- I -
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ÚLTIMA OBSERVAÇÃO ESTÚPIDA :: É conveniente sempre haver coisas sobre as quais nós não temos controle.
:: JOGO DA AMARELINHA :: Toco a sua boca, com um dedo toco o contorno da sua boca, vou desenhando essa boca como se estivesse saindo da minha mão, como se pela primeira vez a sua boca se entreabrisse, e basta-me fechar os olhos para desfazer tudo e recomeçar. Faço nascer, de cada vez, a boca que desejo, a boca que a minha mão escolheu e desenha no seu rosto, e que por um acaso que não procuro compreender coincide exatamente com a sua boca, que sorri debaixo daquela que a minha mão desenha em você. Você me olha, de perto me olha, cada vez mais de perto, e então brincamos de cíclope, olhamo-nos cada vez mais de perto e nossos olhos se tornam maiores, se aproximam uns dos outros, sobrepõem-se, e os cíclopes se olham, respirando confundidos, as bocas encontram-se e lutam debilmente, mordendo-se com os lábios, apoiando ligeiramente a língua nos dentes, brincando nas suas cavernas, onde um ar pesado vai e vem com um perfume antigo e um grande silêncio. Então, as minhas mãos procuram afogar-se no seu cabelo, acariciar lentamente a profundidade do seu cabelo, enquanto nos beijamos como se tivéssemos a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de fragância obscura. E se nos mordemos, a dor é doce; e se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo de fôlego, essa instantânea morte é bela. E já existe uma só saliva e um só sabor de fruta madura, e eu sinto você tremular contra mim, como uma lua na água.
:: UAU :: Peter Lorre: Você me despreza,
não é?
:: O AMOR ACABA :: O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas; na acidez da aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma, que não veio; e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois polvos de solidão; como se as mãos soubessem antes que o amor tinha acabado; na insônia dos braços luminosos do relógio; e acaba o amor nas sorveterias diante do colorido iceberg, entre frisos de alumínio e espelhos monótonos; e no olhar do cavaleiro errante que passou pela pensão; às vezes acaba o amor nos braços torturados de Jesus, filho crucificado de todas as mulheres; mecanicamente, no elevador, como se lhe faltasse energia; no andar diferente da irmã dentro de casa o amor pode acabar; na epifania da pretensão ridícula dos bigodes; nas ligas, nas cintas, nos brincos e nas silabadas femininas; quando a alma se habitua às províncias empoeiradas da Ásia, onde o amor pode ser outra coisa, o amor pode acabar; na compulsão da simplicidade simplesmente; no sábado, depois de três goles mornos de gim à beira da piscina; no filho tantas vezes semeado, às vezes vingado por alguns dias, mas que não floresceu, abrindo parágrafos de ódio inexplicável entre o pólen e o gineceu de duas flores; em apartamentos refrigerados, atapetados, aturdidos de delicadezas, onde há mais encanto que desejo; e o amor acaba na poeira que vertem os crepúsculos, caindo imperceptível no beijo de ir e vir; em salas esmaltadas com sangue, suor e desespero; nos roteiros do tédio para o tédio, na barca, no trem, no ônibus, ida e volta de nada para nada; em cavernas de sala e quarto conjugados o amor se eriça e acaba; no inferno o amor não começa; na usura o amor se dissolve; em Brasília o amor pode virar pó; no Rio, frivolidade; em Belo Horizonte, remorso; em São Paulo, dinheiro; uma carta que chegou depois, o amor acaba; uma carta que chegou antes, e o amor acaba; na descontrolada fantasia da libido; às vezes acaba na mesma música que começou, com o mesmo drinque, diante dos mesmos cisnes; e muitas vezes acaba em ouro e diamante, dispersado entre astros; e acaba nas encruzilhadas de Paris, Londres, Nova York; no coração que se dilata e quebra, e o médico sentencia imprestável para o amor; e acaba no longo périplo, tocando em todos os portos, até se desfazer em mares gelados; e acaba depois que se viu a bruma que veste o mundo; na janela que se abre, na janela que se fecha; às vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de bolsa, que continua reverberando sem razão até que alguém, humilde, o carregue consigo; às vezes o amor acaba como se fora melhor nunca ter existido; mas pode acabar com doçura e esperança; uma palavra, muda ou articulada, e acaba o amor; na verdade; o álcool; de manhã, de tarde, de noite; na floração excessiva da primavera; no abuso do verão; na dissonância do outono; no conforto do inverno; em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba.
:: ANNIE HALL ::
Por que eu cataria pulgas?, você deve estar perguntando, e eu nunca saberia responder. Só sei que me colocaram aqui nesta estufa horrorosa, cercado de materiais químicos à minha volta, tubos de ensaio, conta-gotas, frascos de amônia, olhando fixamente para uma luz de publicitário e me pediram: "ei, Norbert, pare de esfregar o chão e venha aqui um instante." Sim, pois não, desculpe, boa noite, deseja alguma coisa? Parece que precisavam de um modelo pra colocar na capa da Readers Digest, então eu achei bonito e fui posar de cientista catador de pulgas. Enquanto isso, uma repórter chamada Jucemara, muito criativa e neurótica, inventava um certo melodrama de um biólogo que estudava pulgas e mosquitos da dengue, e acabou se tornando uma lamínula gigante, não se sabe como. Ela pediu um nome, e eu disse: Ernest Hemingway, e até soletrei pra coitadinha, pois ela achou bastante charmoso e colocou na reportagem. Sugeri também que ele não se transformasse em lamínula, mas em uma estante para tubos de ensaio - o que ela refutou prontamente, a dizer "ninguém mexe! na lamínula ninguém mexe!". Maluca. Começo a achar que ela tem algo de pessoal e não resolvido com a dita lâmina. Voltei a esfregar o chão.
- Em todos [os caminhos] - articulei
com um certo temor - agradeço e venero sua recriação
do jardim de Ts’ui Pen.
:: SOBRE O PLÁGIO :: Uma vez quando eu tava na segunda série eu fiz uma redação sobre potrinhos e a professora disse que eu tinha copiado. (Silêncio)
:: BOA NOTÍCIA :: Quando já se está quase sem alma e se tem consciência disso, é porque ainda existe.
:: CORRESPONDÊNCIA :: E então era tudo uma farsa. Disse alguém, o que seguramente
não tem absolutamente nada a ver com o assunto desta epístola. Na verdade ando tão gosmenta e slow motion que não ando com vontade de fazer coisa alguma, e isso inclui formar idéias no cérebro pra responder emails da maneira que se deve. Isso se deve ao fato de que sexta-feira matei um simpático mosquito vascaíno, com listras brancas e pretas nas delicadas patinhas, e ele tinha acabado de se banquetear com meus fluidos internos venais. Em outras palavras, ando tendo conversas interessantes com minha amiga dengue, que me acompanha gentilmente ao mercado, à papelaria, à casa de carnes, ao banheiro, ao inferno, à exaustão e aos demais lugares, mas não há de ser nada. Continuo, portanto, procurando o que restou da minha coerência, sempre tão estimada. Eu ia escrever algo sobre a relação existente entre as cores das paredes, a revoada de muriçocas, o comprimento da saia das pessoas e o humor matutino dos cidadãos noturnos, mas vou deixar pra outra vez porque, na boa, estou devendo uma séria entrevista com meu primo travesseiro. Mas, voltando ao assunto, eu gosto de parágrafos (pena que eles não gostem de mim). Só não costumo comentá-los, deixe que vivam sozinhos e se bastem uns aos outros. Um dia farão filhinhos e eu conversarei, em particular, com cada um deles, isso quando a noção de sanidade voltar a visitar o recinto. O que, seguramente, não ocorrerá tão cedo, a não ser que. Droga, perdi o que eu ia dizer, de novo. Bom, estou indo porque ainda há
muito o que dormir neste mundo. (...)
Este Zine é impessoal. Computadores meticulosamente
programados desenvolvem os textos, se emocionam, revisam e publicam
a visão neutra e imparcial da coisa toda. O único responsável
é a instituição "Da Redação".
## Você está recebendo o !!DAMN!! Zine porque (oinc!) estava na lista de indivíduos manquitolas da lista negra dos Illuminati. Ou então, ou então! Você está recebendo o !!DAMN!! Zine porque foi um dos 139 mil nomes escolhidos entre todos os possíveis do mundo, sorteados em uma grande urna chinesa. Você e Li-Ching-Yang. Caso não queira voltar a receber este monte de bobagens, mande um e-mail para vmbarbara@brfree.com.br, e escreva na linha de assunto: "Me deixem em paz, pelas barbas de Tutatis!". Se quiser que mais vítimas recebam o Zine, também escreva para esse e-mail mandando o endereço dos condenados e o número e senha de suas contas bancárias. Se quiser usar cartão de crédito, basta fornecer o número. ## !!DAMN!! Zine - o zine das coisas que foram, das coisas que são o que são, das que não são o que não são e das que poderiam vir a ser o que não foram. Perfeito para forrar o chão de barracas fajutas e para embrulhar mortadela. Parceiro do tablóide norte-americano "O Sol da Meia Noite", mas não olhe pra trás porque tem um fauno fritando ervilhas nas suas omoplatas. "Em verdade, em verdade vos digo: Aquele que ri cuidado para que não babe".
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2005
Vanessa Barbara |