Gostava de usar óculos: contemplava o mundo dentro de uma apática e geométrica moldura. Tinha o que os jornalistas chamam de distanciamento crítico, obtido em 4 anos de terapia universitária, um aro escuro quadrado, lentes grossas e certa dose de muxoxo. Quando acontecia algo nas redondezas, digamos, um senhor grisalho punha-se a disputar a posse do último pacote de goiabinhas com uma criança ruiva, e entupia-lhe as vias respiratórias com sua indiscutível boina - bom, o Orestes ia lá espiar. Sentava-se no meio fio, com as calças curtas deixando aparecer as meias, e ficava piscando ambos os olhos sem parar (ao mesmo tempo, observe), entretido com a cena vista pelos aros pretos. Alguns populares sempre tentavam intervir, dando cabeçadas na testa do senhor grisalho ou entupindo seu nariz de estôpa, mas as coisas nunca davam lá muito certo e geralmente a garota acabaria por gastar uma fortuna com conjuntinhos pretos de veludo, sete anos depois. Ou viraria psicóloga, ou faria abdominais, ou moraria com um publicitário - ainda poderia tentar a política, a meditação ou os sapatos de salto agulha. Orestes, no entanto, era a personificação do contentamento. Pacato, mastigava goiabinhas e piscava lentamente de quando em quando, para lubrificar o mundo de sal e água. Dentro de pouco tempo a balbúrdia acabaria, com a chegada da ambulância ou do xerife, quando uma trilha sonora tomaria a cena; finalmente Orestes compraria seu costumeiro pão de batata e iria embora. Na esquina da Eulália com a Bonifácio ele tiraria delicadamente os óculos para poli-los em seu pulôver e depois recolocá-los com empáfia e disposição. Orestes gostaria que os créditos e o The End subissem naquele momento, concluindo o delirante filme de sua rotina, mas o diretor daquela produção pestífera também usava óculos de aros escuros e não concordava com isso, não senhor. Limpava as lentes na gola rolê de sua malha felpuda, Orestes, mas não chegou a recolocá-las. (o garoto sonolento se apruma na poltrona - êpa!) ...Uma descomunal e enferrujada placa de cobre despenca, esbugalhadamente, em cima do tornozelo de Orestes, fazendo voar seus óculos e pares de batatas. Desesperado, não consegue olhar para cima sem a ajuda limitante da moldura ocular da Ray Ban Executive, e tenta pedir socorro com os olhos fechados. Mas odiava aquela escuridão infinita, as partículas de sujeira boiando dentro da pupila, as bolhas prateadas dançando - diabos, ali dentro era muito imenso. Abriu os olhos, e agradeceu aos céus por não ter uma visão panorâmica de pássaro. Mesmo assim enxergava, e o que via era dezenas de executivos do Stand Center em hora de almoço, mascando pedaços de carne mal passada, e mais acima de sua visão enorme estava a garotinha ruiva no alto de um muro, contente por ter empurrado um andaime de cobre ladeira abaixo e tornozelo acima de Orestes. Que soterrava-se cada vez mais embaixo da maldita placa, engolidora de calcanhares, canelas, joelhos, cartões de visita, conjuntinhos pretos e passados longínquos. Os garotos do Stand Center mastigavam, e um deles (o diretor adora aparecer) usava óculos de aros pretos. Estavam satisfeitos. A placa de cobre foi removida apenas dezesseis minutos e treze segundos depois, por um cão salsichinha que adorava pães de batata. Negociaram, e Orestes pôde apalpar os pés à procura de fraturas insuportáveis, mas no lugar de seus dedos havia apenas uma pata de bode. Bem. O diretor arranjou outro emprego no Stand Center para o interessante roteirista, e Orestes recuperou seu par de pés para não ter problemas com a censura. Voltou para casa sem os óculos, sem o pão de batatas mas com um cachorro apressadinho, com quem tocou a passear todos os dias pela alameda Bonifácio, de moletom e tênis. O compridinho amigo libertou Orestes de seus óculos, honrando assim suas aptidões invejáveis de cão-guia - fora cicerone em uma empresa de turismo, e mostrava aos míopes as coisas interessantes ao redor das janelas do mundo. Ensinava os cegos a olharem para os lados, diria seu assessor de imprensa. Orestes tingiu o cabelo de ruivo e distribuiu goiabinhas Piraquê para associações não-governamentais; ria como uma Meg Ryan e sapateava - ah, como sapateava. Nos fins de semana, adentrava o edificante mundo das baladas, onde revirava os olhos e pulava como um sapinho bobo. O cão salsicha achou tudo aquilo terrível e arranjou uma infecção na nuca para não sair mais com o Orestes. Alojou-se, enfermo, em sua casinha de lajotas azuis, e olhava os bueiros da rua pela moldura estática da maldita janela. Tão jornalístico. Optou pelo suicídio, lento e demorado: quando Orestes saiu para dançar, num ensolarado domingo, o Compridinho cão olhou pela janela tragicamente, piscou algumas vezes e, desconsolado, colocou no rosto os malditos óculos.
Ninguém me ama
:: AGONIA :: No teu grande corpo branco depois
eu fiquei. Depois foi o sono, o escuro, a morte.
As palavras em itálico são inclinadas por reverência, tristeza ou desvio na coluna?
:: JANELAS :: Há um homem sonhando
Mamihlapinatapei: de um idioma indígena da Terra do Fogo, quer dizer o "ato de olhar nos olhos do outro, na esperança de que o outro inicie o que ambos desejam mas nenhum tem coragem de começar".
I 2
Eu estava quieta, absolutamente imóvel,
sem mesmo respirar - me punha a cronometrar quanto tempo conseguia
ficar estática. Meus pés estavam presos em alguma estrutura
de ferro convenientemente disposta abaixo do banco do cobrador, que
me olhava com o canto dos olhos e lia Vencer É Possível
ou os Segredos das Famílias Felizes. Segundos depois, ainda
imersa em uma modorrice voluntária, eu dava um grande susto
em mim mesma (já tentou?) e zerava o contador do relógio.
Dois minutos e trinta segundos. O ônibus praticamente não
tinha saído do lugar, e nem o livro que estava no meu colo.
Fui encostar a cabeça no vidro e passou uma lombada (teoria
1: dormir no ônibus causa lesões irreversíveis
em partes fundamentais do cérebro). Coloco a cabeça
pra trás, pra frente, pros lados, afofo a área com uma
blusa, deito em cima da mochila, do joelho, do tédio. Largo
as coisas no canto e esboço uma reação de revolta,
quando ouço algo:
:: QUE ESTÁ ACONTECENDO
NA TURQUIA? :: Deve ser do caramba o carnaval na Turquia. Duas grandes caixas acústicas gritam marchinhas horríveis, do topo dos Enclaves Rupestres da Capadócia, para desespero dos coitados do lado esquerdo (Tuvalu) ou do lado direito (Turcomênia). Aposto que eles têm cornetas, os turcos. Aposto que lá é carnaval o ano todo. - E os gritos, moço? Que são
esses urros de dor?
:: CORRESPONDÊNCIA :: :: VOCÊ PERGUNTA, NÓS
NÃO DAMOS A MÍNIMA ::
Este
Zine é impessoal. Computadores meticulosamente programados desenvolvem
os textos, se emocionam, revisam e publicam a visão neutra e
imparcial da coisa toda. O único responsável é
a instituição "Da Redação". ... Para ser lido na maldita hora da noite em que tudo é engraçado (que vem logo após a hora em que nada faz sentido e antes daquela em que tudo faz sentido) - Stephanie A. Você está recebendo o !!DAMN!! Zine porque (oinc!) estava na lista de indivíduos manquitolas da lista negra dos Illuminati. Ou então, ou então! Você está recebendo o !!DAMN!! Zine porque foi um dos 139 mil nomes escolhidos entre todos os possíveis do mundo, sorteados em uma grande urna chinesa. Você e Li-Ching-Yang. Caso não queira voltar a receber este monte de bobagens, mande um e-mail para vmbarbara@brfree.com.br, e escreva na linha de assunto: "Me deixem em paz, pelas barbas de Tutatis!". Se quiser que mais vítimas recebam o Zine, também escreva para esse e-mail mandando o endereço dos condenados e o número e senha de suas contas bancárias. Se quiser usar cartão de crédito, basta fornecer o número. !!DAMN!! Zine - o zine das coisas que foram, das coisas que são o que são, das que não são o que não são e das que poderiam vir a ser o que não foram. Perfeito para forrar o chão de barracas fajutas e para embrulhar mortadela. Parceiro do tablóide norte-americano "O Sol da Meia Noite", mas não olhe pra trás porque tem um fauno fritando ervilhas nas suas omoplatas. "Em verdade, em verdade vos digo: Aquele que ri cuidado para que não babe".
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2005
Vanessa Barbara |