A Praça do Relógio.
Distraída, Lanolina mascava chicletes. Ela tinha pés tortos, aparelho nos dentes, uma mochila enorme, duas gomas de mascar mentoladas e uma predileção doentia por livros de capa dura. Andava pela calçada a pensar em cactos – mas quem pensaria nisso uma hora dessas, com forças terríveis conspirando contra sua sorte? – quando entrou em um atalho e pisou numa buganvília. Nota: O departamento de Flora censurou este trecho e trocou "buganvília" por "begônia", sem alterar o pacato curso da história. Pois bem, os sapatos de pelica de nossa heroína tocaram um canteiro de buganvílias (lê-se: begônias), e neste exato momento um alarme ressoou por todo o campus da universidade, obrigando-na a parar, tossir e olhar para os lados. Uma trupe de cidadãos vestidos de preto e cinza, feios pra burro, saiu dos buracos de semente da cintilante Praça, a correr atrás de Lanolina. Digo isto porque ela realmente saiu em disparada, largando mochilas, aparelho e chicletes pelo caminho, desesperada meio sem saber por quê. Eram dezenas de seguranças armados do departamento de Botânica, que rangiam os dentes e clamavam por justiça - Lanolina havia pisado no canteiro das begonvílias e abreviado a vida das adoráveis plantinhas em 8 minutos e doze segundos. A espécie que maltratara (isso tudo estava sendo explicado em um megafone, pelo professor de História Vegetal, durante a perseguição) fora geneticamente criada para durar exatamente seis meses, e perecer nas mãos dos assassinos de Agronomia, justamente no dia da troca. Lanolina estragou tudo, e agora as plantas morreriam antes. Dali a exatos 3 meses e 2 dias, para ser mais preciso. Uma vida a acabar bastante cedo, sem dúvida, mas não tão cedo quanto a de Lanolina, que ficou por ali mesmo - estirada na calçada da Travessa J, sob o sol de quarta-feira, atingida por uma violentíssima rajada de pinhas gigantes.
Esta edição conta com as ilustríssimas e veneráveis participações do senhor Keuner e do camarada Eak, do Homem-Aranha e da Stephanie, de Brecht, Quintana, Gustavo Bühler, Ferreira Gullar e finalmente do garoto canhoto belga, Alisson Villa. Com tantas criaturas feéricas e fictícias numa só edição, só nos resta lamentar a ausência do Zé, o homenageado desta edição de aniversário. Os antebraços te saúdam!
I II III
:: GOSTO POR MACHADO :: Silvia gostava de roer a borda
de livros. Não de qualquer livro, claro, e nem qualquer borda.
Tinha que ser, pelo menos, daqueles livros que imitam couro, vermelhos,
se possível, e nunca pretos (não era racismo: Silvia
achava que aquele plástico preto parecia um monte de formiga
picada depois que ela arrancava pequenos pedaços com os dentes,
e ela tinha nojo de formiga). Ela também não gostava
de livro grande, tipo Moby Dick ou Decamerão, porque não
dava a empunhadura correta. A não ser que fosse em dois volumes,
como acontece com a maioria das edições de Vinhas da
Ira ou Crime e Castigo. As folhas também não podiam
ser muito velhas, amareladas, porque ela espirrava. Por isso seus
livros eram muito bem cuidados – com exceção da
capa, claro. - Você viu algum do Hemingway?
Ele perguntou. Apaixonaram-se. Mais ainda depois que ela descobriu no que ele trabalhava. Ele, quando viu os livros dela na prateleira, propôs, na hora, trocar a capa de todos. Quando ela viu que ele usava material importado, muito mais gostoso que qualquer coisa que ela já havia provado, a paixão tomou um ritmo alucinante. Ela comprava dúzias de livros em sebos, que ele encadernava com prazer. Ela consumia um livro por dia, enquanto via novelas, a maior parte. Mas também levava para o trabalho e, quando ia no banheiro, levava seu Admirável Mundo Novo para dar uma bicada. Antes de dormir, sempre beliscava os García Marquez que ele encapou com azul anil. Em um certo Natal, num ápice de loucura por amor, Romeu deu a Silvia a coleção completa de Machado de Assis. - Para você experimentar a literatura brasileira também, que tem muita coisa boa. Ela adorou. Passava as noites degustando seus novos livros de capa dura verde musgo com cheiro artificial de couro. Achou Machado uma delícia, suave, mas ao mesmo tempo denso. Não sobrou um. Romeu, entretanto, um dia surpreendeu-a no quartinho da biblioteca mascando um Kafka. - Que que é isso, Silvia?
Tá comendo os livros? Não adiantou. Romeu ficou muito magoado, ainda mais depois de ver todas as suas encadernações em pedaços. "Uma arte, Silvia, era uma arte!", dizia cabisbaixo enquanto ela tentava impedir que ele saísse pela porta. Mas saiu. Nunca mais voltou. Silvia, com o choque do amor perdido, parou de comer capas de livros. Mas não melhorou nada: agora, para distrair, ficava horas pendurada no telefone.
Olha,
- Ah! Sim, um lepidóptero...
E a pedra caiu. Despedaçou-se, estilhaçou-se, esfarelou-se. Um fim triste, ao meu ver, pois não atingiu nenhum pé. :: HISTÓRIAS DO SENHOR
KEUNER :: Um homem que não via há
muito tempo o senhor K., cumprimentou-o nestes termos: "Você
não mudou nada". :: O QUE DISSE? :: Right now I'm having amnesia and deja vu at the same time. I think I've forgotten this before.
Antes de começar, deixemos uma coisa bem clara: após discussões acaloradas na Redação, resolveu-se fazer esta matéria autoritariamente, mesmo. A redatora que cá escreve jura que Rolf é o cão que acha coisas, bastante opinativo e comentarista dos assuntos de relevância nacional - o resto do Zine, desprezivelmente bobo, disse que Rolf apenas executa o trabalho de Longuinho (o Santo), a achar pedaços de grampo, meias, chaves perdidas, criancinhas com medo. O que (convenhamos) não teria a menor graça. Findo este aparte, vamos às considerações gerais. Nosso repórter especial A. Villa encontrou Rolf esta manhã nos arredores de um decadente bar da zona leste, jogado na sarjeta a conversar com A. Eak (o velho bêbado da redação) e a intelectual Luft - a minhoca que faz contas. Rolf havia sido demitido de seu emprego em uma repartição pública por não executar fielmente o trabalho a que fora designado - obviamente, o de achar coisas. No sentido bíblico de tudo, diga-se de passagem. Pois os funcionários, a secretária e o chefe pediam para que Rolf encontrasse suas dignidades perdidas, seus pacotes de folha sulfite, os documentos protocolados, o cofre com 3 milhões que desapareceu esta manhã, mas Rolf apenas se sentava em seu cubículo com ar-condicionado, ajeitava os óculos, latia e postulava: "creio que esses pequenos acontecimentos são apenas reflexos de uma política leviana adotada por esta lamentável empresa, a encorajar pequenos furtos esparsos no aparato administrativo do Governo, e, conseqüentemente, roubos cada vez maiores e mais bem planejados. Acredito que seja preciso desenvolver, com bastante urgência, uma cultura corporativa de..." - e a secretária Motors (filha do General Motors, que lhe deu este emprego) saía da sala meio nervosa, para procurar as folhas sulfite por si mesma. Pois Rolf estava cansado de ser apenas um cão inglês, daqueles que farejam crimes e prendem os suspeitos, e gostaria de adquirir renome na praça por sua característica opinativa invejável. Luft - a minhoca que faz contas, acreditava que 40% dos cães farejadores tinha esse mesmo problema, mas nenhum deles possuía o dom celestial de Rolf: ele realmente achava coisas, tinha uma posição ideológica bastante forte sobre todas as questões importantes, e merecia ser ouvido. 642 dos 985 cães não sabia nem lamber as patas, quanto mais discutir sobre política externa dos países árabes (Luft era a melhor amiga de Rolf, e se achava 87% mais legal que as outras minhocas). Bom, tudo isso aconteceu há uns 4 anos, antes de Rolf conhecer Pineápolis, o Ouriço Que Deita e Rola, e fazer maiores contatos com setores progressistas do governo (que tomavam lições com Ápolis). Desde então, os ministros da justiça, da agricultura e do desporto, reunidos em assembléia extraordinária, contrataram o cérebro avantajado de Rolf, o Que Acha Coisas, e aos poucos ele foi tomando o lugar do porta-voz oficial da presidência, Carlos Átila. Hoje Rolf é a cabeça que fica atrás do púlpito, soprando os discursos para os representantes do Governo Federal (Paulo Renato, pobrezinho, não faria nada sem os conselhos de Rolf), mas sua maior função é redigir as palestras sociológicas que Fernando Henrique ministra na Sorbonne, Massachussets. A secretária Motors, que ainda não encontrou suas folhas de sulfite, ainda procura Rolf no meio da madrugada para pedir que encontre seus óculos no escuro (eles são casados) e a molengamente talentosa Luft (a poliqueta que faz contas) adoece de desgosto todas as sextas-feiras, porque Rolf além de inteligente é um pedaço de mau caminho - mas ela não consegue declarar seu amor sem dizer que 96% das minhocas se apaixonam por seres de sua mesma espécie, sendo que.... (encorajamos nossa recepcionista, Ex-téfani a redigir outra versão sobre as peripécias de Rolf, o Cão Que Acha Coisas. Ou quem se julgar apto a fazê-lo).
- www.emcrise.com.br - Página de criptojornalistas (os que vivem em criptas?), com textos polissêmicos, logotipos estranhos e editores brigões. Leia, acompanhe e visite o site - antes que ele venha visitar você.
??? Homem-Aranha, a humanidade está em perigo, precisamos de sua ajuda! Faça alguma coisa por nós, Homem-Aranha! Não. ??? Não? Mas como não, Homem-Aranha, não há mais ninguém na Sala da Justiça, os vilões estão prestes a destruir o planeta e milhões de vidas humanas, peloamordedeus, faça alguma coisa por nós, e lhe seremos eternamente gratos - eu prometo, Homem Aranha!!!! Não. ??? Que absurdo, Homem-Aranha, eu pago uma fortuna em impostos e na hora em que eu mais preciso você me diz que não vai fazer nada, custa-me crer que você não vai impedir o extermínio de milhões e milhões de inocentes criancinhas em todo o mundo. Você não vai fazer NADA, Homem-Aranha??? Hmm... Não.
Este Zine é impessoal. Computadores meticulosamente programados desenvolvem os textos, se emocionam, revisam e publicam a visão neutra e imparcial da coisa toda. O único responsável é a instituição "Da Redação".
... Para ser lido na maldita hora da noite em que tudo é engraçado (que vem logo após a hora em que nada faz sentido e antes daquela em que tudo faz sentido) - Stephanie A. Você está recebendo o !!DAMN!! Zine porque (oinc!) estava na lista de indivíduos manquitolas da lista negra dos Illuminati. Ou então, ou então! Você está recebendo o !!DAMN!! Zine porque foi um dos 139 mil nomes escolhidos entre todos os possíveis do mundo, sorteados em uma grande urna chinesa. Você e Li-Ching-Yang. Caso não queira voltar a receber este monte de bobagens, mande um e-mail para vmbarbara@brfree.com.br, e escreva na linha de assunto: "Me deixem em paz, pelas barbas de Tutatis!". Se quiser que mais vítimas recebam o Zine, também escreva para esse e-mail mandando o endereço dos condenados e o número e senha de suas contas bancárias. Se quiser usar cartão de crédito, basta fornecer o número. !!DAMN!! Zine - o zine das coisas que foram, das coisas que são o que são, das que não são o que não são e das que poderiam vir a ser o que não foram. Perfeito para forrar o chão de barracas fajutas e para embrulhar mortadela. Parceiro do tablóide norte-americano "O Sol da Meia Noite", mas não olhe pra trás porque tem um fauno fritando ervilhas nas suas omoplatas. "Em verdade, em verdade vos digo: Aquele que ri cuidado para que não babe".
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2005
Vanessa Barbara |