Sobre humanos

Posted: 10th agosto 2008 by Vanessa Barbara in Clipping
Tags: ,

Gazeta do Povo/Paraná
10 de Agosto de 2008

por Sandra M. Stroparo


Divulgação / Vanessa Barbara: cem mil cafezinhos vendidos no Tietê
Vanessa Barbara: cem mil cafezinhos vendidos no Tietê
LITERATURA

A jornalista Vanessa Barbara escreve sobre as histórias que passam pela rodoviária do Tietê em O Livro Amarelo do Terminal, título da Cosac Naify com design inusitado

O projeto gráfico é bem diferente. Esquisito, talvez. Não parece que a gente vai encarar um livro, mas um manual, uma brochura de segundas vias de documentos com uma cara meio antiga, papel carbono, mimeógrafo. Ou bilhetes de passagens de ônibus – via do passageiro. Mas é um livro. E amarelo, como diz o título, a capa e a cor do papel das páginas. Sobre a grande rodoviária do Tietê, em São Paulo.

A voz narrativa não se apresenta, de início, só vai descrevendo, aos poucos, aquele mundo, aquela cidade de coisas perdidas. Não espere um romance nem um livro técnico, informativo, ou análise sociológica, antropológica. Podemos, contudo, reconhecer um pouco de tudo isso, no melhor estilo jornalístico contemporâneo.

A autora, Vanessa Barbara, hoje redatora da piauí (assim mesmo, sem maiúsculas), entre outras coisas, apresentou esse texto como trabalho final de graduação, orientado por Marcelo Coelho, no curso de Jornalismo que fazia. Isso foi em 2003. Cinco anos depois o trabalho sai em livro, com algumas adaptações e um epílogo que inclui uma volta rápida ao local da pesquisa e a descrição de algumas das mudanças que esses cinco anos acarretaram. Até um gostinho nostálgico sobra nesse “capítulo terminal”.

Sobre o terminal do Tietê como assunto para pesquisa acredito que todos nós podemos levantar várias hipóteses, vários temas a serem encaminhados em levantamentos documentais e algumas entrevistas. Num lugar como aquele, que resume o Brasil porque ele inteiro passa por ali, não há de faltar assunto. O que O Livro Amarelo do Terminal consegue é realmente falar um pouco de tudo, mas especialmente de gente. Quem vai e quem vem, quem fica o dia todo por lá, quem trabalha lá todo dia. Para que as dimensões daquilo que foi chamado de cidade sejam compreendidas, um capítulo sobre a história da construção do terminal e muitas inserções de números e estatísticas relacionadas ao movimento da rodoviária e os resultados de consumo que esse movimento implica. Como os cem mil cafezinhos vendidos e mil quilômetros de papel higiênico por mês. Ou os trezentos quilos de chiclete grudados no chão. Isso é divertido, mas gente é mais.

E como é que se fala disso, de gente? Bom, podemos dizer que literatura faz isso e aí temos que reconhecer que esse trabalho da Vanessa, apesar de ter garantido um diploma em jornalismo, é meio que uma fraude. Porque, nesse sentido, o livro é de literatura, porque fala de gente e dá conta, ao acumular histórias de gente, muitas, sobrepondo umas às outras de maneira inteligente, interessante e divertida, sem pieguice ou frieza profissional, acadêmica, dá conta de mostrar muito dessa gente, dramas e alegrias, esse material da vida de todo mundo. Não…, mesmo que você jamais tenha ido ao terminal, que Congonhas e Cumbica sejam os seus postos de saída e chegada em São Paulo, pode apostar que dá para se reconhecer por lá, pelo livro, em algum ou em todos os momentos.

O livro tem papéis diferentes em gramaturas aparentemente diferentes (será só impressão minha por causa da variação de cores?) e uma infinidade de fontes em formas e tamanhos diferentes, muitas acrescentadas ao texto como uma colagem de recortes de manchetes, panfletos, tabelas de preços, manuais dos sistemas de informação e segurança, publicidade, e só a narrativa mestra é que ganha uma certa uniformidade, mesma fonte, mesmo tamanho, ocupando o espaço todo da página, linhas e parágrafos completos.

E aqui vamos chegando à própria narrativa. Esses recursos gráficos fazem com a “cara” do livro o que o texto procura fazer para dar conta da multiplicidade imensa com que precisa lidar. A narrativa, sem perder o fio, acompanha os assuntos de que trata, deixa-se invadir por diálogos inteiros, frases soltas, por trechos de letra de música, mas também assume o comando e se transforma. Como quando o texto, falando de um futebol rápido jogado por crianças em uma plataforma, assume por algumas linhas a narrativa de um jogo de futebol, com vocabulário e vícios sintáticos. O leitor entra no clima, entende, o texto muda e segue adiante. Tem muita coisa para se ver no terminal. Como aqueles homens se abraçando, e sorrindo tanto que a voz narrativa não se contém e cita o escritor Lewis Carroll, a Alice assustada com a idéia de que os cantos da boca podem se juntar atrás e a cabeça pode cair.

* * * * *
Serviço

O Livro Amarelo do Terminal, de Vanessa Barbara. Cosac Naify, 254 págs., R$ 35.

As malas do mundo

Posted: 10th agosto 2008 by Vanessa Barbara in Clipping
Tags: , ,

“O Livro Amarelo do Terminal” retoma a tradição das grandes reportagens para retratar o cotidiano da maior rodoviária brasileira

Folha de Londrina
10 de agosto de 2008

por Marcos Losnak 

 

O marquetchim

Posted: 10th agosto 2008 by Vanessa Barbara in Clipping
Tags: ,

Revista da Folha
10 de agosto de 2008


Vanessa Barbara lança em livro extensa reportagem sobre a rodoviária do Tietê

O Estado de S.Paulo
10 de agosto de 2008 | 0h 00

por Francisco Quinteiro Pires

A vida é um milagre. E tem a cor amarela. O Livro Amarelo do Terminal, de Vanessa Barbara, é uma extensa reportagem sobre o Terminal Rodoviário Tietê. Além da cor das páginas – amarela -, que se presta como metáfora à passagem do tempo, que a tudo vai destruindo, a obra relata o vaivém dos passageiros da maior rodoviária da América Latina, embarques e desembarques que bem podiam ser a imitação dos ciclos da própria vida.

“Eu queria escrever sobre as ruas, mas precisaria falar de bueiros, pedrinhas e semáforos, então pensei que a rodoviária seria uma rua sem calçadas”, ela diz. Tietê, Vanessa explica, significa “rio fundo e corrente, que corta a cidade, com gente de todo tipo que chega e vai embora, que corre e perde suas muletas, que conversa com o Papai Noel”.

Querendo escrever sobre a rodoviária de um rio fundo e corrente, Vanessa escreveu sobre o absurdo da existência. O terminal se transformou em modelo miniaturizado do mundo. “Se o mundo é um lugar onde passam dezenas de freiras buliçosas segurando pranchas de surfe, onde há chicletes por toda parte e uma senhora acende velas no guarda-volumes, como eu acredito piamente, então a rodoviária é o mundo.” Ela prefere afirmar que a rodoviária é uma cidade esquisita, “onde nada de estrondoso parece acontecer e tudo se perde na multidão, mas há detalhes inacreditáveis e pessoas jogando pife-pafe enquanto aguardam a partida do ônibus”. Tudo se perde, e passa, até as pessoas. Quando voltou ao local, em abril, para escrever o epílogo, arrematando os 21 capítulos, ela reencontrou apenas alguns personagens da reportagem iniciada em outubro de 2002. “E igualmente falhei em descobrir o faturamento do banheiro.”

Antes de ser publicado pela Cosac Naify, O Livro Amarelo do Terminal (256 págs., R$ 35) era um Trabalho de Conclusão de Curso (o famigerado TCC), necessário para receber o diploma universitário. Vanessa visitou a estação rodoviária durante um ano. Como morava perto, no bairro do Mandaqui, ela passava a tarde inteira lá. “Ao terminar, cheguei a uma conclusão negativa, eu achava que era um lugar de desencontros e tristezas”, diz. “Depois de 5 anos, relendo o texto, vejo que é muito mais um lugar de pequenos encontros, de momentos sutis, de histórias extraordinárias.”

O capítulo 8 – História Oral do Tietê – é inspirado em O Segredo de Joe Gould, de Joseph Mitchell. Jornalista da New Yorker, Mitchell (1908-1996) extraía detalhes fantásticos da matéria bruta da realidade. Era capaz de ficar observando, durante duas horas, um pica-pau derrubar uma árvore. Os textos de Mitchell nascem de uma escuta/observação humilde e apaixonada. “Há várias formas de escutar as coisas e acho bom experimentar o máximo possível delas.” O jornalismo precisa de descrição e observação, segundo ela.

E de paciência. Vanessa, de 26 anos, precisou conversar com alguns dos 60 mil passageiros diários do terminal, além dos 1.806 funcionários que trabalham em três turnos. Era preciso nadar nesse oceano numérico – 100 mil cafezinhos mensais, 12 toneladas de pães de queijo por mês, mil quilômetros de papel higiênico jogados no lixo… A técnica parece simples. “Em certos dias, ia com um propósito certo: visitar o balcão de informações, os banheiros”, ela diz. “Em outros, apenas vagava pelos corredores puxando conversa e arrumando encrenca.” Ela chama isso de “histórias de vida”: fazer perguntas bem abertas e deixar o entrevistado falar livremente – “de frango com quiabo a carrapatos e bijuterias”.

Porque assim é mais fácil perceber o que importa de fato para as pessoas. A disposição para ouvir sem interferências se choca com o “gerador automático de reportagens”, nome inventado por Vanessa para qualificar as reportagens da grande imprensa (trânsito lento nos dois sentidos, liquidação de estofados, alta da taxa de juros) – “leio pouco jornal.” O mais do mesmo. “Faltam histórias”, afirma. E um olhar mais humanista nas redações. Entre os milhares de indivíduos do terminal, Vanessa, jornalista da revista Piauí, selecionou, entre outros, a Rosângela, o Bruno, o Marcos, todos personagens modestos e sem sobrenome. “Porque às vezes a conversa era tão tranqüila que perguntar sobrenome e RG era a última coisa que se aplicava no momento.”

Autora da ficção O Verão do Chibo (Alfaguara), com Emilio Fraia, Vanessa é adepta da noção de que a solenidade não leva a lugar nenhum. Concentrada nos detalhes bobos ou nas reações pequenas, ela aplica o recurso do humor, “um bom ingrediente para o jornalismo”, para narrar o surpreendente e o nonsense, como a senhora à espera da Marinha Britânica. “O mundo não faz necessariamente sentido e eu adoro essas pequenas bobagens que às vezes revelam muito e nada ao mesmo tempo”, diz. O segredo é achar o tom, para não cair no sarcasmo fácil, e ele não está no exagero, revela.

A afinação da narrativa se realizou em dois tons – no recurso ficcional e no projeto gráfico original. “É possível se valer mais de técnicas e noções de ficção para fazer reportagem, sem prejuízo do texto.” Vanessa convocou a ajuda de, entre outros, Truman Capote, Gay Talese, John dos Passos, João do Rio, George Orwell e até do quadrinista Will Eisner. E incluiu um capítulo inventado: Sala de Controle.

Todas as páginas são amarelas, de gramatura mais fina, cuja transparência mais acentuada permite a sobreposição das letras. A leitura às vezes embaralhada lembra o vertiginoso vaivém do local. “O objetivo foi emular a bagunça estética e polifônica do Tietê.” A exceção, dada para a cor azul, fica entre as páginas 145 e 192, sobre a construção, inauguração e consolidação da rodoviária. São os três capítulos históricos, em que o papel é semelhante ao carbono, usado na confecção de bilhetes de ônibus.

Nessas páginas, Vanessa misturou reportagens de época com músicas populares. “Achei a seqüência de acontecimentos tão absurda que precisava de uma trilha sonora à altura”, explica. “Declarações como ‘Não voltam porque eu não vou deixar. Quando for sair, que saiam todos os ônibus’ encaixam exatamente numa letra como ‘Levanta, me serve um café/ Que o mundo acabou’, sem falar de clássicos como ‘Ai, coração alado’.” A vida é mesmo um milagre. E, caso discordem, terão de aceitar ao menos um ponto: ela é uma bela de uma travessia absurda.

Coisas cada vez maiores

Posted: 9th agosto 2008 by Vanessa Barbara in Clipping
Tags: , ,

O Verão do Chibo, de Vanessa Barbara e Emilio Fraia, é o primeiro romance dos jovens escritores paulistas. Um livro sobre o poder de inventar suas próprias histórias e as ameaças estrangeiras da vida adulta

O Povo Online
09 Ago 2008 – 01h04min

por Pedro Rocha

Uma ficção escrita a quatro mãos. Vanessa Barbara e Emilio Fraia são os autores d’O Verão do Chibo, o primeiro romance dos dois jovens escritores, nascidos no mesmo e recente ano de 1982, em São Paulo. O livro é um mergulho no universo narrativo infantil. Mas esse adjetivo não cabe aqui no sentido de um segmento editorial destinado às crianças, nem também no que lhe atrela a outros qualitativos como “imaturidade”. O romance de Vanessa e Emilio, pelo contrário, trata do amadurecimento na passagem da infância para a adolescência, e o faz em um estilo coeso, valendo-se das potencialidades da recriação ficcional do “real” pelas crianças.

O livro é narrado pelo caçula de uma turma de quatro amigos que se encontram durante as férias nas casas de veraneio das famílias. O verão instaura um tempo próprio com sua casa na árvore e o milharal, onde eles se ocupam de brincadeiras diversas que se enredam numa história intrincada com espiões, zona proibida, homens de galochas azuis garbosas, um besouro velocista, bebedeiras com água e a Rainha da Bulgária. Mas o referido verão do título marca um novo momento em toda essa história. O irmão do protagonista, o Chibo (os outros amigos são Bruno e Cabelo), está virando homenzinho e nesse ano não participa mais das brincadeiras. Mas essa razão etária não chega a ser suspeitada pelo caçula, que nutre uma profunda admiração pela inteligência aguda de Chibo e, nesse verão, sente uma espécie de orfandade pelo sumiço do irmão.

Os autores também passaram a infância juntos, moraram no mesmo bairro. Depois, se graduaram na mesma faculdade de jornalismo. Colaboradores de revistas como Piauí e Trip, dois dos veículos mais afeitos aos dotes literários do jornalismo, Vanessa e Emilio conseguiram arquitetar uma literatura que não revela as possíveis fissuras de um texto escrito a dois. Principalmente, porque não trata-se de uma narrativa clara, linear, em que as coisas se encadeiam e a trama narrativa, mesmo sendo importante, não é o eixo principal, ao menos não no sentido de um desvelar final.

O Verão do Chibo, mais que contar uma história, as embaralha. A linguagem não se limita ao vocabulário do próprio menino narrador. O texto, rápido, por vezes convulso, vai se entremeando entre memória, descrições, pensamentos, diálogos, sem que essas fronteiras sejam demarcadas. O tempo é impreciso e o espaço, um milharal próximo às casas, é deslocado para distâncias imaginadas como a Bulgária e o alto mar.

SERVIÇO:

O Verão do Chibo, de Vanessa Barbara e Emilio Fraia (Alfaguara, 120 páginas, R$ 23,90).

TRECHO:
“O Bruno tinha os pés afundados na terra e tentava pensar em coisas cada vez maiores, na ordem, até que elas fossem tão grandes que não coubessem mais nas idéias. Então ele deixaria de existir. Porque a gente não morre de ficar parado – não, não pode ser verdade -, a gente morre de explodir a cabeça, de entupir tudo lá dentro, cinco elevado a cem, doze mil novecentos e cinqüenta e quatro, dez vezes um bilhão, até ficar completamente… vazio. Mas era difícil passar de dezessete galáxias, ainda mais com aquele calor. O Bruno não tinha idéia do que podia ser maior que dezessete galáxias com exceção de dezoito (enfileiradas), e não conseguia parar de pensar no isqueiro do Cara Morto”.

http://facesdarte.blogspot.com/
Segunda-feira, 4 de Agosto de 2008

por Thais Brugnara

No ousado livro-reportagem “O Livro Amarelo do Terminal”, Vanessa Barbara conta a história de personagens que ”passam pela página com um enorme fiapo preso aos pés” e detalhes “despercebidos e que não fazem sentido” do Terminal do Tietê.

(O tempo anda em círculos – profetiza Úrsula em “Cem Anos de Solidão”, de García Márquez-. E, como a memória é amante do tempo, às escondidas de nós, eles copulam, enquanto são levados por uma imensa – às vezes, perigosa – roda-gigante.)

Eu lia a Piauí de julho. Precisamente, a reportagem “A cidade das coisas perdidas”. Esse foi o estopim que pôs a memória a fornicar com o tempo na imensa – e, neste caso, inofensiva – roda-gigante. Então, eu lembrei do meu trabalho de conclusão de curso, da complexidade dos não-lugares de Buenos Aires, das poucas horas em que observei a loucura social da rodoviária de São Paulo. Assim, eu soube de “O Livro Amarelo do Terminal” e conheci o trabalho da escritora e jornalista Vanessa Barbara. Enfim, tantas lembranças, mescladas a novas informações, vieram à tona já na primeira volta da roda-gigante, já no primeiro parágrafo de uma página da Piauí.

Transformando a confusão cerebral em método: “A cidade das coisas perdidas” apresenta alguns trechos de “O Livro Amarelo do Terminal”, em que Vanessa Barbara faz um retrato pulsante da maior rodoviária da América Latina: o Terminal do Tietê. A partir de entrevistas, material de arquivo e observação aguçada, Vanessa passa a linha e a agulha por crônicas e relatos. Acaba costurando um livro-reportagem. O texto foi finalizado em 2003, após um ano de apuração, escrita e edição. (Ah,o livro foi resultado do seu projeto experimental de graduação.)

Bem, no meu trabalho de conclusão de curso, sob a orientação do professor Paulo Roberto Araújo, escrevi uma reportagem intitulada “Há vida nos subterrâneos de Buenos Aires”, em que relato o cotidiano do metrô portenho – cheio de cores, cheiros e sons – enfocando a história de vida de quatro pessoas que se cruzam diariamente sem se conhecerem. Para isso, estudei Marc Augé, o antropólogo francês que chamou de “não-lugares” os locais de espera e serviços, onde carecem de sentido as noções de identidade, memória e relação.

Passado um mês da apresentação da minha monografia, estive por duas horas no Terminal do Tietê, puxando conversa com a senhora da limpeza, comendo pão de queijo, tentando adivinhar o que havia nas malas, o que havia nos olhares desconhecidos. Duas horas em que vivenciei a rodoviária como um microcosmo da maior (e mais controversa) cidade do país. Depois, peguei a minha mochila e uma sacola cheia de livros de sebo; enfim, encarei a insana aventura de mais de 20 horas de viagem até Santa Maria.

E, passados outros meses, o tempo, em sua descompassada dança circular, pôs, em minhas mãos, a Piauí de julho e, justamente em frente aos meus olhos, o texto que detalha o cotidiano do Terminal do Tietê. E a memória, ansiosa para convidar o tempo para alguma orgia literária, reconheceu o bom jornalismo, resultado de um olhar que viaja entre tanta coisa pequena. Um olhar que pisca entre latinhas de alumínio, objetos perdidos, escadas. Um olhar que enxerga freiras e surfistas, famílias que passarão o Natal no nordeste, uma senhora que espera a Marinha britânica.

Por e-mail, entrevistei a moça do olhar viajante: Vanessa Barbara, repórter de Piauí, editora do site A Hortaliça (www.hortifruti.org), escritora (publicou o romance “O Verão do Chibo”, em parceria com Emilio Fraia, pela Alfaguara) e, o que vem ao caso, autora de “O Livro Amarelo do Terminal”.

No seu dia-a-dia, como você exercita o seu olhar? Como trabalha a sua sensibilidade?

Meu olhar sofre de um erro de paralaxe, pois se concentra em detalhes bobos ou reações pequenas. Isso em qualquer situação — quando vou ao mercado, por exemplo, presto atenção num velhinho que anda de galochas e compra cinco embalagens de mortadela. No sábado à noite, me interessam as pessoas que saem de flanela para comprar salsichas.

Sem grandes acontecimentos, “O Livro Amarelo do Terminal” é um retrato da vida que passa diariamente. Ele destaca detalhes do Terminal Rodoviário do Tietê que passam despercebidos. Por que esses detalhes se tornam tão importantes para o relato?

Porque a vida é feita de detalhes despercebidos e que não fazem sentido. Não é uma matéria de jornal com lead, desenvolvimento e conclusão, em que tudo se encaixa e tem um propósito. No Livro amarelo, há pessoas que passam pela página com um enorme fiapo preso aos pés, e é isso.

Além dos detalhes, as pessoas também passam despercebidas em lugares como a rodoviária. Porém, “O Livro Amarelo do Terminal” apresenta um relato humanizado. Como você escolhia, entre uma infinidade de possíveis histórias, os seus entrevistados? Como eram essas entrevistas, ou seja, você dizia que estava fazendo uma reportagem, usava gravador, já tinha uma pauta programada, quais eram as perguntas recorrentes?

Eu chegava, me sentava e puxava conversa. Me apresentava como estudante de jornalismo fazendo um trabalho sobre a rodoviária, usava um bloco cor-de-rosa e tentava anotar algumas frases da pessoa. No segundo ano da faculdade, fiz uma monografia de iniciação científica sobre inclusão digital e usei uma técnica de entrevistas chamada “histórias de vida”, em que o entrevistador tenta interferir o mínimo possível e deixar que a pessoa conduza a conversa. Costuma dar certo. Eu fazia uma ou outra pergunta genérica e a pessoa já ia falando sobre as coisas que importavam, às vezes por horas. Nunca tive pressa de encerrar uma conversa sobre frango com quiabo.

Aliás, você deve ter algumas anedotas interessantes da apuração. Pode contar alguma?

No decorrer do trabalho, tentei desenhar um mapa da rodoviária, no que fracassei estrondosamente. Cheguei a levar uma bússola e, no chão do andar superior, fui abordada por um segurança que me perguntou o que eu fazia com um mapa e uma bússola no chão. Eu respondi: “Olha que engraçado. O Norte antes era pra cá, agora é pra lá. Suspeito, não?”, ele riu, deu as costas e decidiu que eu não era perigosa.

Segundo Marc Augé, rodoviárias são “não-lugares”. Para ele, uma das principais características desses locais é a solidão. Isso porque muitas pessoas dividem o mesmo espaço, mas não se conhecem, quando se comunicam é superficialmente e não se sabe a história de vida dos demais. Como você percebeu isso durante a apuração?

Em 2003, foi essa a conclusão que eu tive com a experiência da rodoviária. Hoje, cinco anos depois, percebo que não é bem assim: a rodoviária é um lugar de encontros. Podem ser breves, tristes, singelos ou aparentemente insignificantes, mas são histórias. A rodoviária é um grande lugar, um rio que corre rápido e fundo, cortando a cidade.

E como é a relação entre os funcionários do Terminal Rodoviário do Tietê com o próprio local?

Depende, há os funcionários como Marcos e Rosângela, que têm uma relação carinhosa com a rodoviária, e há outros como os assessores de imprensa e os supervisores da época, que aparentemente dirigem uma indústria de embutidos com segredo industrial.

Há trechos, publicados na revista Piauí, em que os dados são substituídos por __. Por exemplo, “(…) __ quilômetros de lentidão. A previsão é de __ carros deixem a cidade até amanhã.”. Por quê?

É um gerador automático de reportagens. O repórter de “Cidades” que precisa publicar uma matéria sobre o feriado e quer sair do trabalho mais cedo só precisa preencher com os números e pronto.

O estilo do livro aproxima-se ao Jornalismo Literário. Quais foram os principais recursos estilísticos que você utilizou?

Usei muito diálogo e pouca descrição. Fiz um gerador automático de reportagens, um texto entrecortado por músicas, outro interrompido por vozes que foram se impondo no capítulo, outro puramente inventado, outro com recortes de jornal etc. Tentei usar os melhores expedientes para contar as histórias.

Quais são os autores que inspiraram o livro?

Além de Gay Talese, Joseph Mitchell, Truman Capote, Joel Silveira, Will Eisner, Rubem Braga, Drummond, Luis Fernando Verissimo, George Orwell. Na literatura, Flaubert, Cortázar, Poe, Salinger, Sterne, Kafka, Campos de Carvalho.

Você tem manias para escrever? Alguns rituais?

Tenho que escrever em silêncio e às vezes, para reler, fico de pé, mudo a posição do monitor ou a fonte do texto. Gosto de escrever com serifas.

“O Livro Amarelo do Terminal”
Autora: Vanessa Barbara
Prefácio: João Moreira Salles
Editora: Cosac Naify

* Vale a pena destacar o ousado projeto gráfico, elaborado por Elaine Ramos e Maria Carolina Sampaio.

AH1293719589x6054

Piauí n. 23
Agosto de 2008

por Vanessa Barbara

De ovulação a decotes, tudo o que se deve aprender antes do casamento

Quem pretende se casar na Igreja católica tem que se submeter a um curso de noivos. Não há jeito. Os nubentes podem escolher a paróquia que desejarem. Basta ter vagas. A oferta é variada e tem curso para todos os gostos.

Na Igreja São José do Mandaqui, em São Paulo, o curso é de dois dias inteiros, sábado e domingo. Na Paróquia Santa Teresinha, na zona norte, as aulas começam num sábado às 18h30 e se estendem por outros três dias. O Santuário Nossa Senhora da Salette oferece praticamente um mestrado: são dois sábados e domingos, sem choro nem vela. Já a Paróquia São Gabriel Arcanjo, nos Jardins, está mais para supletivo: segunda-feira das 12 às 19 horas. E se curso de noivos tivesse provão do Enem, a Igreja Nossa Senhora Mãe do Salvador, em Pinheiros, mais conhecida como Cruz Torta, levaria bomba. No esquema geral da pedagogia matrimonial, ela equivale às faculdades nas quais o aluno se forma summa cum laude sem jamais pôr os pés na sala de aula: o corpo docente da Cruz Torta é famoso por seus cursos instantâneos de três horas.

Às oito da manhã de um sábado, dezenove jovens casais se sentaram em círculo no salão da Igreja Nossa Senhora Achiropita, no Bixiga, bairro italiano de São Paulo. As mesas de plástico e as bandeirinhas juninas estavam sendo arrumadas para a Noite da Pizza. O curso tomaria o dia inteiro. Primeiro, algumas orações, músicas e chá de maçã. Depois, era respirar fundo e enfrentar o currículo: direito canônico, sexualidade no matrimônio, sacramentos, paternidade responsável, Bíblia e Igreja, oração na vida do casal e comunicação.

O primeiro palestrante foi o psicólogo José Roberto Franzen, com experiência de 25 anos em cursos de noivos. Começou com uma imagem: ninguém faria um curso para ir ao Playcenter, mas se fosse permanecer no parque por mais tempo, certamente gostaria de conhecer melhor os brinquedos. Os alunos se entreolharam. Franzen não estava ali para acalentar certezas, mas para provocar dúvidas. Afirmou que, quando jovem, desistiu de se casar no primeiro dia do curso. Não explicou a razão, mas conseguiu plantar a insidiosa semente da desconfiança. “Seria mais fácil chegar aqui e dizer: ‘Quando a gente ama para valer, bom mesmo é ser feliz e mais nada.’ Mas não é tão simples assim.” Lá atrás, um noivo assustado cochichou que iria ligar para a gráfica que fez os convites “agora mesmo”.

Nenhum dos casais tinha menos de dois anos de namoro. Alguns possuíam seis, sete, treze e havia os que chegavam a quinze anos de convivência sem trocar alianças. Seria o caso de perguntar por que tomavam a decisão agora, já que pareciam a léguas da harmonia conjugal. Incitados por Franzen, discordaram acerca dos convites, do salão de festas e das sogras. Alguém acusou seu parceiro de viajar subitamente sem avisar. A acusação tocou num nervo coletivo, pois outros alunos se disseram vítimas de ultraje semelhante. Por pouco o curso de noivos não se transformou numa terapia conjugal, ou, pior, numa audiência de Vara de Família para separação de corpos. “A ‘gráfica’ aqui não sabia que era para mandar os convidados chegarem meia hora antes”, ironizou uma das noivas, referindo-se ao homem sonolento à sua esquerda. Pressionado, um noivo confessou que mentira para a noiva: não viajou a negócios, saiu mesmo com os amigos.

A organização do curso se apressou em trazer à frente o casal Gardim e Lucy, casados há 46 anos. Os dois exaltaram o sacramento do matrimônio e contaram uma história de passarinhos, bebês e borboletas. Leram bilhetes afetivos que se escreveram ao longo das décadas, e lembraram que a responsabilidade do casal é procriar, mas que se deve preparar o sexo bem cedo, desde as primeiras horas do dia. Os casais voltaram a se entreolhar.

Depois do almoço, foi a hora do ginecologista Paulo Fernando Veinert falar sobre sexo no casamento. Explicou noções técnicas da anatomia genital masculina e feminina e disse que “ânus não é órgão genital, se bem que está na moda”. Embalado, esclareceu a diferença entre vulva e vagina, desenhou enormes diagramas na lousa e discorreu sobre ovulação e fertilidade. Terminou com o conselho tranqüilizador: “Divirtam-se, pois todo casal casado tem o direito de se divertir.”

Todos desceram depois para a missa na capela. Eram quase sete da noite e, na nave da igreja, tocam a música triunfal que indica que uma noiva entrou no recinto sagrado. Ouve-se o tema de Titanic, escolha peculiar dado o destino dos protagonistas da fita. Ao fim, a longa jornada tem sua recompensa: os noivos têm seus nomes lidos em voz alta, e sob aplausos, fotos e lágrimas, recebem os atestados de que estão prontos para se casar. Só uma noiva escapa pelos fundos, sem seu par, que debandou em algum ponto entre as borboletas e os ciclos da ovulação.

Revista Bravo
Agosto de 2008

Revista Vila Cultural / Livraria da Vila
agosto de 2008

Homem Vogue
Agosto de 2008