"Ter encontrado a própria personalidade e saber afirmá-la é descobrir o prazer da autenticidade pessoal. Muitas vezes, basta bem pouco. Busquei durante longo tempo e apercebi-me de que um pequeno tom claro nos cabelos era o bastante para criar a perfeita harmonia com a cor do rosto e com os olhos. Com o dourado de Récital, de matiz muito natural, não mudei: mais do que nunca sou eu mesma" (anúncio em revista feminina, citado por Jean Baudrillard) Ontem de manhã percebi que eu – mesmo com toda a minha elegância – não era eu mesma. Ou melhor: olhei-me no espelho e acabei concluindo que eu era pouco de mim mesma. Deve ser por causa da miopia. Enquanto procurava um aparelho de corar bochechas (exercite você também os músculos da face!), olhei para o nada e percebi outra coisa terrível: nem a Poodle, minha gata persa, tinha a personalidade que devia. Era brasileira. Entrei em pânico. Encontrei a máquina de amaciar bochechas escondida sob a agenda de telefones – passei, então, a procurar o nome da minha psicóloga. Naturalmente não estava na letra P, muito menos na G (ela bem poderia se chamar Gislaine, Géssica, Galeana, Gertrude, como era o nome dela? Girafa. Não, ela só se parecia com uma), então desisti. Nos dez minutos subseqüentes, pensei em fazer ovos cozidos, escovar a Poodle, praticar aromaterapia e me suicidar. Não tudo ao mesmo tempo, pois o que veio primeiro foi o desejo de me jogar da janela. Com os pés no beiral, olhando para a imensidão do horizonte, não revi as melhores cenas da minha vida, mas lembrei-me que havia esquecido meus novos brincos na cômoda (ninguém deveria morrer sem bons brincos), e desci para fazer o café. Minha consciência, então, impeliu-me a demonstrar gratidão e solidariedade aos entes queridos, de modo que requisitei pela Internet uma passagem área (sem escalas) com destino à Pérsia, na classe executiva, para mim e a Poodle. Primeiro os problemas menores, pensei, e já imaginava quanto teria que pagar para receber um visto e encaminhar o pedido de naturalização, quando descobri que a Pérsia não existia. Como a Bulgária, mas pior: nem estava no mapa. Estiquei a mão e abri a agenda de telefones, pensava que na letra P deveria constar a Professora de geografia, o Padeiro ou a Pérsia, mas, invariavelmente, nada estava registrado por lá. Tranquei a Poodle no armário da cozinha e tentei me concentrar. Devia haver um modo de ser, mais do que nunca, eu mesma. Penas de ganso – isso mesmo, se eu tivesse um chapéu de penas de ganso ninguém mais iria se parecer comigo. Bom, talvez um ganso. Pensei em um implante, para lançar um estilo de sobrancelhas que iriam até o topo da testa, mas achei que pudesse ficar esquisito em excesso. Eu tinha que realizar algo definitivo. Mais chocante que uma tatuagem. Mais chique que um MBA em Massachussets. Mais romântico que escrever um livro de capa dura. A Poodle miava, e eu tive a idéia definitiva: dedos. Retirei o mindinho do pé esquerdo, com uma espátula de depilação, coloquei no pote de formol e levarei ao meu cirurgião plástico (letra C), que sem dúvida fará um implante na minha mão direita, e então eu terei seis dedos. Com o tempo, sete. Estou tão feliz com a minha nova personalidade.
Puntila – Matti, você
é meu amigo? :: A NORA :: A Nora Barnacle Joyce :: OS PATOLÓGICOS :: Uma bela pata, das antigas, que acreditava na prole e na responsabilidade familiar (1), acabando de dar à luz uma maravilhosa ninhada de sete patinhos, e preocupadíssima com sua educação rápida - e eclética - num mundo em que a competição é verdadeiramente patológica (2), levou-os, certa manhã, à beira do regato para que eles iniciassem suas aulas de natação, prática fundamental à espécie. - Vejam só, amados filhinhos! - disse a pata, depois de verificar, com uma das patas, se a temperatura da água estava adequada. - Reparem bem na maneira correta e elegante de entrar na água (3). Dizendo isso, atirou-se na correnteza, pousando levemente à flor das águas. E ficou boiando, esperando, bobamente feliz, que os filhos a acompanhassem (4). Mas os patinhos, em vez de acompanhar a mãe, numa natural compulsão biossociológica, permaneceram na margem onde estavam dando risadinhas e virando a cara, numa atitude estranha e desrespeitosa (5). A mãe, furiosa, recorreu à sua autoridade moral, e berrou para que eles a acompanhassem. Ao que o mais atrevido dos patinhos (6), naturalmente feito porta voz dos outros, dirigiu-se a ela da seguinte maneira: - Mãe, você deve ser mesmo uma velha supremamente idiota supondo que nós vamos arriscar nossas vidas tão tenras da maneira tola porque você está arriscando a sua. Que você não tenha aprendido nada através da existência e não saiba o risco que corre se atirando num elemento tão estranho e imprevisível, ou está se arriscando simplesmente porque lhe resta muito pouco de vida, isso é lá com você. Mas nós, os jovens, sabemos mais; não nos atemos nem à filosofia do absolutismo biossocial, nem às besteiras do condicionamento total. Pois se é verdade que, devido à lei natural desconhecida para nós - nos recusamos a testá-la sem salva-vidas, pois pode ser coisa absolutamente individual -, você flutua confortavelmente (apesar do seu peso, gorda como está), isso pode não acontecer conosco. Nos atirarmos à água pode nos ser fatal. Portanto, madame, esteja certa de que só agiremos no sentido de experiências aquáticas a partir de um conhecimento mais profundo - o duplo sentido é involuntário - do líquido elemento. No momento, porém, dispensamos a sua orientação e permanecemos em terra. Tchau, bela! Terminando, o patinho líder, seguido dos irmãos, saiu correndo veloz e alegremente em direção à granja. Mas, quando iam atravessando a estrada, os sete foram esmagados por um caminhão. MORAL: QUASE SEMPRE A GENTE EVITA O PERIGO ERRADO. Notas :: PORTOS NÃO PRESTAM
:: Portos não prestam -- os navios apodrecem e os homens vão para o diabo.
:: ASSIM APRENDI A NÃO ME PREOCUPAR E A GOSTAR DO CÃO
:: A reunião com os acionistas transcorria tranqüilamente quando ele percebeu uma protuberância branca no pescoço. Cutucou um pouco com a tampa da caneta, pediu pro colega ver se tinha alguma coisa, zangou-se com o olhar indiferente e começou a se preocupar. Enquanto o sr. Koslovsky demonstrava o fluxo de rendimentos anuais no setor de legumes, Murphy afastou a cadeira e rumou ao banheiro, com as mãos em cima da coisinha inflamada. Era uma bolha do tamanho de um besouro. Coçava. Mas não havia problema, era só passar uma pomada e deixar secar. Isto, claro, se a verruga não estivesse crescendo. Voltou para a mesa e desculpou-se com risadinhas tímidas: "era alarme falso, minha esposa está prestes a ter um bebê. Continue, por favor, senador Otterson". Os investimentos em mamão papaia agregaram um aumento líquido em 33% das vendas no trimestre, o que sem dúvida fez com que os índices Perrier quintuplicassem em velocidade admirável, isso sem falar no inchaço descomunal dos itens hortifrutigranjeiros, que dilataram assustadoramente como a verruga daquele moço sentado no canto. (Cof). Que foi, Murphy? Está passando bem? Tinha agora o tamanho de uma jaboticaba. Ele precipitou-se pela porta e chegou à rua, procurando um médico. A bolota crescia como um inhoque cozido. E machucava o colarinho terrivelmente, incomodava o queixo, era uma pelota horrível. No caminho para o hospital, ainda com as mãos no pescoço, ele se atrapalhou e tropeçou em sua própria calda. Sim, acontece: no calcanhar de Murphy havia uma tímida cauda, diminuta mas substancial, escapando de dentro do tênis. Começou a chorar. Tinha uma bola de golfe no pescoço, uma calda no calcanhar e provavelmente aquela meleca se movendo na nuca era uma futura guelra. A respiração, pelo menos, estava mais livre. O homem pôs-se de pé e foi andando, afobadamente, em direção ao pronto-socorro mais próximo. Quando chegou (teve o cuidado de esconder a cauda e a guelra, que afinal de contas eram mais esquisitas que a Verruga), encontrou sua esposa em trabalho de parto. Calculou que seria um tremendo egoísmo, caso ele abandonasse a moça para cuidar de suas guelras, por isso ficou ao lado da cama segurando a mão da criatura a gritar. Quanto tempo demora para sair a coisinha dali de dentro? Perguntou para a enfermeira, que calculou umas 6 horas. Talvez oito. A bolha estava doendo, e um médico perguntou se ele tinha caxumba. Não se preocupe, é só uma gosma deformada, não há de ser nada contagioso. A esposa gritava. Pedia para que ele a soltasse, Murphy, você está tão pegajoso. De súbito, aconteceu o que o homem temia: era impossível desprender a mão dali. A enfermeira veio ajudar, e também um garotinho gripado, a secretária, o segurança, até o cirurgião-chefe; então as mãos se separaram e ele descobriu que tinha ventosas. Estava transformando-se, creio, em um autêntico homem-peixe, só que os médicos nem ligaram. Ele deixou a esposa fazendo o que era preciso, e rumou à Farmácia para comprar remédios. Estava apavorado. O atendente, sempre de bom humor (tinha dentes brancos e namoradas belíssimas), declarou que o moço era alérgico à pomada que passara na bolha – isso explicava os efeitos colaterais. Alergia a pomada e band-aid, ainda acrescentou. Prescreveu meia dúzia de calmantes, aplicou injeções de água e mandou o homem ir dormir. Mas ele ainda estava desesperado. Dirigiu oitenta quilômetros, até a Universidade Federal, e pediu para ser analisado imediatamente. O estudioso de plantão encarou as guelras, brincou de estica-e-espicha, divertiu-se um bocado e diagnosticou a existência de um pequeno olho dentro do ouvido. Provavelmente era apenas uma pupila falsa, sem qualquer capacidade visual, mas por via das dúvidas seria necessária uma pequena intervenção cirúrgica. Vão retirar meu olho? O professor riu. Não, o que é isso: vão implantar outro desses no ouvido esquerdo, para harmonizar o seu corpo. A acupultura odiaria saber que você tem um olho sim, outro não. Precisamos alcançar o equilíbrio pleno, meu jovem. (continua)
Paladino domador de cavalos alados procura jovem elfa que monte unicórnios para realizar um cena bucólica em uma terra distante.
http://www.estado.estadao.com.br/editorias/2001/08/23/pol008.html A escritora Colette contava que sua mãe tinha uma tartaruga chamada Charlotte que dormia durante todo o inverno. A menina Colette sabia que o inverno tinha acabado quando sua mãe anunciava: "Charlotte s'eveille, c'est le printemps." Não importava que o calendário não concordasse com a tartaruga. Podia estar nevando: se Charlotte abrisse os olhos, era primavera. (...) Também tem muita gente que só reconhece a importância de qualquer notícia quando ela acorda a sua tartaruga. Há um certo exagero, claro, em viver eternamente ligado nos fatos e preocupado com o mundo. Num mundo em crise, isso é receita certa para a neurose - por mais que seu pequeno feudo afetivo esteja em ordem. Mas sempre penso na mãe da Colette quando encontro alguém despreocupado, idilicamente alheio à situação. E penso, com uma certa inveja: para esse, a Charlotte ainda não acordou, não importa o que digam os jornais.
(...) Bom, para os confusos nós temos um Plano Especial de Verão, composto por 3 Zines de capa dura, oito lesmas de plástico, um balde de areia em forma de monstro marinho e uma semana grátis de terapia especializada. Ideal para saber se você ama ou odeia uma coisa (eu assinei esse Plano pra descobrir se eu gostava ou não de comer acelga cozida, e hoje sei que adoro acelga, mas já não sei diferenciá-la de uma berinjela de plástico ou de um tufo de pêlos, mas isso é outra história), enfim, creio que você esteja precisando desse acompanhamento psiquiátrico, pra definir exatamente se você quer continuar recebendo o Zine ou prefere um banho de soda cáustica. Soou tão ofensivo, mas na verdade foi pacífico. Bom, não se afobe, você tem mais algumas edições de cortesia da casa, antes de ter que doar-nos sua alma ou uma quantia equivalente em dinheiro. Mas, ah! Você pode colaborar escrevendo para nossas humildes páginas, enviando textos de outras pessoas ou apenas mandando emails sorridentes e confusos como este aí abaixo, para alegrar nossas enfadonhas tardes de primavera. Na verdade, não faço idéia de quem você seja, acho que o Zine já criou vida própria e logo vai assassinar sua criadora e sair pelas ruas aterrorizando as pessoas, com sua japona amarela e galochas de lavar quintal. Mas enfim. Vida longa e próspera.
Este Zine é impessoal. Computadores meticulosamente programados desenvolvem os textos, se emocionam, revisam e publicam a visão neutra e imparcial da coisa toda. O único responsável é a instituição "Da Redação".
Você está recebendo o !!DAMN!! Zine porque (oinc!) estava na lista de indivíduos manquitolas da lista negra dos Illuminati. Ou então, ou então! Você está recebendo o !!DAMN!! Zine porque foi um dos 139 mil nomes escolhidos entre todos os possíveis do mundo, sorteados em uma grande urna chinesa. Você e Li-Ching-Yang. Caso não queira voltar a receber este monte de bobagens, mande um e-mail para vmbarbara@brfree.com.br, e escreva na linha de assunto: "Me deixem em paz, pelas barbas de Tutatis!". Se quiser que mais vítimas recebam o Zine, também escreva para esse e-mail mandando o endereço dos condenados e o número e senha de suas contas bancárias. Se quiser usar cartão de crédito, basta fornecer o número. !!DAMN!! Zine - o zine das coisas que foram, das coisas que são o que são, das que não são o que não são e das que poderiam vir a ser o que não foram. Perfeito para forrar o chão de barracas fajutas e para embrulhar mortadela. Parceiro do tablóide norte-americano "O Sol da Meia Noite", mas não olhe pra trás porque tem um fauno fritando ervilhas nas suas omoplatas. "Em verdade, em verdade vos digo: Aquele que ri cuidado para que não babe".
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2005
Vanessa Barbara |