A Hortaliça

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Cruzes!
Edição #011, de 17 de março de 2002.
Servindo a comunidade desde a abolição da bola de gude.
Classificação: cheira a guardado

hortalica@gmail.com
Parece um cesto de amoras (Aristóteles)

 

"Elucide, meu amigo, e me fará um favor"
(Cortázar)

 

ELEGIA 1938
Drummond
 

Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,
onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo.

Praticas laboriosamente os gestos universais,
sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.

Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas,
e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção.
À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze
ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas.

Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra
e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.
Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina
e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.

Caminhas entre mortos e com eles conversas
sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito.
A literatura estragou tuas melhores horas de amor.
Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.

Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota
e adiar para outro século, a felicidade coletiva.
Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição
porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.


:: O PALHAÇO DA ASA ::
Clássico da literatura realista, por Stephanie Avari

"Senhores passageiros: Pedimos por demência, quer dizer, clemência, favor não matar o palhaço da asa, pois o mesmo se encontra na asa por motivos de segurança..."

Assim dizem os cartazes dos aviões, após este trágico relato...

Esta é a história que podia ser verídica na vida do jovem e não muito astuto... hummm... Chonny (o nome foi mudado, a fim de preservar a identidade de nosso personagem irreal), que durante um vôo rotineiro de Burundi a Tocantins pensou ter visto um palhaço na asa do avião.

- Com mil pinhões! Há um palhaço na asa! Aeromoça, tem um palhaço na asa do avião! Aeromoça!
- Senhor, talvez devesse descansar. Não há nada com o que se preocupar.
- Mas por Tutatis, tem um palhaço na asa! Faça algo a respeito!
- Trarei um cobertor e uma acelga, talvez isso o acalme.

Mas o bravio Chonny resolveu tomar uma providência, e arremessou-se para fora do avião (veja bem que o problema de pressão do ar nos aviões é somente para nós, mortais! Deixe Chonny em paz!) e começou a lutar bravamente com o palhaço.

Munido de uma acelga e um cobertor, Chonny petelecava verdurídeos na testa do pobre palhaço, este podendo apenas se defender com um sapato anil e amarelo extremamente grande e um nariz vermelho de plástico, enquanto dizia:

- Mas... não....mmmffff....

Quando o palhaço caiu da asa e abriu seu pára-quedas de bolinhas roxas, Chonny, o orgulhoso, voltou para sua poltrona, quando viu uma agitação acontecendo e palavras desconexas como: "derrubar... palhaço... asa... caindo... pingüim... chinchila carcomida..."

E, achando que seria algo bonito a fazer, contou sua proeza. Ao terminar, a aeromoça disse:

- Tonto! Como pôde derrubar o palhaço da asa? -- Nesse mesmo momento Chonny viu, no outro lado do avião, outro palhaço, na perpendicular -- como você espera que o maldito avião fique equilibrado???


:: CORVOS, QUASE GENTE! ::
o Reader's Digest dá os títulos e nós completamos as matérias. Lindo.

Querido Damião,

Ontem preenchi os papéis do crediário. Em breve terei um par de lindas luvas de pelica, para vestir minhas patas e poder enfim saracotear em superfícies ásperas, o que considero uma evolução glorificável de nossa espécie sofrida. Mas creio que isso não venha te interessar, ó amigo de longa data. Escrevo para pedir-lhe que sintonize, agora, seu aparelho televisor no canal 82, e ajuste a antena com muito esmero. Vês as imagens da passeata? Pois aquele, de negro, ali atrás, bicando o queixo do presidente, sou eu, meu amigo. Vc pode ver, se prestar bastante atenção, aquele senhor grisalho tentando se livrar de minha pessoa passarácea, e um grupo de seguranças se retorcendo no chão, sofrendo com titica no olho. Pois fiz duas investidas agudas no queixo de Vossa Excelência, depois parti para bicadas na nuca, e logo em seguida golpeei suas orelhas e face esquerda do rosto com vigorosas batidas de asa, que provocaram aqueles hematomas arroxeados que vc pode ver no vídeo. Em seguida, quando um popular (o de amarelo, com cara de tamanduá, à esquerda do logotipo da Kaiser) veio em socorro da autoridade, apenas cravei uma de minhas patas na narina do cidadão e ele veio ao chão, para alegria espetacular dos demais transeuntes que se divertiam a valer com a cena. Ao som de "enforca ele! enforca ele!", tentei circundar o pescoço do político com minhas penas cintilantes, mas ele valeu-se de uma técnica chinesa e chutou-me a barriga, a causar uma dormência terrível em meus carcomidos órgãos internos. Veja que até o câmera está gargalhando com a cena, e o senhor de azul marinho se aproximando do meu corpo momentaneamente inerte é o dono de uma emissora de TV, propondo-me um emprego de apresentador de reality show.

Depois de olhar com desdém ao moço de terno, e cuspir uma substância venenosa em sua direção, voltei a atacar o presidente com toda minha virulência corvídea até que os helicópteros da Swat chegaram e tive que me retirar, vencedor. Ainda lancei perdigotos à multidão, aclamado. Do hospital, a Autoridade falou em Rede Nacional que iria aumentar os benefícios de nossa classe corval, e lamenta muito o sofrimento que nos fez passar nesses 2000 anos de administração humana. Ele ainda respira com a ajuda de aparelhos, mas em breve irá renunciar da presidência e espero ser convidado para integrar o Triunvirato Governal do nosso país, com a ajuda de uma amiga gralha e um distinto representante da minoria urubu, todos devidamente limpinhos e eloqüentes perante as câmeras.

Deseje-me sorte, e não se esqueça de dar comida ao humano enquanto eu estiver fora.

Mui penosamente,
Parvo, o Corvo.


:: BANALIDADES ::
por LF Verissimo

Nada me impressionou tanto no relato que li um dia sobre a queda de Berlim na II Guerra Mundial como saber que, enquanto os russos abriam caminho nos escombros, em certa partes da cidade em que havia casas de pé, o leiteiro continuava a entregar leite e o carteiro continuava a entregar cartas. Assim como a consciência sobrevive ao desumano, a inconsciência humana também tem o misterioso poder de prevalecer no caos.

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É confortador saber que o caos nunca será completo, ou tão completo que soterre a rotina. Ainda mais no Brasil de hoje. Ao mesmo tempo, há algo de perturbador na persistência ilógica do corriqueiro, do leite e da correspondência, num mundo em ruínas.

Anedota: um homem chega num hospital com uma lança cravada no peito. Aquilo deve estar incomodando muito, comenta a enfermeira, enquanto preenche todos os formulários do Inamps.

-- Não, não. Só é ruim pra dançar.

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É a necessidade de que a vida e os serviços sigam seus trâmites que protege as sociedades do auto-aniquilamento. Mas há pouco consolo em saber que, no fim, devemos nossa civilização à preservação da banalidade.

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São as idéias justas ou os grandes delírios que movem os conflitos humanos, mas tanto a consciência como a loucura devem deferir a limpeza pública. Alguém tem que limpar a sujeira depois deles.

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Os leiteiros e os carteiros de Berlim são louváveis heróis da resistência do cotidiano ao caos. Mas também redimem o caos. Podem explicar seu heroísmo inconsciente com a mesma frase usada pelas gestapos do mundo inteiro. Também estavam apenas cumprindo ordens.

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O lema deste século: Estávamos apenas cumprindo ordens.

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Hannah Arendt falou que o maior crime do século foi a banalização do mal. Crime pior é o da banalidade triunfante, do cotidiano reincidente que cobre os holocaustos como se nada tivesse acontecido, ou como distúrbios passageiros. Tudo volta tragicamente ao normal. Convivemos com a memória de Auschwitz e Hiroxima com a mesma naturalidade com que convivemos com a fome do vizinho. Em vez de transformar a autoconsciência humana, os holocaustos a insensibilizaram. Só o que aconteceu foi que passamos a desconfiar um pouco mais das nossas utopias. Só é ruim pra dançar.

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O otimista quis convencer o cético de que seu ceticismo era exagerado.
Deu-lhe pra ler tudo o que encontrou a favor do homem. Tomos e tomos. O cético leu tudo.
- E então -- perguntou o otimista -- se convenceu?
- Sei não... -- disse o cético.
- Mas estão aqui. Tomos e tomos.
- Mas todos escritos por gente. Aliás, tudo de bom que eu ouvi até hoje sobre a espécie humana foi dito por seres humanos. Eu queria uma opinião independente!

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Temos um álibi. Estávamos apenas cumprindo o nosso código genético.

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Somos capazes desses crimes, e de continuar entregando o leite e as cartas ao mesmo tempo. Somos, decididamente, uma espécie estranha.


:: LIVROS QUE DARIA AO ANÃO RUMPELSTILSTKIN ::
por Carlos Raasch, sempre corajoso.

"Eu daria um daqueles livrinhos de piadas, ou melhor, aqueles aglomerados de tiras de quadrinhos, assim seu humor melhoraria, já que sua vida se resume a ver a princesa fiar ouro, o que deve ser tão chato quanto ficar sentado 2 horas na frente do micro esperando um e-mail que deveria ter chegado 2 horas antes, chegar."

Pergunta da próxima semana: Qual a primeira coisa que vc faria se fosse um Livro de Receitas?

Mande as respostas para Rua Saturnino de Brito, 74 - Jardim Botânico. Ou melhor. Para vmbarbara@yahoo.com.


:: VOCÊ PERGUNTA, NÓS NÃO DAMOS A MÍNIMA ::
Questionamentos sadios de uma sociedade doente

??? Na França, quando alguém quer pão francês, pede pão francês ou apenas pão? (Dadá, o Breve)

Pede cuquinha. Os franceses odeiam pão francês pois é feito da banha dos monarcas franceses à época da Revolução, congelada e comercializada até hoje. Há freezers pra isso. Na verdade há uma indústria de congeladores pra isso. Há potinhos herméticos da Tupperware para abrigar a banha real. Assim, os franceses preferem desgustar a popular e tão desejada cuquinha e brioches de leite condensado.

??? Qual é o sinônimo de "sinônimo"? (idem)

Sicofanta.

??? Por que não há comida para gatos com sabor de rato? (ibidem)

Porque ainda não descobriram o aromatizante rato, e os técnicos discutem em simpósios qual seria o corante que mais se identificaria com um apetitoso rato. Ou ainda: os cientistas andam provando a ração de rato e acabam se demitindo do laboratório, a lamber os bigodes.


EXPEDIENTE

Este Zine é impessoal. Computadores-robô meticulosamente programados desenvolvem os textos, se emocionam, revisam e publicam a visão neutra e imparcial da coisa toda. O único responsável é a instituição "Da Redação".


... Para ser lido na maldita hora da noite em que tudo é engraçado (que vem logo após a hora em que nada faz sentido e antes daquela em que tudo faz sentido) - Stephanie A.

Você está recebendo o !!DAMN!! Zine porque (oinc!) estava na lista de indivíduos manquitolas da lista negra dos Illuminati. Ou então, ou então! Você está recebendo o !!DAMN!! Zine porque foi um dos 139 mil nomes escolhidos entre todos os possíveis do mundo, sorteados em uma grande urna chinesa. Você e Li-Ching-Yang. Caso não queira voltar a receber este monte de bobagens, mande um e-mail para vmbarbara@yahoo.com, e escreva na linha de assunto: "Me deixem em paz, pelas barbas de Tutatis!". Se quiser que mais vítimas recebam o Zine, também escreva para esse e-mail mandando o endereço dos condenados e o número e senha de suas contas bancárias.

!!DAMN!! Zine - o zine das coisas que foram, das coisas que são o que são, das que não são o que não são e das que poderiam vir a ser o que não foram. Perfeito para forrar o chão de barracas fajutas e para embrulhar mortadela. Parceiro do tablóide norte-americano "O Sol da Meia Noite", mas não olhe pra trás porque tem um fauno fritando ervilhas nas suas omoplatas.

"Em verdade, em verdade vos digo: Aquele que ri cuidado para que não babe".


God is coming.
Look busy.



2005 Vanessa Barbara