A Hortaliça

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Trocadilhos tolos e conduta absurda
Edição #018, de 19 de maio de 2002.
Para os que moram dentro de poemas
Ao toque da campainha, não entre e nem saia do zine.

hortalica@gmail.com
O remédio é cantares cantigas loucas e sem fim...

 

"Se você não sabe onde está indo, qualquer lugar servirá"
(Lewis Carroll)

 

EDITORIAL
 

Era uma mulher, uma pá, uma vassoura de cabo curto e uma extensa rua de paralelepípedos. Corria uma daquelas noites em que as pessoas se apressam para vestir os pés com meias e os gorros com cabeças, a evitar que o calor se perca por uma das extremidades (pensando nisso, Wilma usava uma capa de bule no nariz, e uma faixa cinza em ambas as orelhas). Bom, mas havia uma mulher de saias e chinelo de pelúcia, que varria tranqüilamente a rua e falava sozinha, às onze da noite. Acariciava com a piaçava cada mísero paralelepípedo.

Os carros foram se acumulando, dando ré, as pessoas foram trocando de calçada e a senhora continuava varrendo (e falando). A lua ia e vinha como nos clips do Smashing Pumpkins. Pois os vizinhos decidiram terminar de comer, assistir a novela, martelar paredes, limpar o filtro e então passaram a cochichar pelas janelas, indagando qual seria o procedimento correto nesses casos. Pensaram nos bombeiros, mas acabaram chamando a polícia.

A mulher limpava o canto oeste da calçada ímpar quando ouviu as sirenes e sentiu a rua se iluminando de azul e vermelho. Dentro da viatura, o sargento Matinhos estava descalço e pôs-se a olhar a senhora. Era só uma maldita donzela lutando contra a sujeira urbana, recitando poemas e esperando a hora do café. Matinhos resgatou um donut perdido no banco do passageiro, mastigou aquela massa remotamente pastosa e foi embora. Ia passar Cemitério Maldito na TV e ele não podia perder, não hoje.

Dezessete cabecinhas observavam do canto de cortinas, e suspiraram um desapontamento em uníssono quando viram Matinhos dando a volta e partindo. O engenheiro da casa 618, decidido, gritou algo assustadoramente estranho, como "Pseudo-alegoria!!!", mas a senhora nem se mexeu do lugar. Os filhos o cumprimentaram mesmo assim, pela boa-fé da tentativa, o que quer que significasse. A garota do 493, que gostaria de poder sair com o mocinho do 772, ligou pra telefonista e perguntou qual o número da Casa de Saúde. A telefonista não estava e a menina deixou um recado.

Uns conversaram com o psicólogo, outros cozinharam macarrão na manteiga, há ainda os que tentaram lançar pedaços de quibe congelado bem na testa da varredora feliz. Nada adiantou, a maioria caiu no sono (o engenheiro cortou os pulsos com a saboneteira, mas não tem a ver com a história), e outros simplesmente fugiram pelas janelas, para comprar pão. Eram 8 horas da manhã e Poliana ainda varria, agora no outro extremo da rua. Até março ela terminaria os 2 quilômetros que compunham a extensão da rua, e eles enfim ficariam livres. Os vizinhos da rua de baixo também, finalmente se veriam livres do Seu Aílton, que usava esfregão e detergente para limpar as calçadas; e da mocinha que ocupava a avenida nova, a lustrar o asfalto e os postes, as sarjetas e as placas de trânsito.

O que eles não sabiam, e eu também não sei, é que aquela simplória velhinha prestativa, que varria e varria e varria e varria ininterruptamente, fazia parte de uma grande estratégia da Conspiração (e de quem seria?), para acabar com toda a vida sobre a Terra, destruindo a cadeia alimentar. Pois essa competente equipe apenas seguia ordens: tinha decidido começar pelos ácaros.

Por isso eu joguei uma antena parabólica bem em cima da velhinha, arrastei-a para análises no laboratório (a velhinha, não a antena), e encontrei esse papel aqui no bolso, que aparentemente é uma singela lista de lavanderia (oito meias, treze camisetas, duas alcatifas roxas) mas trata-se de uma mensagem cifrada sobre aqueles planos na Coréia e... ãhm? O que disse? Como eu sei dos planos na Coréia? Bom, eu li no jornal, sabe, e... Ei! E como você sabe dos planos da Coréia? (nesse momento, ambos saem correndo, em direções obviamente contrárias, e se encontram treze anos depois em algum ponto da Macedônia, ainda correndo. Fim.)

:: MORTE DO LEITEIRO ::
Drummond, a Cyro Novais

Há pouco leite no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há muita sede no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há no país uma legenda
que ladrão se mata com tiro.

Então o moço que é leiteiro
de madrugada com sua lata
sai correndo e distribuindo
leite bom para gente ruim.
Sua lata, suas garrafas
e seus sapatos de borracha
vão dizendo aos homens no sono
que alguém acordou cedinho
e veio do último subúrbio
trazer o leite mais frio
e mais alvo da melhor vaca
para todos criarem força
na luta brava da cidade.

Na mão a garrafa branca
não tem tempo de dizer
as coisas que lhe atribuo
nem o moço leiteiro ignaro,
morador na rua Namur,
empregado no entreposto,
com 21 anos de idade,
sabe lá o que é impulso
de humana compreensão.
E já que tem pressa, o corpo
vai deixando à beira das casas
uma apenas mercadoria.

E como a porta dos fundos
também escondesse gente
que aspira ao pouco de leite
disponível em nosso tempo,
avancemos por esse beco,
peguemos o corredor,
depositemos o litro...
Sem fazer barulho, é claro,
que barulho nada resolve.

Meu leiteiro tão sutil
de passo maneiro e leve,
antes desliza que marcha
É certo que algum rumor
sempre se faz: passo errado,
vaso de flor no caminho,
cão latindo por princípio,
ou um gato quizilento.
E há sempre um senhor que acorda
e resmunga e torna a dormir.

Mas este acordou em pânico
(ladrões infestam o bairro),
não quis saber de mais nada.
O revólver da gaveta
saltou para sua mão.
Ladrão? Se pega com tiro.
Os tiros na madrugada
liquidaram meu leiteiro.
Se era noivo, se era virgem,
se era alegre, se era bom,
não sei,
é tarde para saber.

Mas o homem perdeu o sono
de todo, e foge pra rua.
Meu Deus, matei um inocente.
Bala que mata gatuno
também serve para furtar
a vida de nosso irmão.
Quem quiser que chame médico,
polícia não bota a mão
neste filho de meu pai.
Está salva a propriedade.
A noite geral prossegue,
a manhã custa a chegar,
mas o leiteiro,
estatelado, ao relento,
perdeu a pressa que tinha.
Da garrafa estilhaçada
no ladrilho já sereno
escorre uma coisa espessa
que é leite, sangue... não sei.
Por entre objetos confusos,
mal redimidos da noite,
duas cores se procuram,
suavemente se tocam,
amorosamente se enlaçam,
formando um terceiro tom
a que chamamos aurora.


:: JAMAIS ::
por Mario Quintana

Jamais te voltes para trás de repente.
Não, não olhes agora!

O remédio é cantares cantigas loucas e sem fim.
Sem fim e sem sentido...

Dessas que a gente inventava para enganar a solidão dos caminhos sem lua.


:: GÊNESIS ::
por Antonio Prata

No início Deus criou a banca de jornal. E Deus viu que era bom. Então Deus reparou que ficava um povo ali em volta, jogando conversa fora, e pôs um isopor com côco gelado, e viu Deus que era bom. E disse Deus: do jornal lereis, do côco comereis e da água que dá no côco bebereis. E todos viram que era bom. Então Deus permutou com a Kaiser um pequeno freezer vertical e passou a vender as mais diversas bebidas: refrigerantes, cervejas, Gatorades. E vendo Deus que era bom também, arranjou umas mesas e cadeiras de plástico e fez da banca um pequeno bar. E viu Deus, pra variar, que era bom. Isso tudo em apenas seis dias. No sétimo, não sabe se descanse ou abre uma churrascaria rodízio.


:: QUEM ::
por Mario Quintana

Quem entra num poema não morre nunca.


:: ORION ::
por Drummond

A primeira namorada, tão alta
que o beijo não a alcançava,
o pescoço não a alcançava,
nem mesmo a voz a alcançava.
Eram quilômetros de silêncio.

Luzia na janela do sobradão.


:: FRAGILE ::
por Antonio Prata, de novo

Uns crêem em Deus, outros lêem Marx, e há até aqueles que vêem na tonificação dos músculos abdominais o sentido da vida.


:: PARA UMA MENINA COM UMA FLOR ::
por Vinicius de Moraes, que trabalha no Zine só porque é da família.

Porque você é uma menina com uma flor e tem uma voz que não sai, eu lhe prometo amor eterno, salvo se você bater pino, que aliás você não vai nunca porque que você acorda tarde e gosta de brigadeiro: quero dizer o doce feito com leite condensado.

E porque você é uma menina com uma flor e chorou na estação de Roma porque nossas malas seguiram sozinhas para Paris no meio de todas aquelas malas estrangeiras. E porque quando você sonha que eu estou passando você p/ trás, transfere a sua ddc para o meu cotidiano e implica comigo o dia inteiro como se eu tivesse culpa de ser assim tão subliminar. E porque quando você começou a gostar de mim procurava saber por todos os modos com que camisa esporte eu ia sair para fazer mimetismo de amor, se vestindo parecido. E porque você tem um rosto que está sempre num nicho, mesmo quando põe o cabelo p/ cima, como uma santa moderna e anda lento e fala em 33 rotações mas sem ficar chata. E porque você é uma menina com uma flor eu lhe predigo muitos anos de felicidade, pelo menos até eu ficar velho: mas só quando eu der aquela paradinha marota para olhar para trás, aí você pode se mandar, eu compreendo.

E porque você é uma menina com uma flor e tem um andar de pagem medieval; e porque você quando canta nem um mosquito ouve a sua voz; e você desafina lindo e logo conserta, e às vezes acorda no meio da noite e fica cantando feito uma maluca. E porque você tem um ursinho chamado Nounouse e fala mal de mim pra ele, e ele escuta mas não concorda porque é muito meu chapa, e quando você se sente sozinha e perdida no mundo você se deita agarrada com ele e chora feito uma boba fazendo um bico deste tamanho. E porque você é uma menina que não pisca nunca e seu lhos foram feitos na primeira noite da Criação, e você é capaz de ficar me olhando horas. E pôr que você é uma menina que tem medo de ver a Cara-na-vidraça, e quando eu olho você muito tempo você vai ficando nervosa até eu dizer que eu estou brincando. E porque você é uma menina com uma flor e adora purê de batata, eu lhe peço que me sagre seu Constante e Fiel Cavalheiro.

E sendo você uma menina com uma flor, eu lhe peço também que nunca me deixe sozinho, como nesse último mês em Paris; fica tudo uma rua silenciosa e escura que não vai dar em lugar nenhum; os móveis ficam parados me olhando com pena; é um vazio tão grande que as outras mulheres nem ousam me amar porque dariam tudo para ter um poeta penando assim pôr ela, a mão no queixo, a perna cruzada triste, e aquele olhar que não vê. E porque você é a única menina com uma flor que eu conheço, eu escrevi uma canção tão bonita p/ você, "Minha namorada", a fim de que, quando eu morrer, se por acaso você não morrer também, fique deitadinha abraçada com Nounouse, cantando aquele pedaço em que digo que você "tem de ser a estrela derradeira, minha amiga e companheira, no infinito de nós dois."

E já que você é uma menina com uma flor e eu estou vendo você subir agora - tão purinha entre as marias-sem-vergonhas - a ladeira que traz ao nosso chalé, aqui nessas montanhas recortadas pela mão presciente de Guinard; e o meu coração põe-se a bater cada vez mais depressa. E porque eu me levanto para recolher você no meu abraço, e o mato à nossa volta se faz murmuroso e se enche de vaga-lumes enquanto a noite desce com seus segredos, suas mortes, seus espantos - eu sei, ah eu sei que o meu amor por você é feito de todos os amores que já tive, e você é filha dileta de todas as mulheres que eu amei; e que todas as mulheres que eu amei, como tristes estátuas ao longo da aléia de um jardim noturno, foram passando você de mão em mão, de mão em mão até mim, cuspindo no seu rosto e enfeitando a sua fronte de grinalda; foram passando você até mim entre cantos, súplicas e vociferações - porque você é linda, porque você é meiga e sobretudo porque você é uma menina com uma flor.


:: PRÓXIMAS MATÉRIAS NO DAMNZINE ::
a Reader's Digest dá o tom, nós completamos as matérias. Não percam!

Eu sou a garganta de João
Rolf, o Cão Que Acha Coisas
Argúcia dos Animais
O que Nosso Fígado Faz Por Nós
Acordada Durante Uma Operação no Cérebro
Importa-se que Lhe Passe Um Câncer?
Mary, a rainha dos cartões
Tecnicamente Falando... Não Sei
Alguém Ronca Nesta Casa?
Da Primavera e do Ovo
Como Irritar um Mosquito
Dagmar, a mãe dos iguanas
Eu ataquei um gorila
O cavalo dos sonhos e a mesa de jantar
Consiga o que quer sem resmungar
A lua nos deixa loucos?
A Milagrosa Mesa em Forma de U
O Ano da Foca
Assim Aprendi a Não Me Preocupar e a Gostar do Cão
Sem pernas, mas com asas
Gebel-Willians, o Rei dos Elefantes
Quem me Dera Ser Homem!
"Sem pernas, sem Piadas, sem Chance"
O Extraordinário Ovelheiro Escocês


:: CORRESPONDÊNCIA ::
e-mails reais, bisonhos e suspeitíssimos, interceptados por uma inocente unha.

Olá
Como está a criação de mariscos? As carpas passam bem ou já viraram ex-carpas? E os trocadilhos, como andam? Sempre firme no curso de aqüicultura?

A propósito, você sabe alguma coisa sobre educação artística na Espanha? Se souber, ligue pra mim - mas não diga alô. Diga "Por tutatis! O que são aquelas minhocas azuis descendo pelo encanamento?", e imite barulhos de estômago digerindo desinfetante (colorido), só então nós atenderemos.

É estranho. Não estou conseguindo concluir meus pensamentos. A vida parece um email dentro de um email dentro de um filme oriental. Mudo. Escuta, você sabe fazer lasanha de queijo? Você devia ser uma espécie de informações gerais. Tipo uma avó, ou um curandeiro. Eu mandava uma pergunta, e plim, vinham várias respostas. Esqueci o que eu ia dizer realmente, era algo com relação à destruição da China por uma grande massa de maionese, acho que tive uma idéia sobre o ataque mas ela me escapuliu.

Mas idéias virão, assim como a dor de barriga.
Eu.

ps: "Pare de fumar fumando". Método revolucionário. Dos mesmos criadores de "Emagreça comendo" e "Mamãe vamos varrer a sala antes que cheguem as visitas". Ao se inscrever no nosso Projeto Anti-Tabagismo, você ainda ganha: 2 cachimbos, 1 flanela auto-limpante, 3 palmilhas de água, 1 pote de alcaparras ao molho madeira, 1 caspa e um exclusivo cinzeiro com a inscrição: "Papai não fume porque nós te amamos". Ligue já.


:: VOCÊ PERGUNTA, NÓS NÃO DAMOS A MÍNIMA ::
Questionamentos sadios de uma sociedade doente.

??? Uma pessoa que sofre de vertigem não tem medo de cair, mas de pular. Por quê?

Porque é mais fácil, oras. Cair é bastante complicado e requer diversos golpes de vento ou de azar (a não ser que você assine o DamnZine e já esteja sendo procurado pela Conspiração há tempos); pular, por outro lado, é ridiculamente simples. Funciona a partir do mesmo mecanismo que te faz encarar uma tesoura de jardinagem, com os olhos brilhando, e ter aquele impulso de cravar o objeto na tua própria perna. (Não me olha com essa cara, todo mundo tem isso. Tem, não tem?)

Embora nos filmes, enquanto você mede os prós e os contras, teu primo Tobias (que não tinha morrido quando você o jogou do penhasco, como pensava o espectador) sempre se aproxima, toma a tesoura nas mãos e facilita o trabalho.


EXPEDIENTE

Este Zine é impessoal. Computadores meticulosamente programados desenvolvem os textos, se emocionam, revisam e publicam a visão neutra e imparcial da coisa toda. O único responsável é a instituição "Da Redação".

 


... Para ser lido na maldita hora da noite em que tudo é engraçado (que vem logo após a hora em que nada faz sentido e antes daquela em que tudo faz sentido) - Stephanie A.

Você está recebendo o !!DAMN!! Zine porque (oinc!) estava na lista de indivíduos manquitolas da lista negra dos Illuminati. Ou então, ou então! Você está recebendo o !!DAMN!! Zine porque foi um dos 139 mil nomes escolhidos entre todos os possíveis do mundo, sorteados em uma grande urna chinesa. Você e Li-Ching-Yang. Caso não queira voltar a receber este monte de bobagens, mande um e-mail para vmbarbara@brfree.com.br, e escreva na linha de assunto: "Me deixem em paz, pelas barbas de Tutatis!". Se quiser que mais vítimas recebam o Zine, também escreva para esse e-mail mandando o endereço dos condenados e o número e senha de suas contas bancárias. Se quiser usar cartão de crédito, basta fornecer o número.

!!DAMN!! Zine - o zine das coisas que foram, das coisas que são o que são, das que não são o que não são e das que poderiam vir a ser o que não foram. Perfeito para forrar o chão de barracas fajutas e para embrulhar mortadela. Parceiro do tablóide norte-americano "O Sol da Meia Noite", mas não olhe pra trás porque tem um fauno fritando ervilhas nas suas omoplatas.

"Em verdade, em verdade vos digo: Aquele que ri cuidado para que não babe".


God is coming.
Look busy.



2005 Vanessa Barbara