíso do metrô, o Viver Casa & Gourmet promove cursos e palestras gratuitas sobre saúde, beleza, casamento e prendas domésticas, como o “Noite mágica: harmonize ainda mais a noite de Natal com ajuda da numerologia”. Outros workshops estão voltados à gastronomia, entre eles, “Maravilhas com alcachofras”, “Bombas e carolinas” e “Finger food: gostosuras de verão”. A grande maioria do público é composta de donas-de-casa de meia-idade com tempo livre à tarde. Numa terça-feira de novembro, elas compareceram ao local para tricotar as botinhas que, prontas, seriam penduradas junto à lareira ou à arvore de Natal.

As alunas, quase todas de cabelo curto e óculos bifocais, formavam uma confraria que falava baixinho. Elas enrolaram as linhas em torno do pescoço e começaram a contar laçadas e meias, seguindo a receita da professora para confeccionar pequenas botas natalinas. A mais rápida era Acácia Mayeji, descendente de japoneses, que terminou sua botinha antes do cronômetro marcar uma hora de aula. O sapato, que serve para armazenar balinhas, foi feito de linha sintética preta de algodão e acrílico, com uma bainha de linha vermelha esfiapada, “bem natalina”, segundo a professora.

No total, a sessão de tricô se arrastou por uma hora e meia. A terminologia parecia complexa: “O primeiro é em meia, daí tem um aumento e mais cinco pontos em meia”, orientava a professora. Após desistirem de acompanhar as mais velozes, as novatas passaram a conversar sobre lavagem de roupas e decoração de mesas para o Natal, manifestando o interesse de participar do curso de arranjos florais. “Se quiserem terminar e fazer o cano mais curto, aí vai da criatividade de vocês”, avisou a professora, já na reta final. “Quem tem ponto mais largo pode escolher outra agulha de número menor, pois essa é a seis”, sugeriu.

Segundo a pacienciosa docente, o tricô só requer dois tipos de pontos: o meia e o tricô. Com a dupla, é possível fazer todas as variações de desenhos, com aumentos, diminuições e laçadas. Pairando no Olimpo dos velozes, Acácia Mayeji não precisava dessas lições, já que é exímia no tricô “desde menina”. Ela manejava a agulha com tanta habilidade que quase não dava para acompanhar.

***

Depois de hora e meia de tricô intenso, três alunas terminaram seus sapatinhos, explicando que eles seriam posteriormente costurados nas laterais, para virarem botinhas tridimensionais, e não apenas retalhos disformes de tricô. De lavar e passar, o curso não teve nada. Animadas, algumas senhoras manifestaram autêntico interesse pela próxima aula, que versaria sobre pães. “Se for com o Caputo, será divina”, afirmaram, a respeito do homem que, aparentemente, conhece tudo sobre broas. Certas senhorinhas suspiraram. Outras continuaram fazendo tricô como se não houvesse amanhã.

O alfabeto das ruas

Posted: 21st dezembro 2008 by Vanessa Barbara in Crônicas, Metrópole, O Estado de São Paulo
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Na Rua Almofada, em Perus, foi encontrado um laboratório de refino de cocaína em 2007. Na Rua Alpercata, no Jardim Robru, há uma loja de conserto de máquinas de costura. Na Rua das Antas, em Sapopemba, há uma moça chamada Marisa que quer ser secretária. Na Rua Antípodas, no Jardim Boulougne, há uma empresa que fornece serviço de brigadistas e cursos de bombeiros. Há cultos todos os domingos às 19 horas na Igreja do Arrebatamento da Rua Antíoco, no Imirim. Há uma casa de 140 metros quadrados para vender na Avenida Apólogos Orientais, no Jardim Marciano, por R$ 60 mil. O imóvel tem dois quartos, sala, cozinha, banheiro, lavanderia, varanda e garagem coberta para dois automóveis. Na Rua Apreciando a Cidade, em Cidade Tiradentes, há uma mercearia de nome “Serve Sempre”. A Rua Aves ao Vento, no Capão Redondo, se inspirou no filme de Yasujiro Ozu de 1948, Kaze no Naka no Mendori. Há três ruas Avestruz na Grande São Paulo: uma em Osasco, outra em Vila Rica (Brasilândia) e a terceira no Recanto do Paraíso (Perus). Reparem: há uma Rua Avestruz em Perus.

É dos vereadores e prefeitos a competência de dar nomes a vias e logradouros públicos. Os moradores só podem solicitar as alterações quando se tratar de denominações homônimas ou, não sendo homônimas, similares na ortografia, fonética ou fator de outra natureza, gerando ambigüidade de identificação. Também podem pedir a mudança de denominações consideradas ridículas, desde que dois terços dos domiciliados concordem.

Nos últimos anos, cerca de 35% dos projetos na Câmara foram destinados a alterar nomes de vias da cidade. Assim é que se mudou o nome de locais consagrados, como a ponte Cidade Jardim (atual Engenheiro Roberto Rossi Zuccolo), o Túnel 9 de Julho (que já se chamou Daher Elias Cutait), a Avenida Águas Espraiadas (atual Jornalista Roberto Marinho) e o Viaduto Aricanduva (atual Engenheiro Alberto Badra). De 1927 a 1930, a Avenida Paulista levou o nome de Avenida Carlos de Campos, ex-governador do Estado, mas o povo não aprovou a medida e a denominação voltou ao normal.

Há nomes de ruas para todos os gostos, do começo ao fim do alfabeto – existe um morador de sobrenome Maluf na Rua Zabelê, no Parque Paulistano, e uma loja de decorações chamada Rique na Rua Zavuvus, na Vila Missionária (Cidade Ademar). Na Rua Zike Tuma, no Jardim Ubirajara, há um apartamento à venda “sem problema de gente passando na janela”. Na Grande São Paulo, há duas Ruas Zíngaras e uma Rua Zircão, onde se pode visitar uma empresa desentupidora chamada A Poderosa. Ainda não se sabe o motivo do nome da Rua Zo Wada, em Vila Friburgo. E, por último: há um sujeito de sobrenome Zizza que mora na Rua Zuzarte Lopes, na Vila Nívi, via que leva o nome de um sertanista que morreu devendo trinta patacas pro primo Bartolomeu em 1635.

Um outro olhar de mundo

Posted: 16th dezembro 2008 by Vanessa Barbara in Clipping
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Observatório da Imprensa
16 de dezembro de 2008 – ed. 516

Por Rodolfo Viana

Nenhuma categoria da lista da Associação Paulista de Críticos de Artes (APCA) me chama mais a atenção do que a de literatura. Todo ano, aguardo com devoção especial os resultados de melhor obra de biografia e melhor reportagem. Justifica essa minha espera – ou seria vigília? – o momento raro: quando a relação dos melhores do ano é divulgada na imprensa, é ali, naquele instante, que o ofício mundano do jornalismo se mescla com o quê mais etéreo das artes. Sim, jornalismo pode ser arte. Pergunte a Hersey.

“A noite estava quente e o calor parecia ainda mais intenso por causa dos incêndios, porém uma das meninas que os religiosos resgataram se queixou de frio. O padre Kleinsorge a cobriu com sua túnica. Com várias partes do corpo em carne-viva, conseqüência de enormes queimaduras produzidas pela radiação térmica da explosão – a menina ficara horas dentro do rio, com sua irmã mais velha e a água salgada do Kyo seguramente lhe causara uma dor excruciante. Ela se pôs a tremer e novamente se queixou de frio. O padre Kleinsorge pediu um cobertor emprestado e a agasalhou, porém ela tiritava cada vez mais. `Estou com muito frio´, disse. De repente parou de tremer e morreu.”

Gênero continua atraindo atenção

Hiroshima, de John Hersey, tomou toda a edição de 31 de agosto de 1946 da New Yorker, fato inédito até hoje. Não por acaso, o texto da devastação da bomba atômica que culminou no fim da Segunda Guerra Mundial foi eleito o mais importante relato do século 20 pela Universidade Columbia e ficou em primeiro lugar na lista das cem maiores reportagens da Universidade de Nova York. Um dos motivos é a forma como Hersey conduz sua escrita que, à primeira vista, pode soar a literatura, mas nada tem de ficção; é jornalismo.

Da mesma fonte de Hersey, beberam alguns dos nossos mais célebres jornalistas, tais como José Silveira, Rubem Braga, Antonio Callado e José Hamilton Ribeiro. À parte produções pontuais, a revista Realidade e o Jornal da Tarde são obeliscos do gênero. Durante a década de 1960, suas publicações traziam reportagens de fôlego numa escrita fluida, o que ajudou a moldar a cara do Brasil na iminência dos anos de chumbo. A prática de jornalismo literário na redação do JT feneceu na década de 1990, enquanto a Realidade jaz na memória nostálgica de quem tem mais de cinqüenta anos e que lamenta não terem surgidos, nos últimos anos, textos similares aos da extinta publicação da Editora Abril.

Seis décadas depois da publicação de Hiroshima e quatro após o fim da Realidade, o gênero literário continua atraindo as atenções e fazendo adeptos na imprensa. Seja para tratar de um mendigo que nunca pediu coisa alguma ou um terminal rodoviário em São Paulo, profissionais fazem uso da literatura de não-ficção para contar belas histórias reais, e transformam uma simples notícia em arte.

“Textos duram décadas”

De fato, o jornalismo literário feito no Brasil perdura, não morreu com a Realidade e o JT. Quando a RBS adquiriu o Zero Hora na década de 1970, havia forte concorrência do centenário Correio do Povo. Para encarar o mercado, o diário passou por um processo de consolidação e de melhoria editorial e gráfica e o jornalismo narrativo surgiu como diferencial. “Foi então que se criou a tradição de grandes reportagens na redação”, explica Marcelo Rech, ex-editor do jornal e atual diretor-geral de produto da RBS.

Zero Hora reserva até 1/6 de seu espaço aos textos jornalísticos literários. Algumas de suas pautas levam um ano para ficarem prontas, o que é incomum nas publicações diárias. Apesar de árduo, o trabalho é necessário devido às inovações. Para Marcelo, num mundo em que há rádio e web, o jornal que leva ao leitor notícias simples está fadado a sucumbir.

Neste século, a primeira empreitada comercial do jornalismo literário veio em formato de livro-reportagem. A Companhia das Letras endossou a idéia do jornalista Matinas Suzuki Jr. e passou a lançar periodicamente clássicos do gênero. O primeiro deles foi Hiroshima, em 2001. Até o momento, são 17 obras, das quais três são de escritores brasileiros – Joel Silveira, com A feijoada que derrubou o governo e A milésima segunda noite da avenida Paulista, e Zuenir Ventura, com Chico Mendes: crime e castigo. Até 2009, a intenção da Companhia das Letras e de Matinas é publicar mais um brasileiro e chegar ao vigésimo título.

“Alguns dos textos têm mais de 60 anos. Foram publicados para serem lidos no dia, na semana ou no mês, e já duram mais de seis décadas”, ressalta Matinas, que não acredita que o gênero seja uma mera “modinha”.

“Ver de outra forma”

A vocação pela narrativa jornalística não requer o rótulo literário. Foi o que aconteceu na década de 1990, quando houve reformas curriculares nas universidades. “A inserção da possibilidade de o aluno de Comunicação fazer um livro-reportagem como trabalho de conclusão de curso expandiu o gênero. Não se falava em JL na época, mas o livro-reportagem ficou associado ao jornalismo literário. Isso gerou trabalhos rasos, mas o excesso gera coisas legais”, comenta Sérgio Vilas Boas, jornalista e coordenador da Academia Brasileira de Jornalismo Literário.

Um dos exemplos mais atuais do que a reestruturação acadêmica proporcionou saiu das mãos de Vanessa Barbara, que se utilizou da arte literária para escrever O livro amarelo do terminal, um retrato preciso e irreverente do Terminal Rodoviário do Tietê, em São Paulo. O que era um trabalho de conclusão de curso tornou-se título publicado pela CosacNaify em 2008 e reverenciado pela APCA no mesmo ano. Desde a época de faculdade, a jovem jornalista busca “ver as coisas de outras formas”. Influenciada por Gay Talese, Joseph Mitchell, Truman Capote e Lilian Ross, a repórter da revista piauí e colunista do Estado de S. Paulo confessa que não seria capaz de “ligar para uma assessoria de imprensa pedindo dados sobre a movimentação de veículos nas estradas”.

Auto-indulgência dos editores

O recente interesse do gênero literário na imprensa não se deve apenas à superficialidade das notícias e reportagens, mas também ao advento da recepção em massa de material jornalístico na rede mundial de computadores. Claudio Tognolli aponta a tendência da dispersão de informações sem estrutura, por repetição, tal qual um eco. “As redações esperam colaborações de fotos e textos emanados de leitores que, por sua vez, programam as páginas da internet, via RSS, e editam de casa o que querem ler. Essa linguagem do jornalismo é resumida, ‘ecolálica’.”

A propagação de informações em larga escala pela rede mundial, no entanto, pode ser um motivo para alavancar o jornalismo narrativo na mídia impressa, uma vez que este gênero seria o diferencial do conteúdo encontrado na internet. “O jornalismo literário, o gonzo e outras variantes seriam uma grande oferta para quem está cansado de abrir os jornais e ver que não tem nada diferente do que se leu um dia antes”, diz o cronista Xico Sá, que percebe a necessidade em se contarem boas histórias, “independentemente do rótulo”.

Xico, porém, relaciona a cisma que persiste nos grandes veículos de comunicação em não aceitar uma narrativa que fuja aos padrões da empresa. “É um preconceito antigo. Lembro quando ouvia nas redações aquela sentença, sempre seguida de uma risada, ‘Lá vem o poeta’. A maioria dos cargos de comando dos jornais está nas mãos de burocráticos que insistem na política da chatice mesmo.” Tognolli concorda que “infelizmente, o jornalismo literário no Brasil só ocorre em acessos de auto-indulgência por parte dos editores”.

Rótulo entra como “charminho”

Neste cenário, é comum cair no erro de crer que o jornalismo literário é melhor do que o convencional. Ledo engano. Matinas aponta que ambos podem coexistir em harmonia: “O noticiário do dia-a-dia precisa de uma linguagem simples, direta, com lead e pirâmide invertida; o jornalismo literário tem outras necessidades.” Mesmo nas redações hard news, “não é impossível ser um pouco mais criativo, dar todas as informações essenciais e, ao mesmo tempo, ter um texto mais bem escrito”.

Eliane Brum, que já passou pela redação do Zero Hora e desde 2000 é repórter especial da revista Época, ganhou o Prêmio Jabuti 2007 na categoria livro-reportagem com A vida que ninguém vê, uma coletânea de escritos produzidos para a edição de sábado do periódico gaúcho. “Sempre busco fazer um texto que o leitor possa ler com o prazer de uma ficção. Isso só é possível com uma apuração tão completa, tão detalhada, que permita ao leitor ser transportado para a realidade que nós, repórteres, tivemos o privilégio de testemunhar. Então, ele pode fazer suas próprias escolhas, ter suas próprias opiniões. Algumas pessoas identificam essas características com o jornalismo literário; para mim, isso é bom jornalismo.”

A busca por gêneros tem a pretensão de elevar o valor do texto, como se o termo “literário” atribuísse ao escrito a perenidade que a ficção detém. “A verdade é que fica forçada a tentativa de muita gente de transformar bons textos jornalísticos em obras-primas literárias”, aponta o crítico e jornalista Adriano Schwartz. Lançar mão de beletrismos em material noticioso é reservar uma suposta nobreza a uma atividade prática e concreta. “A grandeza do jornalismo literário está em ele ser `grande jornalisticamente´. Eu não acredito muito nessa mistura: o rótulo parece entrar como um `charminho´, um símbolo de status.”

Público não quer ser ignorado

Sua opinião baseia-se nas definições essenciais de cada campo: a literatura tem como elemento primordial o trabalho com a linguagem, enquanto sua relação com os fatos é ocasional. “O jornalismo, por outro lado, busca sempre uma representação de alguma fatia da realidade. Nessa construção, ele pode, eventualmente, atingir um nível de trabalho com a linguagem tal que termina por passar uma impressão de texto literário.”

Mas afinal, pode-se considerar uma determinada reportagem literatura? Marçal Aquino, escritor e jornalista, acredita que sim, “na medida em que existe a preocupação declarada de produzir algo além da mera informação, algo com estilo”. Ele lembra a experiência do Jornal da Tarde que, “ao menos até a década de 90, mostrou que é possível dar as notícias com estilo, e que é legítimo um texto jornalístico aspirar à literatura”.

Estilo é bem-vindo em peças jornalísticas. Antes de ser literário, porém, é um produto informativo e deve manter este seu caráter. Isso significa que “a pior coisa é pretender ser muito elevado, é querer escrever bonito e sacrificar a reportagem em benefício de um texto cheio de mesóclises”. Vanessa Barbara aposta na parcimônia e ressalta a necessidade de “saber equilibrar e apresentar simplesmente os fatos para escrever um texto bom, ao contrário do que se pensa”.

Um bom texto. Nossa imprensa está repleta de números apenas, e carece de boas histórias. Podem pretender uma elevação artística. “Jornais e revistas desprezaram por muito tempo os leitores que gostam de um bom texto simplesmente pelo prazer de lê-los e eu acho que este público não quer mais ser ignorado”, percebe Matinas. Aos poucos, a mídia também vai percebendo: jornalismo pode ser arte.

O jardineiro fiel

Posted: 7th dezembro 2008 by Vanessa Barbara in Crônicas, Metrópole, O Estado de São Paulo
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Há oito anos, o mineiro Pedro Marcelino Filho, de 73 anos, é jardineiro-chefe de quatro áreas públicas na Praça Joaquim Lopes, no Lauzane, zona norte de São Paulo. Ele não recebe nada da Prefeitura para cultivar lírios, íris, magnólias, primaveras e jacarandás num terreno em declive que antes vivia cheio de entulho.

É aposentado há 25 anos (“quase tenho o direito de me aposentar de novo”, diz) e vem nas horas vagas cuidar do jardim, que tem robustas cercas de madeira e demanda muito trabalho braçal. Seu Pedro, que veste uma camisa listrada parcialmente desabotoada, além de um sapato modesto, trabalhava com terraplenagem e chegou a passar um ano e meio na Subprefeitura da Sé. Preferiu sair de lá porque as coisas não funcionavam, e se engajou em trabalhos em campos de aviação no Paraguai e barragens no Pará. Hoje faz carretos em seu caminhão. “Ainda sou um aprendiz”, declara, enquanto corta umas pragas amarelas dos arbustos. “Isso aqui é chamado de macarrãozinho, os pássaros trazem e acaba com as plantas.”

Pedro adquire as mudas num canteiro de jardinagem da Prefeitura que fica na Rua Doutor Zuquim, em Santana. Mostra um jequitibá, que veio dentro de um carro numa caçamba de 20 litros. “Quando cresce, precisa de dez pessoas pra dar um abraço.” Na vida desse senhor, natural de Pitangui, Minas Gerais, cuidar dos jardins é um divertimento. Mas ele observa que, se tivesse apoio, as coisas seriam muito mais fáceis. “Agora, por exemplo, é hora do adubo, aí se eu tivesse um pouco, armazenava e ia aplicando.”

Na Praça Ultramarino, bem ao lado do território de Pedro, o pessoal do ponto de táxi e das Kombis de carreto, como o Luis, o Marcos e o Toninho, expressa o mesmo pensamento. “Quem manda aqui é nóis”, diz Antonio da Silva Braga, freqüentador dos campeonatos de dominó da praça. “Da Prefeitura aqui não tem nada, a gente é que cuida de tudo.” De vez em quando, convocam reforços: “Na época da seca, quem doou água foi o Material de Construção Miúcha, além da dona da lojinha de 1,99, o cidadão que mora em frente da praça e o seu Dito, vizinho de um dos jardins.” Ele conta: “Se a gente não cuidar do cantinho onde mora…” Mas não termina a frase.

Enquanto Pedro continua podando os pingos-de-ouro, Antonio aproveita para mostrar uma área construída por eles numa esquina da praça: o “Cantinho do Truco”, onde há uma mesa, uma vassoura e um pôster do filme Ultravioleta, além da inscrição: “O que vale é a amizade. Sejam todos bem-vindos”, pintada na parede.

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Em tempo: a misteriosa Praça Tito, mencionada na primeira coluna, foi construída em homenagem a Trípoli Amelio Bernardini, avô da leitora Cristina Bernardini. Cristina aproveita para avisar que está se mudando para o Mandaqui, numa casa ao lado da do Cebola, e pede encarecidamente que não estraguem a mobília.

Resenha no site da ABJL

Posted: 5th dezembro 2008 by Vanessa Barbara in Clipping
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Site da ABJL – Academia Brasileira de Jornalismo Literário
05 de dezembro de 2008

“O Livro Amarelo do Terminal”,
de Vanessa Bárbara.
CosacNaify, 253 págs., 2008

por Edvaldo Pereira Lima

Este “livro-reportagem em crise de identidade”, como define com muito bom humor a própria autora, marca a estréia, no formato livro, de um talento genuinamente promissor em Jornalismo Literário. Produzido inicialmente como um TCC – Trabalho de Conclusão de Curso – de graduação em jornalismo, na Faculdade de Comunicação Cásper Líbero, em São Paulo, chega ao público numa combinação de criatividade ousada entre o texto da escritora e o projeto gráfico da editora, assinado por Elaine Ramos e Maria Carolina Sampaio.

A CosacNaify, editora especializada na produção de livros de arte, decide abrir uma linha de narrativas da vida real, estreando com duas obras, exatamente este livro aqui comentado e “O Santo Sujo: A Vida de Jaime Ovalle”, de Humberto Werneck, já contemplado nesta seção. No caso do livro de Vanessa, inova no design com uma capa que é uma colagem de bilhetes de passagem, formulários e outros documentos, prossegue com páginas de fundo amarelo e letras negras ou de fundo branco com letras azuis, navega por outros artifícios, visando sempre a criação de um estilo casado com o texto, ambos buscando refletir o modo particularmente singular com que a autora desenha o seu retrato do maior terminal rodoviário do Brasil, o do Tietê, na capital paulista.

A voz autoral de Vanessa reflete sua juventude – portanto seu olhar sem vício -, assim como seu modo desencanado de enfrentar os obstáculos quando decide mergulhar no mundo complexo do terminal, onde realidades transparentes convivem com verdades nem tanto. Ao procurar obter clareza sobre os contratos de concessão, delicia o leitor com a reprodução de uma série de telefonemas em que vai sendo empurrada de um funcionário a outro, de um setor a outro mais, numa espécie de epopéia pelo mundo da burocracia escamoteadora da divulgação pública obrigatória definida por lei.

A matéria não é investigativa no sentido clássico do termo. É Jornalismo Literário jovem, digamos assim, com algumas marcas fundamentais da modalidade – imersão, como já notamos, humanização, estilo próprio, criatividade – e uma alquimia de técnicas avançadas – como o terceiro ponto de vista autobiográfico – com um jeito maroto de contar histórias. Como neste trecho:

“Alguém deve ter caluniado Vanessa B., pois um dia ela conversava com as funcionárias do balcão de informações quando apareceu um supervisor. O moço, com walkie-talkie na mão e uniforme da Socicam, perguntou quem era V., o que fazia ali e se tinha autorização de alguma instância importante para existir justamente naquele local. Antecipadamente grata por essa especial deferência, V. rememorou as poucas pessoas célebres que conhecia, mas acabou desistindo. Ela tinha obtido autorização de alguém de bigodes, que, certo dia, assinou um ofício protocolado da faculdade e carimbou-o com o selo papal, mas não podia provar nada, não senhor”.

É desejável que, pelo bem da renovação do JL no Brasil e pela entrada de novas gerações neste universo, a Vanessa se entusiasme com o resultado de sua incursão. Que traga a público, no futuro, outras escavações arqueológicas bem-humoradas em tantos outros terminais por aí que merecem ser retratados com vigor e firmeza, mas sem a neura negativista cética de tanta gente que perdeu o sabor de viver.

LITERATURA

O começo do livro é engraçado, cheio de brincadeiras do tipo perco-o-leitor-mas-não-perco-a-piada

Le Monde Diplomatique
23 de novembro de 2008

por Fábio Fernandes

Confesso: o que me atraiu primeiro em O Livro Amarelo do Terminal (Editora Cosac Naify), de Vanessa Bárbara, foi a capa. Fascinado por livros alterados e capas com ênfase em tipografia, foi impossível para mim não parar diante do livro de capa amarelo-canário recoberta por figuras e fac-símiles de passagens antigas e recortes de jornal. Ao folhear o livro, mais uma surpresa agradável: páginas amarelas também, alternando texto original com mais recortes de revistas e outras brincadeiras tipográficas.

Ora, bibliófilo que se preza julga o livro pela capa sim, claro (o velho ditado é, parafraseando Mark Twain, um pouco exagerado), mas não deixa de prestar atenção ao conteúdo. E foi o que fiz. Não me arrependi: O Livro Amarelo do Terminal é uma lição. Não só de jornalismo (o livro é a monografia de conclusão de curso de Jornalismo da autora), mas também de vida. Vanessa Bárbara passou dias (ou semanas, ou meses, isso não fica claro e também não importa muito), em 2003, no Terminal Rodoviário do Tietê, em São Paulo, não só para conhecer melhor o funcionamento da rodoviária, como também para registrar o dia-a-dia das pessoas que passam por ali e das que trabalham no terminal.

Essa atitude meio flâneur, meio psicóloga, meio jornalista (três meios? A matemática nessas horas vira transfinita, ou vira multidões, como dizia Walt Whitman) é interessantíssima. Vanessa Bárbara dá uma de Georges Perec, o genial escritor francês do grupo OuLiPo, que gostava de fazer experimentos desse tipo: consta que um de seus projetos, nunca executado, consistia em ficar sentado num banco de praça, em Paris, por um período não inferior a uma semana, para ver as pessoas que passavam e, munido de um gravador, registrar os fragmentos de diálogos que entrassem no raio de ação do aparelho. Perec, que levava as regras matemático-Dada que criava muito a sério, acabou não fazendo isso, mas Vanessa não se levou tanto a sério (no bom sentido), e foi devagar com o andor. E nos mostrou os santos de barro (e no entanto tão verdadeiros) que habitam o terminal.

Todos nós temos histórias para contar

O começo do livro é engraçado, cheio de brincadeiras do tipo perco-o-leitor-mas-não-perco-a-piada. Pode ter perdido um leitor que se leve mais a sério, mas quem teve o desprendimento de continuar (e creio que a maioria esmagadora dos leitores fizeram isso, porque o livro é bem gostoso de ler, quando você vê já está no meio do livro) encontrou, como nas tiras do Calvin, por exemplo, momentos inesperadamente comoventes. Como a descrição alucinada e fictícia que ela faz de “Álvaro”, o locutor do terminal. Ou a breve história da Dona Rosa, uma velhinha que acredita que a Marinha Britânica vai aparecer lá na rodoviária para buscá-la (para quê, jamais se soube). Ou o otimismo do jovem Kenedy, dono de um armarinho no interior de Minas e que uma vez por mês vai a São Paulo fazer compras na 25 de Março.

O Livro Amarelo do Terminal nos faz rir, chorar e às vezes até ficar indignados (como, por exemplo, nas partes em que descreve a convoluta e kafkiana burocracia do terminal, ou na única parte do livro que possui páginas de cor branca, que reproduz matérias de jornal sobre todo o processo de construção e de reforma da rodoviária). As histórias de Rosângela, de Raimunda, de Augusta e de Marcos, entre tantos outros, dariam cada uma um livro, e dos bons. Porque todos nós temos histórias para contar, como já disse Dario Fo. Todos nós.