Deixava-me ficar no canto de um quarto, que (tudo indicava) parecia ser o meu, comendo cascas de cal tiradas da parede e deixando meu queixo abraçar ambas as pernas, quando meus parentes búlgaros vieram abrir a porta e depositar seus engradados na cama, grunhindo dialetos incompreensíveis e mastigando vários pares de botas. Não me oponho ao fato de a Bulgária não existir, isto se pode compreender, mas a atitude dos invasores de mascar botas de couro de foca é imperdoável, tanto que eu franzi a sobrancelha, levantei-me e bati a cabeça no tampo da escrivaninha, berrando para que os parentes saíssem do meu quarto e cuspissem a pasta de suas botas. O dr. Kumpf, que dizia ser cônsul na Finlândia, apontou-me o dedo mindinho (como é costume na Bulgária) e disse-me que fazia calor ali dentro, e que, por isso, eu devia guardar o tubo de isopor na geladeira e fornecer pufes confortáveis para os meus hóspedes, como convém. Tomei o isopor e depositei oitocentos gramas de carne de foca no meu refrigerador, sem antes trombar com a prima Hilde e o gêmeo Kupstas, que tinham instalado uma antena de rádio no corredor. Explicava-me a senhora Kumpf, convenientemente onomatopaica, que as botas endureciam no frio durante grandes viagens, por isso era recomendado que fossem prontamente amolecidas – se isso incomodava os presentes, ela poderia cuspir o sapato a qualquer momento, é claro. Disse-lhe para ficar tranqüila, ofereci gentis almofadas para os parentes e refugiei-me na sala, onde passava um documentário sobre o plâncton apresentado pela tevê francesa. Meus pais contabilizavam, desde março, as finanças da firma, e era bom que os deixasse concentrados na matemática para que não se incomodassem com os parentes; e para que, é claro, pudessem tocar os negócios com responsabilidade. "Peça comida chinesa, Artur", disse mamãe, quando primo Fidípedes veio cumprimentá-la; então o dr. Kumpf e os gêmeos engoliram as botas de foca porque tinham fome. O entregador de pizza veio perguntar quem era aquele maluco loiro arrumando uma antena no telhado, e eu acalmei-o dizendo que não havia problema, mas parecia que o telhado era do vizinho, então havia problema e fui tirá-lo de lá. O gêmeo, que ainda não fora batizado porque brigara com o irmão no dia da cerimônia, disse-me que tentava instalar uma estação de ondas curtas para poder conversar com o Kupstas, que não sabia de nada mas gostaria de furar os olhos do irmão com uma lixa de unhas. Na porta, o garotinho das pizzas tinha acabado de descobrir que precisava entrar para fazer xixi e roubar um abajur, então tive que cair do telhado para impedi-lo de abrir a porta e, assim, descobrir meus parentes búlgaros, que brincavam de estica-espicha no chão do corredor. O Kupstas, irritado, procurava o irmão com um papa-bolinhas na mão, prestes a atacar papai – precisei chutá-lo para que desistisse da idéia e fosse lixar os olhos do entregador de pizzas, que estava a essa altura sentado no pufe com a Hilde e um abajur. Mamãe tinha se levantado para atender o telefone, e a senhora Kumpf estava tentando entrar e sair da casa pela janela sem chocar-se com nenhum corpo inerte ou em movimento. Tratava-se do exercício filosófico de deixar o caos operar na normalidade do mundo, ainda assim sem incomodar a ordem natural das coisas, o que era mais interessante. Na outra ponta do telefone falava o contador da firma, que estava a caminho com o imposto de renda do ano-base e vinha acompanhado de uma garrafa de champanhe francês, como era costume nas reuniões da firma. A Kumpf saía pela porta e entrava pela janela, repetidas vezes, então o entregador de pizza achou graça nos meus parentes búlgaros e decidiu ligar e desligar o abajur, convulsivamente, e colaborar para a experiência metafísica da minha família distante. A Hilde, apaixonada, amaciava o couro de foca e lançava-o à parede, esperando que grudasse. Mas nunca grudava, então ela o amaciava, atacava de novo, amaciava, atacava de novo. A senhora Kumpf, sorrindo, entrava e saía. O contador abriu a porta e conseguiu desviar seu corpo do itinerário da velha senhora, abraçou meus pais e sentou-se à mesa para redigir o balanço plurianual. Mamãe chamava o Artur para cumprimentar o contador, mas eu estava tentando conversar com o gêmeo, que por sua vez tentava revestir a parede de isolamento acústico, construir o estúdio e se comunicar com o irmão, Kupstas, que ensaiava na sala seus números circenses com a ajuda de um monociclo enferrujado. A senhora Kumpf se alegrava com a espontânea colaboração familiar e entrava pela janela, atravessava a sala, olhava para o Kupstas e saía pela porta da frente. O entregador de pizzas iluminava e apagava o pufe amarelo, enquanto sua amada Hilde brincava de estica-espicha com uma massa pastosa de couro de foca. Enquanto isso, no jardim, o dr. Kupstas via sua esposa indo e vindo, orgulhoso, e decidira ler uma reportagem sobre o cônsul da Finlândia, que nunca havia existido e declarava que a Finlândia, afinal de contas, também não existia. Decidiu comer terra até a morte, e eu já não via mais o que fazer. Papai carimbava uma pilha de recibos e achou que já era tarde. Apagou todas as luzes da casa, de repente, deixando os invisíveis parentes búlgaros executando suas tarefas repetitivas e ordenadas sob a proteção do escuro, colocou suas pantufas e deixou o contador dormindo em cima da mesa. Eu tinha decidido pedir comida italiana e estava de mudança para a Vila Albertina, onde, diziam, havia uma casa de saúde em que as enfermeiras serviam pasta de ricota com queijo, todas as quartas-feiras.
A enchente de 1941. Entrava-se de barco pelo corredor da velha casa de cômodos onde eu morava. Tínhamos assim um rio só para nós. Um rio de portas a dentro. Que dias aqueles! E de noite não era preciso sonhar: pois não andava um barco de verdade assombrando os corredores? Foi também a época em que era absolutamente desnecessário fazer poemas...
E então, certa vez, Petrakov quis deitar e tirar uma soneca, mas ao deitar errou a cama. Atinge o chão com tanta força que fica ali deitado, sem conseguir se levantar. E então Petrakov fez um esforço supremo e conseguiu ficar de quatro. Mas sua força o deixou e ele novamente caiu de barriga e fica ali, deitado. Petrakov fica deitado no chão por cinco horas. Primeiro ele apenas deita, depois caiu no sono. O sono restaurou a energia de Petrakov.
Ele acordou totalmente recuperado, levantou, caminhou por todo o quarto
e, com cuidado, deitou na cama. Bem, ele pensou, agora vou tirar uma
soneca. Mas ele não sentiu sono algum. Petrakov vira de um
lado para outro, mas não não consegue dormir de jeito
nenhum.
:: RUA :: A rua mastiga A rua deglute A rua dejeta
:: O ESTRANHO CASO DO MISTER
WONG :: Além do controlado Dr. Jekyll e do desrecalcado Mister Hyde, há também um chinês dentro de nós: Mister Wong. Nem bom, nem mau: gratuito. Entremos, por exemplo, neste teatro. Tomemos este camarote. Pois bem, enquanto o Dr. Jekyll, muito compenetrado, é todo ouvidos, e Mister Hyde arrisca um olho e a alma no decote da senhora vizinha, o nosso Mister Wong, descansadamente, põe-se a contar carecas na platéia... Outros exemplos? Procure-os o senhor em si mesmo, agora mesmo. Não perca tempo. Cultive o seu Mister Wong!
Mulheres vão e vêm nadando Há vinte anos não digo
a palavra
Não sei exatamente quando isso passa, acho que é todo fim-de-semana e feriados pela manhã, mas com certeza é na Band. É um comercial enorme do Grupo Imagem Teleshop, que vende o Moments of Love, “9 cds com 180 músicas em mais de oito horas de gravação, numa coletânea exclusiva que não é vendida em lojas”. Isso ou quase isso, não me lembro direito. Mas o mais importante é que a porra do comercial fica se repetindo em um loop infinito e é muito legal ficar largadão no sofá vendo aquilo. Enquanto rolam trechos das músicas (que te fazem viajar, pensando “nossa, essa música ainda existe? Eu ouvia no rádio quando era criança ...”) e o locutor vai recitando o seu texto inspirado, vão rolando cenas bucólicas e relaxantes de ondas quebrando na praia, árvores na floresta, crianças brincando no campo, nuvens passando em um céu azul e coisas assim. Depois da terceira ou quarta repetição, você entra em um estado meio alfa, meio zen, se desliga do mundo e relaxa mesmo ... É como se você formatasse o seu cérebro e o protegesse contra gravação, é lindo. Geralmente, depois disso, eu fico bem quase até a hora do almoço.
:: COMO SE COMPORTAR NO ELEVADOR
:: ou "continue mantendo alto seu nível de insanidade" 1) Aperte os botões do elevador e finja que eles dão choque. Sorria e faça de novo. 2) Se ofereça para apertar os botões para os outros, mas aperte os botões errados. 3) Segure a porta e diga que está esperando por um amigo. Depois de um tempo deixe a porta fechar e diga: "Olá Zé. Como vai vc?" 4) Traga uma câmera e tire fotos de todos no elevador. 5) Traga uma mesa para dentro do elevador e quando alguém entrar, pergunte se marcaram hora. 6) Leve um Banco Imobiliário e pergunte para as pessoas se elas querem jogar. 7) Deixe uma caixa no canto, e quando alguém entrar, pergunte se elas ouviram um tique-taque. 8) Finja ser uma aeromoça e revise os procedimentos de emergência com os passageiros. 9) Pergunte: " Você sentiu isso?" 10) Fique bem perto de alguém, fungando seu cangote de vez em quando. 11) Quando a porta se fechar, fale: "Tudo bem, fiquem calmos e não entrem em pânico. Ela abrirá novamente". 12) Mate moscas que não existem. 13) Diga às pessoas que você pode ver sua aura. 14) Grite: "Abraço grupal", então force-as. 15) Faça caretas dolorosamente enquanto bate na sua testa e murmure: "Calem a boca, todos vocês, calem a boca!". 16) Abra sua pasta ou bolsa, e enquanto olha dentro, pergunte: "Tem ar suficiente aí dentro?" 17) Fique quieto e parado no canto do elevador, encarando a parede. 18) Encare outro passageiro por um tempo, e grite com horror: "Você é um deles!" e recue devagar. 19) Coloque uma marionete na mão e use-a para falar com os outros. 20) Escute as paredes do elevador com seu estetoscópio. 21) Faça barulhos de explosão quando alguém apertar um botão. 22) Encare outro passageiro por um
tempo, e fale: "Estou usando meias 23) Desenho um pequeno quadrado no chão com giz, e diga para os outros: "Este é o meu espaço".
:: DIÁLOGO :: Diálogo durante o jogo: - Esses comentaristas só falam
a mesma coisa. É um saco!
:: QUE ESTÁ ACONTECENDO
NA TURQUIA? :: Se você está lendo isto é porque entrou num vórtex paralelo e precisa de ajuda. Se não está lendo isto, é porque você provavelmente não existe, e, por conta disso, tem coisas melhores com que se preocupar. (existir, por exemplo)
"Estamos todos na mesma canoa",
diria a senhorinha Cunegundes, numa situação como essa.
Mas eu, (eu e Aliéksiei, meu besouro seminarista, que me acompanha
numa latinha de álcool pelas estradas afora) estamos usando
nosso interminável tempo para coisas úteis - já
conhecemos todos os desocupados dessa cidade, dessa e de outras, também
aprendi a jogar pôquer e a cuspir fogo no farol, sem ser pega
pela polícia nem chamuscar minha testa. Um dia desses ocupei
o telhado (os gatos e mariposas tb estão na categoria "desocupados",
mas eles ainda caçam pra sobreviver) e fiquei de barriga pra
cima, durante muitas dezenas de horas (parei pra fazer xixi e tirar
uma soneca - ao mesmo tempo). Acabei lendo um livro maior que "Técnicas
de Refrigeração e Ar Condicionado", em um tempo
recorde, e consegui tirar uma coisa muito útil dele: o nome
do meu besouro. Sim. Literatura é arte, diria meu bisavô
Marciro, aquele que não tinha sobrenome. Li muitas traduções
baratas também, como o manual do videocassete (em japonês),
um livrinho de hai-kais (em idioma esquisito) e um encartezinho de
um cd assustador (em élfico). No Cinema, já me olham
estranho e me consideram funcionária. Na padaria, os velhinhos
me colocam algumas moedas no degrau e às vezes um pedaço
de broa de milho, seguido de um "Bênça". Em
casa, já derrubei o armário a marretadas e agora aprendi
a consertar o piso, com a benevolente orientação de
um tiozinho de macacão que vira-e-mexe vem martelar por aqui,
ou então estamos muito enganados e ele realmente só
quer levar a televisão pra casa. Enfim, estamos produzindo
em um ritmo avassalador. A qualquer momento devemos (eu e o artrópode)
ter um ataque de nervos, um enfarte, uma parada de mãos ou
ainda uma daquelas de ônibus, que são as melhores. E
aviso: já chegamos no glorioso estado do velho bêbado,
ele até sente inveja de nós. Com licença que
a encomenda de sequilhos chegou.
Este Zine é impessoal. Computadores meticulosamente programados desenvolvem os textos, se emocionam, revisam e publicam a visão neutra e imparcial da coisa toda. O único responsável é a instituição "Da Redação".
Você está recebendo o !!DAMN!! Zine porque (oinc!) estava na lista de indivíduos manquitolas da lista negra dos Illuminati. Ou então, ou então! Você está recebendo o !!DAMN!! Zine porque foi um dos 139 mil nomes escolhidos entre todos os possíveis do mundo, sorteados em uma grande urna chinesa. Você e Li-Ching-Yang. Caso não queira voltar a receber este monte de bobagens, mande um e-mail para vmbarbara@brfree.com.br, e escreva na linha de assunto: "Me deixem em paz, pelas barbas de Tutatis!". Se quiser que mais vítimas recebam o Zine, também escreva para esse e-mail mandando o endereço dos condenados e o número e senha de suas contas bancárias. Se quiser usar cartão de crédito, basta fornecer o número. !!DAMN!! Zine - o zine das coisas que foram, das coisas que são o que são, das que não são o que não são e das que poderiam vir a ser o que não foram. Perfeito para forrar o chão de barracas fajutas e para embrulhar mortadela. Parceiro do tablóide norte-americano "O Sol da Meia Noite", mas não olhe pra trás porque tem um fauno fritando ervilhas nas suas omoplatas. "Em verdade, em verdade vos digo: Aquele que ri cuidado para que não babe".
|
2005
Vanessa Barbara |