B. Wilder

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Billy Wilder dirigiu 26 filmes e escreveu cerca de setenta. Assim como os diretores que mais admirava (e com quem trabalhou), Howard Hawks e Ernest Lubitsch, passeou por todos os gêneros cinematográficos, fez comédias, filmes de guerra, suspenses e dramas. Pouca coisa, fora os mais clássicos, estava disponível em DVD ou mesmo VHS no Brasil, mas agora, com duas novas caixas e uma série de edições especiais, já dá para pensar em bolar uma lista completa de seus filmes.

Samuel Wilder nasceu em 1906 na cidade de Sucha, na Áustria. Na juventude, viveu em Berlim, onde trabalhava como jornalista de tablóides e dançarino profissional (acompanhante de senhoras). Com a ascensão do nazismo, Wilder, que era judeu, emigrou para Paris. Em 1933, mudou-se para Hollywood. Ao longo da carreira, destacou-se por dar primazia ao texto em detrimento a cenas exuberantes que chamassem atenção para si mesmas e distraíssem o espectador da história. Procurava demorada e pacientemente até encontrar a melhor solução para uma cena, o melhor caminho para passar de um ponto a outro: era um mestre em encadear sequências. Para ele, escrever um filme era como jogar xadrez.

Interessava-se pela natureza humana e a vida das pessoas comuns. Tinha um senso de humor cortante e uma visão de mundo cínica e melancólica, que muitos atribuem ao fato de ter perdido a família no Holocausto.

Seus principais colaboradores foram Charles Brackett (treze filmes) e I.A.L. Diamond (vinte). O primeiro colecionava quadros com ovelhas e era radicamente diferente do parceiro: Wilder odiava portas fechadas, Brackett tinha medo de que ficassem abertas. O austríaco andava de lá pra cá e o americano permanecia sentado. "Apesar disso, ou justamente por causa disso, a tensão entre nós funcionava muito bem, tão bem que por vezes ele jogava a lista telefônica em mim – mas atingia apenas o abajur", comenta Wilder.

Quanto a Diamond, conta-se que, após ler um trecho que haviam acabado de escrever, ele comentou: "Está muito bom, não é?". "Muito bom!?", disse Wilder, e saltou da cadeira. "Muito bom? Está perfeito! (pequena pausa) E agora vamos melhorar".

 

Bibliografia consultada

E o resto é loucura, de Hellmuth Karasek (DBA, 1998)
Billy Wilder: A filmografia completa (Taschen, 2003)
 

 

FILMOGRAFIA

 

Semente do mal
(
Mauvaise Graine, 1934)

Dirigido por Wilder durante o exílio na França, pouco antes de se mudar para Hollywood, Semente do mal teve pouca influência em sua carreira posterior. Ainda assim, é possível vislumbrar neste filme algumas das marcas registradas do diretor: por exemplo, o cômico letreiro inicial e a filmagem em locação – no caso, as ruas de Paris.

A história fala de Henri Pasquier, jovem rico sustentado pelo pai, que logo nas primeiras cenas perde a mesada e o carro chique. Obrigado a se virar sozinho, Henri tem a brilhante ideia de entrar para uma gangue de ladrões de carros.

Algumas gags tipicamente wilderianas: há um personagem obcecado em roubar gravatas, outro que tem o péssimo hábito de furtar carros excêntricos. Em determinado momento, a ladra (interpretada por Danielle Darrieux) está bebendo num café e um homem passa de carro, convidando-a para dar uma volta. A cena seguinte mostra a moça resistindo e, em seguida, a mesa vazia.

Classificação: regular

Cena: Bem na hora em que a polícia faz uma batida na garagem de carros roubados, ladrão entra em cena com um bonde roubado.

Objeto de cena: A placa do carro.

Frase: (voz em off) "Pessoas felizes não possuem história, ou assim pensávamos. Henri Pasquier é muito feliz. A única coisa que falta em sua vida é uma nova buzina".

 


 

A oitava esposa do Barba-Azul (roteiro)
(
Bluebeard's Eight Wife, de Ernst Lubitsch, 1938)

Michael Brandon (Gary Cooper) é um milionário arrogante e mulherengo que já teve sete esposas. Numa loja de pijamas na Riviera Francesa ele conhece Nicole de Loiselle (Claudette Colbert), que inicialmente o rechaça e, por fim, acaba aceitando casar-se por dinheiro. Segundo o acordo pré-nupcial, ela ganharia uma pensão de 100 mil dólares por ano em caso de divórcio.

É um belo Lubitsch com roteiro mordaz e cínico, uma espécie de A megera domada às avessas: sendo a oitava esposa de Brandon, Nicole percebe que a única forma de manter o marido é fazer de tudo para perdê-lo – e é o que executa desde o primeiro dia de lua-de-mel, de forma fria e determinada. Ela se faz de difícil e dá a entender que possui inúmeros amantes, quase nunca o vê e dorme em um quarto separado. Naturalmente, ele cai de amores.

Classificação: ótimo

Cena: Sugerida por Wilder, então novato em Hollywood, este filme contém uma das melhores cenas "garoto-encontra-garota" do cinema: Cooper está numa loja de departamentos tentando comprar um pijama, mas argumenta ao vendedor que só usa a parte de cima. Ele insiste em comprar só essa parte, mas o atendente diz que é preciso levar o conjunto. Tudo parece perdido. Então, uma garota entra na loja e anuncia que deseja comprar apenas as calças. (A cena é ousada para a época, pois todos se põe a discutir abertamente o que usam para dormir.)

Objeto de cena: Pijama listrado

Frase: "A direção acha que, se vendermos o pijama sem as calças, um precedente seria aberto e teríamos consequências desastrosas! Nosso diretor pensa que a Europa já tem problemas demais."

 


 

Ninotchka (roteiro)
(
Ninotchka, de Ernst Lubitsch, 1939)

Diz-se que o roteiro de Ninotchka foi escrito a partir do slogan: "Garbo ri". Conhecida por sua interpretação sisuda em papeis trágicos, a atriz estreou na comédia como uma fria comissária russa destacada para uma missão no estrangeiro: vender uma coleção de joias imperiais e trazer de volta três colegas que falharam na empreitada. Chegando em Paris, a comissária enfrenta a resistência da ex-proprietária das joias, a duquesa Swana, e seu amante Leon – que passa a cortejá-la.

Foi uma oportunidade perfeita para Wilder (que assinou o roteiro com Charles Brackett e Walter Reisch) exercitar uma de suas especialidades: respostas duras, secas, chandlerianas.

Ainda que exposta aos luxos parisienses e às investidas de um sedutor implacável, a personagem Ninotchka parece que nunca vai amolecer. Ela enxerga tudo com olhar técnico e diz que determinada coisa "irá custar sete vacas ao povo russo". Fica interessada pelos esgotos da cidade e as medidas dos edifícios. Em visita à Torre Eiffel, pergunta a largura exata dos alicerces e sua profundidade, e quanto tempo um homem levaria para cair. "Você precisa mesmo flertar?", pergunta ao apaixonado Leon. Quando ele a convida para jantar, Ninotchka responde que já ingeriu todas as calorias necessárias para o dia.

Não por acaso, Ninotchka é um dos filmes preferidos do próprio Lubitsch. Dezoito anos depois, foi refilmado como musical (Meias de seda, 1957, de Rouben Mamoulian), mas sem o mesmo brilho literário.

Classificação: ótimo

Cena: Durante o jantar, Leon tenta contar piadas para Ninotchka. Ela permanece impassível. "Você não tem o menor senso de humor. Nada. Nem uma mísera risada." Quando ele cai da cadeira, Ninotchka enfim cai na gargalhada.

Objeto de cena: chapéus. Logo no início, a russa vislumbra um adereço excêntrico na vitrine e pergunta como pode sobreviver uma civilização que permite que as mulheres botem coisas assim na cabeça. O mesmo chapéu vai posteriormente sinalizar a mudança de Ninotchka, que passa de comunista empedernida a alguém que vê a beleza em coisas frívolas.

Frase:
Leon: "Você gosta de mim pelo menos um pouco?"
Ninotchka: "Sua aparência geral não é desagradável."
Leon: "Obrigado."
Ninotchka: "O branco dos seus olhos é impecável. Sua córnea é excelente."

 


 

Bola de fogo (roteiro)
(
Ball of Fire, de Howard Hawks, 1941)

Billy Wilder roteirizou todos os filmes que dirigiu, mas a recíproca não é verdadeira. No início de sua carreira, escreveu para diretores como Ernest Lubitsch (Ninotchka e A oitava esposa do Barba-Azul) e Henry Koster (Um anjo caiu do céu). A comédia Bola de fogo é outro exemplo: roteirizada por Wilder e Charles Brackett, tem direção de Howard Hawks e é uma espécie de Branca de Neve e os sete anões às avessas. Neste filme, um grupo de sete velhinhos, liderados por um professor mais novo (Gary Cooper), se reúne para publicar uma enciclopédia. Eles são especialistas em todos os campos do conhecimento, de botânica a direito, só desconhecem um assunto: o sexo oposto.

Durante uma pesquisa de campo, o prof. Bertram Potts (Cooper) conhece uma cantora, Sugarpuss O'Shea (Barbara Stanwyck). Ela é procurada pela polícia por conta dos crimes de seu namorado, um chefão da máfia, e decide se esconder na residência dos velhinhos. Aos poucos, a moça conquista os acadêmicos e lhes ensina certas coisas da vida, como animados passos de conga. Naturalmente, o personagem de Gary Cooper se apaixona e decide pedi-la em casamento.

Bola de fogo é uma comédia simpática, divertida e despretensiosa, que se assiste com um sorriso permanente no rosto. A trupe de velhinhos é cativante, com seus pijamas listrados, camisolas e gorros compridos. Há bons momentos, como quando um dos professores é flagrado pela cantora e foge. "Esse é o professor Oddly", diz o protagonista. "Há mais deles por aí?", ela pergunta, desconfiada, ao que ele responde: "Espero que não".

Classificação: bom

Cena: Sugarpuss toca a campainha da casa, à meia-noite e meia, e os velhinhos sobem a escada correndo, de pijamas. Depois, ficam espiando de cima e vão se aproximando aos poucos, assustados.

Objeto de cena: copo de leite

Frase: Quando o professor Potts sai para fazer uma pesquisa de campo sobre gírias contemporâneas, os colegas fazem chacota:
Professor 1: "Estou escrevendo sobre o planeta Saturno. Devo insistir para ir até lá?"
Professor 2: "Talvez minhas informações sobre sexo estejam um pouco desatualizadas."

 


 

A Incrível Suzana
(
The Major and The Minor, 1942)

Possivelmente um dos filmes mais tolos da história do cinema, A Incrível Suzana marca a estréia de Billy Wilder como diretor em Hollywood, depois de Mauvaise graine (1934), rodado na França. O roteiro, assinado por Wilder e Charles Brackett, conta a história de uma moça (Ginger Rogers) que decide sair de Nova York e voltar para casa, em Iowa, mas não tem dinheiro para a passagem de trem. Naturalmente, ela escolhe a saída mais lógica: rouba um balão, faz duas tranças no cabelo e finge ter doze anos para pagar meia passagem. "Sou de origem sueca", diz para o bilheteiro do trem, "meu irmão Olaf mede 1,87m e está na segunda série."

No vagão, Susan "Su-Su" Applegate conhece um major do Exército (Ray Milland) que realmente acredita que ela é criança. Por motivos igualmente verossímeis, ela não só tem que sustentar a mentira, como é obrigada a passar alguns dias em uma escola militar, junto a 300 cadetes lascivos.

Embora não seja tão elaborado quanto seus filmes posteriores, A Incrível Suzana (no título original, O Major e a menor) já traz uma das marcas registradas do diretor: a ousadia em driblar a censura e apresentar situações escabrosas sem que o público se dê conta. Em Quanto mais quente melhor, Billy Wilder praticamente casa o personagem de Jack Lemmon com Osgood Fielding III. Em Irma la Douce, a personagem principal é uma prostituta e o mocinho da história é seu cafetão, mas isso não compromete em nenhum momento a leveza do filme. Em Crepúsculo dos deuses, o protagonista é um gigolô. Aqui, em A Incrível Suzana, Wilder pressupõe um romance entre um major e uma menina de 12 anos, e isso há mais de meio século, disfarçado em um filme inocente e quase infantil. De fato, o senso de humor de Wilder não era nada normal.

Classificação: bom

Cena: Quando Su-Su entra no baile com os cadetes e percebe que há uma epidemia na escola da sra. Shackleford: todas as garotas pensam que são Veronica Lake.

Objeto de cena: couro cabeludo do sr. Osborne

Frase: "Sorte sua que eu não tenho 12 anos. Eu era uma criança muito direta. Costumava cuspir."

 


 

Cinco covas no Egito
(
Five Graves to Cairo, 1943)

Pouco conhecido no Brasil, Cinco covas no Egito é uma pequena obra-prima de Wilder, baseada numa peça do mesmo nome e ambientada durante a Segunda Guerra Mundial. Ao longo de sua carreira, Wilder adaptou inúmeras peças, e era um mestre em explorar os ambientes confinados do teatro dentro da linguagem cinematográfica. Aqui, o soldado inglês John Bramble (Franchot Tone) é deixado para trás depois que o exército britânico perde para a Alemanha no Egito. Ele procura refúgio num hotel no Saara, mas é surpreendido quando os nazistas transformam o local num centro de operações. Pior, o próprio general Rommel (Erich von Stroheim), que comandou a ofensiva, irá se hospedar por lá. Obrigado a esconder a identidade, Bramble toma o lugar de um garçom morto, e com a ajuda do gerente do hotel e de uma funcionária (Anne Baxter), passa a se infiltrar entre os nazistas. Ele então descobre que Rommel tem um plano secreto para o Egito, as tais "cinco covas" do título, que pode mudar o rumo da guerra.

O filme é um misto de suspense e drama, e se passa quase todo no hotel, entre as idas e vindas do espião acidental. Mas como Wilder, com raríssimas exceções, não consegue fazer um filme sem graça, fica evidente mais uma vez o verniz de cinismo e humor negro da maioria de suas comédias. O resultado disso é que os filmes têm sempre um tom moderno, lidam sem candura com temas polêmicos e nunca se entregam a finais fáceis (ou felizes, muitas vezes). No caso de Cinco covas no Egito, rodado e lançado durante a guerra (a mãe, o pai e a avó de Wilder morreram em campos de concentração), ele consegue ainda escapar da patriotada que rondava o cinema.

Mas o que vale o filme é a atuação de Erich von Stroheim como Rommel, que faz um dos poucos personagens nazistas da época que não é um vilão maníaco e caricatural. Stroheim era um ator e diretor do cinema mudo que ainda trabalharia com Wilder em Crepúsculo dos deuses, num papel semi-autobiográfico.

Classificação: ótimo

Cena: Quando o corpo do verdadeiro Davos é desenterrado dos escombros no meio de um ataque aéreo, tem início uma perseguição entre Bramble e o tenente alemão. A cena termina com uma lanterna caindo no chão e trocando de dono.

Objeto de cena: Bota ortopédica do garçom Davos.

Frase: "Estamos matando os ingleses como moscas! Depois, iremos matar as moscas como os ingleses."

(colaboração de André Conti)

 


 

Pacto de sangue
(Double Idemnity, 1944)

Junto de O falcão maltês (John Huston, 1941) e The Big Sleep (Howard Hawks, 1945), Pacto de sangue é provavelmente o filme noir que melhor reproduz o espírito desse ramo das histórias policiais nas telas. Mesmo não contando com um detetive casca-grossa como Sam Spade ou Philip Marlowe – ambos vividos por Humphrey Bogart nos filmes de Hawks e Huston –, Pacto de sangue ajudou a definir um gênero de cinema cujo impacto visual e o estilo narrativo se espalharam por todos os outros, seja nas infinitas alusões a salas esfumaçadas e femmes fatales, no narrador também infinitamente imitado e até em filmes que se aproveitaram da mesma estrutura em outros gêneros – como Blade Runner: O caçador de andróides (ficção-científica) e O Homem que não estava lá (comédia), por exemplo.

Baseado em um romance de James M. Cain, o filme foi escrito por Wilder e Raymond Chandler, o autor dos livros do detetive Marlowe.

Para o papel de Phyllis Dietrichson, a loira (casada e fatal) que seduz o agente de seguros vivido por Fred McMurray, Wilder chamou Barbara Stanwyck. Ao ver a peruca que ela usa no filme, escolhida pelo diretor, o chefe de produção teria dito: "Nós contratamos a Barbara Stanwyck e veio o George Washington!".

No filme, Walter Neff se apaixona por uma cliente durante uma visita de trabalho, e ela o convence a assassinar seu marido. Ambos serão beneficiados por uma cláusula conhecida como "indenização em dobro", que prevê o dobro do valor caso a morte do segurado seja acidental. Mas o chefe de Neff na Pacific All-Risk, vivido por Edward G. Robinson, suspeita da viúva, e inicia uma investigação para desmascarar o esquema. O filme, que é baseado num caso real, tem todos os bons cacoetes de Wilder, como o humor negro, a visão cínica de mundo e os diálogos cortantes. Edward G. Robinson, conhecido pelo papel do mafioso Rico em Alma no lodo, é dos melhores atores da época.

Conta-se que, por muito tempo, uma grande seguradora norte-americana exibia Pacto de sangue aos novos funcionários e pedia a eles um relatório do que aprenderam com o filme.

Classificação: excelente

Cena: Abertura, em que o assassino se revela logo após os créditos iniciais, quando se vê a sombra de um homem de muletas se aproximando da tela.

Objeto de cena: peruca da Barbara Stanwick.

Frase: "Sim, eu o matei. Eu o matei pelo dinheiro – e por uma mulher – e não fiquei nem com o dinheiro e nem com a mulher. Bonito, não é?"

(colaboração de André Conti)

 


 

Farrapo humano
(
The Lost Weekend, 1945)

Provavelmente o único drama puro de Wilder, Farrapo humano não contém uma só piada ou trocadilho. Ray Milland interpreta um escritor com bloqueio criativo que se torna alcoólatra e cai em desgraça – é abandonado pelo irmão, internado numa clínica, tem alucinações, começa a roubar, empenha sua máquina de escrever e tenta o suicídio. Pesado e polêmico, foi um dos primeiros filmes da história a retratar o alcoolismo como doença, e não como pretexto cômico, por isso ganhou quatro Oscars: melhor filme, ator, roteiro e diretor – apesar da hesitação inicial do estúdio em abordar o tema.

Embora neste filme não se vejam os diálogos cortantes que caracterizam Wilder como roteirista, há inúmeras cenas que o denunciam como diretor. Uma delas é a tomada inicial da janela do apartamento de Milland, quando se vê uma garrafa de uísque presa a um cordão. "Então o público se pergunta: por que essa garrafa presa no cordão?, o que isso quer dizer?. Depois de três minutos, os espectadores ficam sabendo que um homem está tentando esconder a garrafa de seu irmão para ficar com ela. Com isso, a plateia já sabe que se trata de um filme sobre um alcoólatra", diz Wilder.

Em outra tomada clássica, o escritor sofre de profunda abstinência e se esquece onde escondeu uma garrafa extra. Ele revira o apartamento, acende todas as luzes, derruba os livros da estante, esbraveja e cai exausto na cama. Então olha para cima: há uma silhueta de garrafa no lustre.

Classificação: ótimo

Cena: O protagonista entra no bar, pede uma dose e, com a umidade, o copo forma um círculo no balcão. Após o terceiro círculo, o bartender faz menção de limpá-los, mas Milland o impede, dizendo que são círculos viciosos sem começo nem fim, como os dias de um alcoólatra. Há uma tomada com seis círculos, depois uma com doze círculos se entrecortando sobre o balcão. "Fiz essa sobreposição, da qual de fato fico um pouco orgulhoso, para encurtar o tempo e não ter de narrar de maneira tediosa: primeiro ele toma um copo, aí não pode mais parar, e toma mais um e mais outro. A abreviação que se consegue por meio dos círculos torna clara para o público de uma só vez a derrota do alcoólatra reincidente", explica o diretor.

Objeto de cena: Garrafa de uísque e máquina de escrever

Frase: "Então vem o desespero, aí um drinque para compensar o desespero, e outro para compensar a compensação."

 


 

A Valsa do imperador
(
The Emperor Waltz, 1948)

Notável exemplar da safra de filmes tolos do diretor, A valsa do imperador não consegue escapar da tolice nem por um minuto. A começar pelo enredo: Bing Crosby faz um caixeiro-viajante que tenta vender um gramofone ao imperador da Áustria. No palácio, conhece a condessa Johanna Franziska von Stolzenberg-Stolzenberg (Joan Fontaine) que está tentando cruzar seu poodle com o cão real. Mas o poodle acaba se apaixonando pelo vira-lata do protagonista, o que fatalmente acaba acontecendo também com seus donos.

Seria um enredo típico de comédias românticas dos anos 40, não fossem os detalhes bizarros: para começar, o filme é narrado por um grupo de insólitas damas da corte. Conta com um imperador velho e sábio, um conde perdulário e um psiquiatra de cães. Os animais uivam de paixão e uma aldeia inteira toca violino para os dois amantes, refugiados numa minúscula ilha. Pode-se argumentar que Wilder estaria, aqui, advogando em favor do inusitado. Segundo ele, não há interesse quando alguém entra pela porta – seria muito mais curioso se subisse pela janela. “Um homem que está prestes a sair e põe lenço e carteira no bolso é muito mais enfadonho que um que abre uma gaveta, tira um revólver e o leva consigo: um início como este é uma promessa de suspense”, dizia.

O próprio diretor, porém, considerava A valsa do imperador um deslize, fruto da insistência da Paramount em arrumar alguma história para Bing Crosby. É também o seu primeiro filme em cores. “Tudo parecia como numa sorveteria”, lembrou Wilder. “Até mesmo o diálogo soava falso em cores”.

Classificação: regular

Cena: Momento em que Buttons e Sherahazade se apaixonam, assim como seus donos.

Objeto de cena: Gramofone.

Frase: "Os Lafuente têm mais de tudo. Parece que suas crianças nasceram com onze dedos nas mãos."

 


 

A Mundana
(
A Foreign Affair, 1948)

Billy Wilder adorava Marlene Dietrich, a quem chamava de "Madre Teresa, mas com belas pernas". Neste filme, ambientado na Berlim do pós-guerra, ela é a cantora de cabarés Erika vin Schlütow, que tem um caso com um oficial da ocupação americana, o capitão John Pringle (John Lund), também envolvido com o mercado negro. O filme começa com a chegada de um grupo de congressistas americanos enviados para investigar o comportamento moral das tropas durante a ocupação. Horrorizada com o que vê, a conservadora Phoebe Frost (Jean Artur) descobre que Erika havia sido amante de um oficial nazista e decide descobrir quem é seu atual protetor.

O filme causou polêmica por lidar com assuntos ainda muito recentes de forma escrachada. A abertura mostra Berlim arrasada ao som de uma animada fanfarra. Há semelhanças com Ninotchka, de uma década atrás: uma mulher emocionalmente distante e amargurada se apaixona pelo inimigo, enfrentando a resistência da rival. A Mundana, contudo, é um filme mais negro e realista, sinal do amadurecimento do diretor. Menos caricata que Ninotchka, a personagem de Dietrich faz sentido num mundo regido pela guerra, no qual só sobrevive quem perdeu todas as ilusões. "Bombardeados uma dúzia de vezes, destituídos de nosso país, de nossas posses, nossas crenças... e, de alguma forma, eu segui em frente. Meses e meses espremidos com outras 5 mil pessoas em abrigos antiaéreos. Eu segui em frente. Como você acha que foi ser mulher quando os russos tomaram a cidade?"

Segundo o crítico Kevin Lally, "o toque de gênio de Wilder é a forma como transforma um triângulo amoroso cômico numa metáfora da confrontação entre uma América paternalista e inocente e uma Alemanha fria e devastada pela guerra."

Classificação: bom

Cena: Marlene Dietrich canta no cabaré: "Quer comprar algumas ilusões? Levemente usadas, seminovas. Ilusões românticas, e elas falam de você. Vendo todas por um centavo, são belas lembranças de viagem. Leve pra casa minhas doces ilusões, algumas para rir, outras para chorar."

Objeto de cena: Meia-calça de nylon.

Frase: "Se dermos um pão a um homem faminto, é democracia. Se dermos com embalagem, é imperialismo."

 


 

Crepúsculo dos deuses
(
Sunset Blvd, 1950)

A cena inicial de Crepúsculo dos deuses é narrada por um morto: Joe Gillis (William Holden), assassinado numa piscina. Visto de baixo, o protagonista está boiando de barriga enquanto os repórteres e policiais se curvam para fotografá-lo. É considerada uma das tomadas mais impressionantes do cinema, embora tenha sido planejada de última hora – na cena original, o cadáver de Holden engataria uma conversa com outros corpos no necrotério. Durante a exibição prévia do filme, a audiência caiu na gargalhada e Wilder se viu obrigado a pensar em outro início. "Hoje sei que quase todo mundo sente muitas cócegas no dedão, e era por isso que não podiam parar de rir quando viram os vigias amarrando a etiqueta de identificação no pé de Holden", conta Wilder.

Aclamado como um clássico do cinema, o drama mostra o oportunismo de Joe Gillis (Holden), um jovem roteirista sem emprego que termina por tornar-se gigolô de uma atriz decadente do cinema mudo, Norma Desmond (interpretada de forma superlativa por Gloria Swanson, em contraste com a atuação contida de Holden). Mordaz e amargo, Wilder mostra o lado mais sujo de Hollywood e, por isso, causou polêmica.

Sua escolha de elenco foi certeira: na época, Swanson era uma atriz esquecida havia décadas, sobretudo por conta de um filme fracassado: Minha rainha (Queen Kelly), de 1929, dirigido justamente por Erich von Stroheim, que em Crepúsculo dos deuses interpreta seu devotado mordomo, ex-diretor e ex-marido. Cecil B. DeMille faz uma ponta no papel de si mesmo, bem como outros atores do cinema mudo (Buster Keaton é visto jogando baralho na mansão de Desmond). Nas palavras de Joe Gillis, Norma era alguém acenando para um desfile que há muito havia passado.

Classificação: excelente

Cena: "Estou pronta para o meu close-up, sr. DeMille", anuncia Norma Desmond aos repórteres policiais, enquanto desce a escada, numa cena devastadora.

Objeto de cena: Câmeras de filmagem.

Frase: "Eu sou grande. Os filmes é que ficaram pequenos."

 


 

A Montanha dos Sete Abutres
(
Ace in the Hole, 1951)

Entre todos os filmes que escreveu e dirigiu, Billy Wilder tinha um preferido: A Montanha dos Sete Abutres. Embora seja hoje amplamente aceito pela crítica e cultuado nas faculdades de jornalismo, o filme foi um dos grandes fracassos na carreira do diretor, em parte pelo seu teor pessimista e sem concessões ao espectador mais sensível. Na época, crítica e público rejeitaram a mordacidade do argumento e o cinismo dos personagens. Diante do prejuízo da fita, e sem a permissão de Wilder, a Paramount ainda tentou mudar o título para O Grande carnaval, mas não deu certo.

Kirk Douglas faz o papel de Charles Tatum, jornalista veterano encalhado na redação de um pequeno diário no Novo México. Um dia, ele esbarra com a notícia de um soterramento em uma mina e, tentando aproveitar-se da situação, resolve adiar o resgate da única vítima, um pobre-diabo chamado Leo Minosa. Tatum deseja explorar o contato privilegiado com os personagens da história para ganhar um Pulitzer e voltar à redação de um grande jornal em Nova York. Conquista a amizade de Minosa, seduz sua pérfida esposa, chantageia o xerife da cidade e faz de tudo para que a operação de resgate demore o máximo possível. À medida que o espetáculo vai aumentando, com a chegada de caravanas de curiosos, da imprensa e diante da tragédia que se anuncia, Tatum se arrepende e tenta emendar a situação - sem sucesso.

Classificação: excelente

Cena: Cena final do filme, quando o diretor - que, afora isso, costuma preferir uma abordagem visual direta - junta o artifício das palavras a um enquadramento mais elaborado. "O que você acha de ganhar cem dólares por dia, sr. Boot? Sou um jornalista de cem dólares por dia. Você pode me contratar por nada."

Objeto de cena: Quadro bordado com a inscrição "Tell the truth" (Diga a verdade).

Frase: "Já menti muito na vida. Já menti a homens que usavam cinto. Já menti a homens que usavam suspensórios. Mas nunca fui estúpido a ponto de mentir a um homem que usa cinto e suspensórios."

 


 

Inferno n. 17
(
Stalag 17, 1953)

Um dos filmes preferidos de Wilder era A grande ilusão (La grande illusion, 1937), de Jean Renoir, obra-prima sobre um grupo de prisioneiros da Primeira Guerra Mundial. No filme, oficiais franceses tentam sobreviver num campo de concentração alemão como podem: comendo caviar, trocando gentilezas com o general (Erich von Stroheim) e planejando repetidas fugas. Em Inferno 17, o narrador já começa dizendo: “Não sei de vocês, mas sempre fico chateado com esses filmes de guerra... são todos sobre fuzileiros, patrulhas submarinas, homens-rã e guerrilhas nas Filipinas. O que me intriga é que nunca houve um filme sobre prisioneiros de guerra”.

É isso que Wilder pretende em Inferno 17, nome do campo de concentração onde sargentos americanos convivem sob as ordens do coronel von Scherbach, interpretado pelo impagável Otto Preminger. “Eu aqui tentando ser amigo de vocês e olha o que me aprontam”, ele reclama, decepcionado com uma tentativa de fuga. Há um traidor entre os americanos, e todos passam a suspeitar do amargo personagem de William Holden, o sargento Sefton. Durante as filmagens, Holden incomodou-se com o cinismo exacerbado do personagem – Sefton faz negócios com os alemães, comercializa garrafas de vinho e meias de seda, promove corridas de ratos e não é solidário a ninguém, repetindo que “isto aqui não é o Exército da Salvação, é cada um por si”.

Entre os melhores momentos do filme estão as brincadeiras dos prisioneiros com os alemães. Se comparado a Grande ilusão, o filme de Wilder é mais mordaz, porém incrivelmente engraçado e um dos melhores de sua carreira – o que não é pouco. Há uma cena em que o encarregado das notícias pede a atenção dos demais prisioneiros e anuncia: “Como disse Oberst von Scherbach, ‘já que a vitória alemã está próxima, todos os prisioneiros americanos devem saber os ensinamentos do Führer’. Fecha aspas. Nas minhas palavras... *burp*. Fecha aspas.” Isso prova que até as piadas de arroto de Wilder são refinadas.

A frase final, naturalmente, é incrível: “Talvez ele só quisesse roubar nossos alicates. Já pensaram nisso?”.

Classificação: excelente

Cena: Momento em que o traidor é revelado ao espectador. Os prisioneiros estão todos cantando “When Johnny Comes Marching Home Again” enquanto o espião deixa sua mensagem dentro da peça de xadrez. Quando Sefton acorda, ainda deitado, vê apenas a sombra da lâmpada balançando e percebe que o espião acabara de agir. A cena é muda.

Objeto de cena: Lâmpada que serve de comunicação entre o traidor e os alemães. Por meio de um nó, sinaliza-se que há “correio”.

Frase: [prisioneiro lendo carta] "Eu acredito, eu acredito! Minha esposa disse: 'Querido, você não vai acreditar, mas encontrei um bebê adorável na nossa porta e resolvi que será nosso filho. Agora você não vai acreditar, mas ele tem os meus olhos e o meu nariz.' Por que ela fica repetindo que eu não vou acreditar? Eu acredito! Eu acredito. [pausa] Eu acredito."

 


 

Sabrina
(
idem, 1954)

Toda vez que Billy Wilder empacava em uma cena, recorria a uma placa pendurada em seu escritório: "O que Lubitsch faria?". Para ele, que trabalhou no roteiro de Ninotchka (1939), do diretor alemão, Lubitsch era um gênio e muito exigente com seus roteiristas. O segredo era sempre arrumar uma forma diferente de dizer as coisas, e com estilo. "Quando entrávamos em pânico, ele corria para o banheiro e voltava com a solução. Nós nos perguntávamos se não havia uma biblioteca secreta em seus banheiros..."

Em 1954, Wilder resolveu voltar à comédia romântica, após dirigir Crepúsculo dos deuses, A Montanha dos Sete Abutres e Inferno n. 17. Para isso, utilizou seus conhecimentos no "toque Lubitsch" de fazer comédias, principalmente na sofisticação do humor e na construção do enredo.

Em Sabrina, ele filma sua versão moderna para a fábula de Cinderela: a protagonista (Audrey Hepburn) é a desajeitada filha de um chofer que se apaixona pelo patrão milionário, David (William Holden). Desiludida, ela vai a Paris e volta transformada, linda e sofisticada, atraindo tanto David quanto seu irmão mais velho, Linus (Humphrey Bogart). O filme começa com um cacoete de Wilder: a narração em off do protagonista, explicativa porém insólita. As primeiras tomadas mostram a vasta propriedade dos irmãos milionários, descrita por Audrey Hepburn: "A propriedade era, de fato, imensa, e tinha muitos empregados. Havia jardineiros para cuidar dos jardins e um cirurgião vegetal de plantão. Havia especialistas para tomar conta das dependências: da quadra de tênis externa e da quadra de tênis interna, da piscina externa e da piscina interna. E um homem sem título específico que cuidava de um lago no jardim, com um peixinho dourado chamado George".

Embora sem tanto cinismo quanto os filmes anteriores, Sabrina é bem estruturado e envolvente. Começa com "Era uma vez" e termina com final feliz. O único problema é Bogart, que não gostava de Hepburn e passa a maior parte do filme com uma expressão claramente contrariada, enquanto ela faz o possível para entretê-lo.

Classificação: ótimo

Cena: No barco, quando Sabrina se apaixona pela música "Yes, We Have No Bananas", e mais tarde, quando ela está no escritório de Linus e descobre que vai sozinha a Paris.

Objeto de cena: suflê. "Uma mulher feliz no amor deixa o suflê queimar. Uma mulher infeliz no amor esquece de ligar o forno."

Frase: "Certo. A reunião da diretoria das Indústrias Larabee será iniciada agora. Como presidente, gostaria de dizer, para começar... Ah, a presidente está tão tonta."

 


 

O Pecado mora ao lado
(
The Seven Year Itch, 1955)

Assim como Lubitsch, Wilder sempre foi muito habilidoso na luta contra o Hays Office, código moral em vigor em Hollywood de 1930 a 1968. A maioria de seus filmes era uma espécie de malabarismo arriscado sobre o precipício moral bradado pelos conservadores, a liga das senhoras, a Igreja e o Hays Office. Em entrevistas, ele declara que isso às vezes podia ser bom: "Amantes agarrados um ao outro na tela são como pretzels alemães. Nesse sentido, pra mim foi preferível filmar O Pecado mora ao lado sob as restrições da época. [...] Não podíamos mostrar pretzels, tínhamos de apelar para a fantasia do espectador." Ele cita uma frase de Karl Kraus, que diz que sátiras que o censor entende são proibidas com razão. "Nisso há algo correto: como a censura também é sempre muito tola, ela naturalmente estimula que a burlem. [...] Nós nos sentíamos desafiados pela censura. Queríamos enganá-la, ludibriá-la. Queríamos nos divertir à custa dela".

Incentivado pelo puritanismo do Hays Office, portanto, Wilder escreveu uma comédia sobre fantasias e adultério. Após despachar a esposa e o filho para as férias de verão, um editor de meia-idade, Richard Sherman (Tom Ewell), precisa enfrentar o calor de Manhattan sozinho. Até descobrir que a nova vizinha de cima é uma garota interiorana de 22 anos, interpretada por Marilyn Monroe.

Durante todo o filme, Sherman se vê mortalmente dividido entre a fidelidade que tanto preza e seus impulsos sexuais com a bela vizinha, gerando situações cômicas, como a cena em que ela singelamente revela que, no calor, costuma guardar suas calcinhas na geladeira. Ou quando ela conta que estava tentando dormir dentro da banheira quando prendeu o dedão na torneira – e o encanador teve de socorrê-la. "Lá estava eu com um encanador que era um perfeito estranho, e sem esmalte nas unhas do pé!".

Classificação: ótimo

Cena: A clássica imagem de Marilyn Monroe em cima da grade do respiradouro do metrô, com o vestido branco levantado, foi filmada na esquina da Lexington Avenue com a 52nd Street à uma da manhã, enquanto 5 mil curiosos acompanhavam a atriz esquecendo repetidamente suas falas. A cena teve de ser refilmada em estúdio por causa do barulho da multidão – mais uma vez, foram necessários quarenta takes até Marilyn Monroe acertar o diálogo.

Objeto de cena: Tomateiro que cai do andar de cima.

Frase:
Vizinha:
Você tem filhos?
Richard Sherman:
Não. Nenhum. Sem filhos. Quer dizer, só um. Bem pequenininho. Praticamente não conta.

 


 

Águia solitária
(
The Spirit of St. Louis, 1957)

Águia solitária é considerado o filme mais estranho de Billy Wilder. Mal parece ter sido dirigido e roteirizado por ele. Baseando-se na biografia do aviador transatlântico Charles Lindbergh – a Águia Solitária –, Wilder e o co-roteirista Wendell Mayes falharam em dar complexidade ao personagem e transformar a primeira travessia do Oceano Atlântico numa ação dramática. Conservador, o herói da aviação era considerado por muitos anti-semita e simpatizante do nazismo. Já o judeu Wilder tinha a mente "repleta de lâminas afiadas". Juntos, nunca tocavam em assuntos espinhosos, e isso deve ter contribuído para o distanciamento entre o realizador e seu tema.

Conta-se que Wilder e Lindbergh estavam num voo de Nova York a Washington quando o avião passou por uma turbulência terrível. O diretor voltou-se para Lindbergh e disse: "Sr. Lindbergh, seria incômodo para o senhor se nosso avião caísse e amanhã as manchetes dos jornais dissessem: 'Águia Solitária cai com seu amigo judeu'". Lindbergh apenas sorriu, mostrando os dentes.

Para Wilder, outra dificuldade era que o livro não lhe dava nenhum espaço para trabalhar. Uma das cláusulas do contrato era que o roteiro se limitasse estritamente ao texto da autobiografia. Ainda assim, as filmagens do voo, da decolagem e da aterrisagem em Paris são impressionantes.

Classificação: regular

Cena: Durante a travessia solitária, Lindbergh conversa com uma mosca. Mostra seus mapas e discute os planos de viagem com a colega, até que, no último trecho de terra antes do vasto oceano, pergunta se ela não preferiria arrumar uma boa lata de lixo ali mesmo, em St. John's – a mosca parece concordar e some pela janela.

Objeto de cena: Medalha de São Cristóvão

Frase:
Investidor: "O senhor há de compreender uma coisa: antes que o Globe Democrat possa concordar como patrocínio, precisamos ter certeza absoluta de que não estamos financiando um suicídio.
Lindbergh: Bem, a ideia de suicídio nunca me passou pela mente. Exceto talvez quando aceitei fumar este charuto.

 


 

Amor na tarde
(
Love in the Afternoon, 1957)

Em entrevistas, Billy Wilder dizia que a receita de um bom roteiro está no enredo. "Atmosfera, intriga, ela vai matá-lo, ele vai matá-la, meu Deus, o que irá acontecer com o filho ilegítimo... não interessa o quê, mas que agarre o espectador", ele afirmava. Nesta comédia romântica de duas horas e dez minutos de duração, Wilder agarra o espectador com um enredo minuciosamente esculpido: Ariane Chavasse (Audrey Hepburn) é a filha de um detetive particular (Maurice Chevalier) que investiga casos de adultério. A inocente Ariane se envolve num desses casos, o de Frank Flannagan (Gary Cooper), um solteirão mulherengo que se hospeda no Ritz e seduz mulheres casadas. Ariane se apaixona pelo americano e, para provocar ciúmes, inventa que é uma mulher experiente.

Numa das melhores cenas do filme, Frank ouve uma gravação muito séria sobre quantos homens Ariane já teve na vida: "Aqui vai uma lista daqueles de que me recordo". São dezenove itens que começam com um professor de álgebra ruivo e terminam com um alcoólatra holandês, passando por um rapaz adorável que agora é missionário na África Equatorial Francesa e um guia alpino de joelhos bonitos. Aos poucos, Frank vai ficando mais indignado e segue-se uma cena muda, à la Lubitsch, em que ele compartilha a bebida com o quarteto de músicos ciganos. Estes, aliás, têm um papel importante na trama: muitas das canções substituem cenas diretas ou explicações do que está acontecendo atrás da porta.

Filmado em preto-e-branco, Amor na tarde foi um fracasso de público e crítica, talvez por causa da diferença de idade entre os protagonistas (28 anos). A má fama é injustificada. Trata-se de uma ótima comédia romântica do diretor, com um certo ar antigo, mas cheia de malícia.

Classificação: bom

Cena: Ariane perde um dos sapatos ("tem certeza de que você veio com os dois?") e o procura debaixo da mesa, com a ajuda de Frank.

Objeto de cena: a caixa do violino

Frase:
Ariane: "Quando você trabalha?"
Frank: "Quando não estou ocupado."

 


 

Testemunha de acusação
(
Witness for the Prosecution, 1957)

Há quem diga que Testemunha de acusação é um dos melhores filmes de Hitchcock – só que dirigido por Billy Wilder. É um drama de tribunal com atores excelentes, roteiro baseado em peça de Agatha Christie e uma sucessão desconcertante de reviravoltas. O enredo é tão milimétrico que, por mais que se reveja o filme, sempre somos pegos de surpresa por um twist, já que Wilder é mestre em fazer parecer uma coisa enquanto chama a atenção para outra.

A trama começa com a morte de uma viúva e subsequente condenação de seu jovem amante, interpretado por Tyrone Power. Por azar, ele é casado com a malévola Marlene Dietrich, de quem depende toda a credibilidade do seu álibi. Ele contrata um experiente criminalista para defendê-lo: é Charles Laughton, numa estrondosa atuação indicada ao Oscar.

O papel do velho advogado concentra em si todos os exageros verbais e visuais do filme: uma de suas peculiaridades é o “teste do monóculo”, no qual direciona o reflexo de seu monóculo enquanto criva de perguntas o acusado. Assim ele descobre se o sujeito está dizendo a verdade. O personagem é grandiloquente e teve a colaboração intensa de seu próprio intérprete – para Wilder, o melhor ator com quem já trabalhara. “Laughton podia revirar fundo no seu talento, como uma criança alegre revira um baú cheio de quinquilharias”, afirmou, revelando que o ator britânico era capaz de dar dezenas de versões da mesma cena. As mesmas palavras, mas numa interpretação totalmente diferente.

Classificação: excelente

Cena: Aos dezessete minutos, a cena que mostra como o réu e a vítima se conheceram. Ela experimenta chapéus dentro da loja e ele os aprova silenciosamente, do lado de fora do vidro.

Objeto de cena: Os comprimidos de remédio dispostos em fileira pelo advogado, que os reorganiza com desdém enquanto faz suas objeções ao juiz.

Frase: Submetida ao teste do monóculo, a impassível personagem de Dietrich exclama: “Você está queimando o meu nariz”.

 


 

Quanto mais quente, melhor
(
Some Like It Hot, 1959)

Uma das melhores comédias de todos os tempos, Quanto mais quente melhor tem um roteiro perfeito: Jack Lemmon e Tony Curtis são dois músicos desempregados que testemunham um massacre promovido pela máfia e são obrigados a fugir de Chicago. Sem dinheiro, decidem se disfarçar de mulheres e entrar para uma banda feminina que segue viagem até a Flórida. Marilyn Monroe é uma desiludida tocadora de uquelele e vocalista da banda, por quem o personagem de Tony Curtis se apaixona.

Comediante nato, Jack Lemmon ficou muito à vontade no papel de Daphne. No intervalo das filmagens, rebolava e conversava no refeitório com um sorriso doce. Foi indicado ao Oscar pelo papel e perdeu para Charlton Heston - "talvez tivesse ganhado o prêmio se fosse indicado para melhor atriz", diz Wilder.

A cena de abertura segue à risca um dos principais mandamentos de Wilder: é preciso pegar o público pelo pescoço, não soltá-lo mais, não deixá-lo pensar em mais nada. Para ele, quando estamos numa mesa em que muitas pessoas estão conversando, é preciso aproveitar uma breve pausa e dizer: "Já contei para vocês como matei as cinco senhoras em Estocolmo?". "É assim que se pode ter certeza de ter a atenção de todos", diz. "Também é assim que imagino o público do cinema. Quando estão assistindo e ouvindo algo, os espectadores têm de esquecer tudo, têm de deixar os talheres de lado. Talvez unicamente por isso muitos de meus filmes comecem já com uma narração construída sobre a expectativa."

Neste caso, o tiroteio inicial entre a polícia e um carro funerário deixa o espectador se perguntando o que diabos está em jogo. Alguns tiros furam o caixão e de dentro jorra um certo líquido – o letreiro diz: "Chicago, 1929". Nada mais precisa ser dito. O caixão traz garrafas de uísque para um bar clandestino tocado por um tal "sr. Mozzarela" dentro de uma funerária, onde os protagonistas tocam jazz. A máfia, a bebida, a música e a polícia: os personagens estão lançados.

Classificação: excelente

Cena: No diálogo em que Jerry diz: "Estou noiva!", o público ria tanto que as gargalhadas encobriam as falas. É por isso que Wilder precisou adicionar as maracas, como uma forma de dar um respiro para o público.
Jerry: "Estou noiva!"
Joe: "Quem é a garota de sorte?"
Jerry: "Eu!"

Objeto de cena: Maracas

Frase: "Ninguém é perfeito." A fala, que se tornou uma das mais emblemáticas do cinema, foi mantida "por falta de alternativa melhor. Por pura preguiça", explica Wilder, que escreveu o roteiro deste clássico com I. A. L. Diamond.

 


 

Se meu apartamento falasse
(
The apartment, 1960)

É talvez o filme mais equilibrado de Wilder, sem grandes exageros nas situações de comédia (como em Irma La Douce), no drama (Farrapo humano), na pompa (Crepúsculo dos deuses) ou na maquiagem (Quanto mais quente melhor). O enredo, feito de pequenos momentos, se concentra em C. C. Baxter (Jack Lemmon), pacato funcionário de uma seguradora que mora sozinho num apartamento. Seria uma vida normal, não fosse um detalhe: todas as noites, ele empresta sua chave para que os chefes possam se divertir com as amantes. A notícia se espalha entre os executivos e chega ao diretor da firma, sr. Sheldrake (Fred MacMurray), que aproveita para levar ao apartamento a doce ascensorista Fran Kubelik (Shirley MacLaine). Porém, ele não dá a mínima para a moça que, na véspera de Natal, tenta o suicídio no apartamento – deixando a Baxter alguém para cuidar.

Se meu apartamento falasse era o favorito de Wilder, junto com A montanha dos Sete Abutres. É muito simples e melancólico, um pouco como sua fotografia em preto-e-branco. É também mais lento que os outros filmes. Aqui, as emoções são suaves, quase sem forças; por exemplo, a tristeza de MacLaine não passa de um espelhinho quebrado que ela gosta de manter na bolsa, pois é o reflexo de como se sente. Ela também diz, em seu momento mais desolador: "Como eu pude ser tão burra? Já devia ter aprendido: se você gosta de um homem casado, não deve usar rímel". Já a paixão de Lemmon é retratada pelo entusiasmo com que ele faz espaguete "para dois" ou pela diligência com que tenta animar MacLaine: "Srta. Kubelik, ninguém aqui chega a segundo assistente administrativo sem ser um bom juiz de caráter, e pelo que sei, você é o máximo. Quer dizer, em termos de decência e em termos de outros termos".

Classificação: excelente

Cena: Partida de gin rummy, que começa quando Jack Lemmon, empolgado, vai buscar as cartas e conta o que fez no Natal anterior: jantou cedo numa loja de conveniências, foi ao zoológico e depois voltou para limpar a sujeira da festa do sr. Eichelberger. "Estou bem melhor este ano!"

Objeto de cena: Raquete de escorrer macarrão do Jack Lemmon

Frase: "Você ouviu o que eu disse, srta. Kubelik? Eu simplesmente te adoro."
"Cale a boca e dê as cartas." (no original, "Shut up and deal".)

 


 

Cupido não tem bandeira
(
One Two Three, 1961)

Em 1961, Billy Wilder foi a Berlim filmar o terceiro ato de Cupido não tem bandeira. Na história, a filha do chefão da Coca-Cola fica noiva de um comunista de Berlim Oriental, durante uma viagem de férias à capital alemã. Apavorado, o encarregado da filial germânica (James Cagney) se vê obrigado a encobrir o fato e transformar o rapaz num orgulhoso capitalista aos olhos do sogro.

Wilder acabara de dar início à última etapa de filmagens no Portão de Brandenburgo quando foi surpreendido pela construção do Muro de Berlim. O que era para ser uma comédia farsesca se transformou em tragédia – ninguém mais achava graça num lugar onde as pessoas eram mortas tentando ultrapassar a fronteira. Por isso, na época, o filme foi um fracasso.

Hoje é considerado cult, uma farsa de primeira classe escrita em ritmo alucinante. A verve e o timing do ator principal também ajudaram: ele passa o filme inteiro esbravejando com o casal de noivos e fala tão rápido que quase não há tempo para respirar. Wilder fez uma única anotação de direção no topo do roteiro, que foi seguida à risca: "Esta obra é para ser filmada em ritmo molto furioso. Velocidade sugerida: 170 km/h - nas curvas - e 220 km/h nas retas."

O co-roteirista de Cupido não tem bandeira foi o lendário I.A.L. Diamond – segundo Wilder, "o melhor colaborador desde Quisling".

Classificação: regular

Cena: Numa espécie de prévia à dança de Shirley MacLaine em Irma La Douce, a secretária alemã (Lilo Pulver) tira os sapatos, sobe na mesa do bar e dança para a delegação russa que representa o Secretariado dos Refrigerantes.

Objeto de cena: garrafa de Coca-Cola. "Eu simplesmente acho muita graça na Coca-Cola. Ao bebê-la, acho mais graça ainda", declarou o diretor.

Frase:
Peripetchikoff: "Você sabe o que acontece se eu deserdar? Eles enfileiram a minha família num muro e a fuzilam! Minha esposa, minha sogra, meu cunhado, minha cunhada... [Faz uma pausa.] Vamos lá!"

 


 

Irma La Douce
(
idem, 1963)

Em Irma La Douce, Billy Wilder traz de volta a dupla Jack Lemmon e Shirley MacLaine (Se meu apartamento falasse), num roteiro que MacLaine nem sequer leu antes de aceitar o papel – ela apenas confiava na dupla Lemmon e Wilder. Nesta comédia, Nestor Patou (Jack Lemmon) é um policial honesto e ingênuo que acaba se apaixonando por Irma La Douce (Shirley MacLaine), a prostituta local. Após confrontar Hippolyte, "o Boi", acaba virando o cafetão de Irma, mas há um problema: ele é ciumento. Não suporta ver Irma com outros homens. Desesperado, Nestor encontra uma saída: "Irma vai ter um amante rico, e serei eu!". O policial se disfarça de lorde inglês e vira o único cliente de Irma, mas a exclusividade lhe custa caro e ele passa a ter ciúmes do lorde, ou seja, de si mesmo. Então planeja matá-lo.

Segundo o trailer, é uma "história de paixão, sangue, desejo e morte, ou seja, tudo o que faz a vida valer a pena". Apesar de não ter sido reconhecido pela crítica, Irma La Douce foi um dos grandes sucessos de bilheteria do diretor, e só não vingou na França. É uma comédia romântica, sim, mas muito incomum; são 147 minutos de um enredo absurdo e delirante, em que os roteiristas Billy Wilder e I.A.L. Diamond parecem querer, a toda hora, atingir o limite de loucura a que a situação poderia levar. E acreditem, a tolice amorosa de Jack Lemmon vai longe.

Um dos destaques do filme é o dono do bar, Moustache (Lou Jacobi), que comprou o estabelecimento já com o nome Chez Moustache e, portanto, achou mais barato deixar crescer o bigode do que comprar outro letreiro. Segundo as autoridades, é um ladrão de galinhas romeno chamado Constantinescu, foi professor de economia na Sorbonne, crupiê em Montecarlo, coronel da Legião Estrangeira em Marrakesh, soldado em Dunquerque, um dos maiores advogados criminalistas da França e chefe da obstetrícia na África Equatorial Francesa com o dr. Schweitzer..., "mas isso é outra história".

Classificação: bom

Cena: Shirley MacLaine dançando em cima do balcão do bar, com os sapatos na mão.

Objeto de cena: meias verdes de Shirley MacLaine

Frase: Irma: "Um pintor morou aqui. Coitado, passava muita fome. Tentou de tudo, até cortou a orelha fora."
Nestor: "Van Gogh?"
Irma: "Não, acho que o nome dele era Schwartz."

 


 

Beija-me, idiota
(
Kiss Me Stupid, 1964)

O argumento é ótimo: numa cidadezinha chamada Climax, um organista de igreja e um mecânico são compositores nas horas vagas. O organista, Orville J. Spooner (Ray Walston), é casado com a bela Zelda (Felicia Farr), de quem morre de ciúmes. Dean Martin interpreta o cantor Dino, seu alter-ego famoso e mulherengo, que, numa viagem de carro de Las Vegas a Hollywood, é obrigado a fazer um desvio por conta de obras na pista e acaba parando em Climax. Percebendo a oportunidade de vender suas canções, o mecânico sabota o automóvel de Dino e anuncia que só poderá consertá-lo no dia seguinte, obrigando-no a pernoitar na cidade.

Dino vai parar na casa do organista ciumento, que, sentindo seu casamento ameaçado, decide expulsar a própria esposa de casa (ele simula uma briga) e contratar uma prostituta para seu papel. Kim Novak é Polly the Pistol, a prostituta gripada e bondosa que desempenha o papel de dona de casa soberbamente. Durante o jantar, Orville vende suas canções enquanto Dino flerta com Polly. Nesse meio-tempo, Zelda volta pra casa e vê o marido às voltas com a prostituta. Ela mesma acaba indo beber na boate de Polly e posteriormente cai no sono no trailer da rival – onde Dino vai parar no fim da noite. Os papéis, portanto, são trocados. Orville não suporta ver o cantor com sua suposta esposa e acaba ficando em casa com ela. Há adultério de ambas as partes.

Naturalmente, a censura foi implacável. A obra foi chamada de "gigantesca piada suja", "insignificância repulsiva, presunçosa", "sórdida" e "grosseira". Foi um fracasso de público e crítica, embora seja bem construída feito um quebra-cabeças.

Classificação: regular

Cena: À moda de Shirley McLaine em Irma La Douce e Lilo Pulver em Cupido não tem bandeira, Kim Novak tira os sapatos e dança de meia-calça, erguendo os pés pra trás e balançando os braços. Esse tipo de dancinha bêbada parece ser uma obsessão de Wilder, e é mesmo muito divertida. Nesta cena, Orville e Dino bebem vinho dentro dos sapatos de salto de Polly, e é bem quando a esposa aparece na janela – mas ela só vê o marido e a prostituta.

Objeto de cena: Manequim com as medidas da esposa de Orville

Frase: "Estou procurando o umbigo da minha mulher."

 


 

Uma loura por um milhão
(
The Fortune Cookie, 1966)

Em sua primeira parceria cinematográfica com Walter Matthau, Jack Lemmon faz o papel de Harry Hinkle, operador de câmera que sofre uma trombada de um jogador durante um jogo de futebol americano. O acidente não tem consequências sérias, mas o cunhado de Hinkle, Willie Gringich (Matthau) sente a oportunidade de extorquir dinheiro da seguradora. Hinkle, por sua vez, vê no incidente uma chance de ter sua ex-esposa de volta, por isso passa a fingir uma paralisia nos braços e pernas e precisa enganar médicos, advogados e o próprio jogador que causou o acidente, um bondoso rapaz que se sente cada vez mais culpado e põe sua própria carreira em jogo. O antagonismo entre a ganância da ex-esposa e o altruísmo do jogador é um dos pontos interessantes do filme, que é, contudo, desigual e cansativo.

Um dos trunfos de Uma loura por um milhão é o personagem de Matthau, um advogado inescrupuloso e mesquinho, desses que abrem um processo contra a United Fruit Company quando um cliente escorrega numa casca de banana. "Eles têm tanto dinheiro que precisam microfilmá-lo", afirma. Durante as filmagens, o ator sofreu um ataque cardíaco e a produção foi adiada até que se recuperasse. A perda de peso é evidente em certas cenas.

Após uma determinada tomada, Wilder, com seu humor ácido, diz a Matthau: "Ótimo. Estamos no caminho certo para algo absolutamente medíocre."

Classificação: regular

Cena: Em negociação com os advogados da seguradora, Gringich age com notável pouco-caso. Enquanto os rivais aumentam a oferta, ele lhes oferece todo tipo de besteira: "Os senhores aceitariam um café expresso? Um chocolate quente? Ovomaltine? Suco de chucrute? Sardinhas sem pele? Bala de caramelo? Iogurte de baixa caloria? E uma pizza de calabresa?" Um dos advogados recusa, dizendo que está tomando Metrecal (um remédio para emagrecer). Matthau abre o armário do banheiro e lamenta: "Metrecal acabou, mas tenho Bufferin, Pepto-Bismol, Mercurocromo..." Naturalmente, ele acaba levando a melhor na negociação.

Objeto de cena: Buzina da cadeira de rodas, que às vezes serve como alívio cômico.

Frase: "Você conhece o Willie. Ele encontraria uma brecha jurídica nos Dez Mandamentos."

 


 

A Vida íntima de Sherlock Holmess
(
The Private Life of Sherlock Holmes, 1970)

Desde o sucesso de Irma La Douce, Wilder planejava rodar um filme sobre Sherlock Holmes, que devia ser ora um musical, ora uma película de época. Pensado como uma antologia dos casos mais delicados e secretos de Holmes, o primeiro corte possuía três horas e meia e teve de ser encurtado em setenta minutos. "Quando fui ver a edição, era um desastre absoluto. O prólogo inteiro foi limado. Assisti à nova versão com lágrimas nos olhos [...]. Era o filme mais elegante que já fiz."

Nele, o detetive (interpretado por Robert Stephens) é procurado por uma misteriosa dama (Geneviève Page) cujo marido desapareceu. Durante a investigação, ambos se envolvem numa trama de espionagem passada na Escócia, com a participação da rainha Vitória e da inteligência britânica. (Cristopher Lee faz o papel de Mycroft, irmão de Sherlock, e Colin Blakely é um desastrado Watson.)

O Sherlock de Wilder é dramático, solitário, envolvido por uma melancolia e esnobismo à la Oscar Wilde. O filme tem uma delicadeza britânica e pouquíssimas tiradas cômicas, ainda assim, o diretor o considerava "bastante pessoal". É lento, belo e bastante interessante. Prova da versatilidade dramática de Wilder.

Classificação: bom

Cena: Enterro de anões.

Objeto de cena: Guarda-chuva da sra. Valladon

Frase: "Não seria irônico se o último caso de Sherlock Holmes fosse um caso de pneumonia?"

 


 

Avanti... Amantes à italiana
(
Avanti!, 1972)

“Felicidade é trabalhar com Jack Lemmon”, dizia Billy Wilder, que, em 22 anos, dirigiu sete filmes com o ator. Em Avanti!, Lemmon contracena com a inglesa Juliet Mills, que ainda por cima possui uma notável semelhança com Shirley MacLaine – ela própria admite que a atriz norte-americana é uma de suas favoritas. Lemmon é Wendell Armbruster, empresário que vai a Itália reclamar o corpo do pai, morto em um acidente de carro. Lá, descobre que o honesto progenitor, casado, morrera nos braços da amante, com quem se encontrava num hotel italiano todos os verões havia pelo menos dez anos. Além disso, Armbruster Jr. conhece a filha da amante, Pamela Piggott, que também viajara até lá para reaver o corpo da mãe.

Começa aí uma comédia exagerada que se estende por 143 minutos, talvez longos demais, mas que traz uma novidade. Neste caso, o diretor não faz esforços para abrandar o mote sexual da trama: logo de saída, o personagem de Lemmon entra no quarto do pai e encontra uma camisola feminina. “They were making it”, exclama [Estavam transando], e daí pra frente Armbruster Jr. segue cada vez mais firmemente os passos do pai adúltero, sem que haja qualquer julgamento moral ou relutância por parte dos roteiristas. Tanto que, no final, o empresário concorda em manter reservado o quarto no hotel italiano para os próximos verões, a fim de se encontrar com a nova amante.

Também o retrato que se faz dos italianos é impagável: gente lasciva que sabe viver, tem três horas de almoço por dia e nunca está com pressa. “O legista come muito bem. Ele conhece todas as viúvas da cidade”, afirma o diretor do hotel, interpretado por Clive Revill. A vívida e constante presença do pai falecido também é um trunfo do roteiro de Wilder e I. A. L. Diamond, que se estrutura em torno da identidade secreta de um homem que, já morto, acaba transformando a vida do filho.

Classificação: regular

Cena: Cena inicial do filme, muda, em que o personagem de Lemmon entra com um homem no banheiro do avião, sob os olhares atônitos dos passageiros e da tripulação.

Objeto de cena: As meias que Armbruster veste enquanto está pelado nas pedras da praia. “As meias pretas. É porque você está de luto?”

Frase:
Pamela: "Gostaria que me reencontrar com você ano que vem, no saguão da loja de souvenires. Prometo que estarei tão magra!"
Wendell: "Srta. Piggott, perca um quilo, só um quilo, e está tudo terminado entre nós."

 


 

A Primeira página
(
The Front Page, 1974)

Antepenúltimo filme de Wilder, A Primeira página é uma das inúmeras adaptações para o cinema da peça homônima de Ben Hecht e Charles MacArthur. A mais conhecida delas é Jejum de amor (1940, Howard Hawks), com Katherine Hepburn no papel principal. Nesta versão, Walter Matthau é um rabugento editor de jornal cujo melhor repórter, Jack Lemmon, está prestes a se casar e abandonar a profissão. É claro que Matthau vai fazer de tudo para manter Lemmon no emprego, mesmo que tenha que usar os artifícios mais sujos possíveis. Quando um condenado à forca escapa na última hora, Matthau tem a oportunidade perfeita para atrair o repórter de volta à ação.

É uma comédia com grande concentração de diálogos frenéticos, cínicos e intermináveis, a ponto de ser impossível limpar os óculos durante a exibição do filme. De fato, Wilder costumava mandar os atores refazerem as tomadas, mas com uma velocidade duas vezes maior: "Me dê uma alegria, corte uma semana nessa cena". As ações ficam contidas aos intervalos entre as conversas, e nem é preciso dizer que, inspirados na peça original, os cenários são parcos, praticamente limitados à sala de imprensa da corte criminal.

A performance da dupla Jack Lemmon e Walter Matthau é impecável, com destaque para este último – simplesmente o melhor editor rabugento e canalha de que se tem notícia, com "olhinhos malvados e um nariz de pepino". Um grande filme, entre os maiores de Wilder, que não teve o reconhecimento devido.

Classificação: excelente

Cena: A inicial. Os créditos passam ao som de uma música-tema furiosa (como em Cupido não tem bandeira e Irma La Douce), enquanto na tela veem-se cenas da composição de um jornal. Quando o filme de fato começa, o espectador já está por dentro da história.

Objeto de cena: O relógio de Walter Matthau, é claro.

Frase: Um dos grandes finais de Wilder: "O filho da mãe roubou meu relógio".

 


 

Fedora
(
idem, 1978)

Dentre os grandes filmes de Wilder, Fedora é o mais negligenciado: não chegou sequer a sair em DVD nos Estados Unidos. Há uma edição espanhola à venda no eBay e algumas cópias piratas para download, em formato torrent – com alguma boa vontade, é possível achar legendas em português. Na época, o zangado Billy Wilder chegou a afirmar que o estúdio deve ter gastado “cerca de 625 dólares” na campanha de marketing.

O pouco-caso perante o penúltimo longa de Wilder não tem desculpa. Fedora é um bom melodrama com ares de epitáfio, ecoando o tema de Crepúsculo dos deuses. As semelhanças são muitas. Aqui também William Holden faz as vezes de narrador e tem que lidar com os caprichos de uma atriz decadente de Hollywood, que se recusa a envelhecer. A diferença crucial entre o sucesso e o fracasso pode ter sido, neste caso, a escalação da protagonista: em Crepúsculo dos deuses, Wilder acertou em cheio com Gloria Swanson. Em Fedora, errou estrondosamente ao escolher Marthe Keller, que não possuía nem charme e nem estilo à altura da personagem. A intenção original era escalar Marlene Dietrich, o que certamente teria sido menos desastroso.

Ainda assim, Fedora tem um roteiro clássico e grandioso. Wilder costumava dizer que isso era o mais importante: “Cineastas não são alquimistas”, afirmava. “De titica de galinha não se faz chocolate.” A narrativa é misteriosa, absorvente e se desenvolve à moda antiga. Há um mistério que vai ganhando força ao longo da trama e que, de forma bem wilderiana, vai se revelando a partir de pequenas coisas – no caso, as luvas de Fedora.

Classificação: ótimo

Cena: Flashback gerado pela carta do protagonista a Fedora. Primeiro, ele redige um texto longo no qual relembra, em minúcias, seu romance com a atriz. Em seguida, queima o papel e reescreve tudo em três linhas. “Querida sra. Fedora, este é o roteiro que mencionei esta manhã. Estou à espera de suas notícias. Sinceramente, Barry Detweiler.”

Objeto de cena: as luvas de Fedora.

Frase: No final, ao ser avisado de que era preciso guardar segredo, o personagem de William Holden diz: “Que pena. Este roteiro é muito melhor do que aquele que eu havia trazido pra você”.

 


 

Amigos, amigos, negócios à parte
(
Buddy Buddy, 1981)

Buddy Buddy é o último filme de Billy Wilder. Em entrevistas, o diretor afirma que sempre quis trabalhar com Stan Laurel e Oliver Hardy (O Gordo e o Magro), mas acabou encontrando sua própria dupla de cômicos: Jack Lemmon e Walter Matthau. Eles são os protagonistas deste remake do longa franco-italiano de Édouard Molinaro, cujo título em francês é L’emmerdeur (o maçante).

Lemmon é o maçante do título que, abandonado pela mulher, não consegue lograr uma simples tentativa de suicídio. Matthau é um gélido matador de aluguel contratado pela máfia para alvejar uma testemunha de acusação da janela de um hotel. Eles estão hospedados em quartos contíguos e, visto que o suicídio inviabilizaria os planos de assassinato, Matthau tem que consolar o infeliz e ajudá-lo a reaver a esposa. Aí está o paradoxo cômico-macabro do enredo: o matador tem que salvar uma vida para poder acabar com outra. “Está cada vez mais difícil gostar de você”, diz Matthau para o vizinho.

A química perfeita entre os atores, a acidez dos diálogos e o sarcasmo das cenas relativas à clínica sexual do personagem de Klaus Kinski – uma grávida chega em trabalho de parto e alguém protesta: “Isso aqui é uma clínica de sexo, não tratamos do produto final” –, todos esses elementos tornam evidente a paternidade desta comédia. “Os dois primeiros foram extrações simples. Este aqui é um verdadeiro canal”, exclama o sr. Trabucco, pedindo um aumento aos mandantes do crime, à la Billy Wilder.

Classificação: bom

Cena: Matthau especula sobre sacrifícios humanos, no final do filme.

Objeto de cena: A arma desmontável.

Frase: Matthau, sobre as mulheres: “Conheci um cara que teve dois ataques cardíacos e precisou de um marcapasso. Sua esposa pediu o divórcio porque estava interferindo na recepção da tevê.”

 


God is coming.
Look busy.



2005 Vanessa Barbara