A Hortaliça

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Trocadilhos tolos e conduta absurda
Edição #031, de 30 de agosto de 2002.
Dize-me com quem andas ou te darei um tiro.

hortalica@gmail.com

 

"Com pedaços de mim eu monto um ser atônito"
(Manoel de Barros)

 

EDITORIAL ou CÓCORAS
 

"Há povos de travesseiro e povos sem travesseiro" (Marcel Mauss)

Tinha uma criancinha de cócoras, parada no ponto de ônibus desde a semana passada (e aquilo já não surpreendia ninguém). Ela não sabia cuspir. Estava acocorada na calçada, triste como uma escrivaninha de mogno, quieta porque a garganta doía e ela não sabia cuspir. O antropólogo postulou: "cuspa", e ela erguia-lhe um par de olhos enormes, e mantinha-se carrancuda.

Na aldeia da garota, quando estavam no lamaçal ou sob calçadas sujas, todos sentavam-se sob seus calcanhares e punham-se a descansar. Acocoram-se normalmente - mas não cospem, de maneira nenhuma, sob quaisquer circunstâncias.

O antropólogo afastou os óculos, anotou alguma coisa em latim e descreveu, em minúcias, "de como é preciso puxar a saliva e preparar um grande cuspe gordo e molengo". A garotinha não estava muito interessada. Esperava uma linha de ônibus que só passava às quartas-feiras, e ainda era sábado.

O cientista achava essencial ensiná-la a sutil e milenar arte de produzir perdigotos. A menina suspirava e remexia um monte de graminhas no chão, papéis de bala, tocos de cigarro e pedras, sempre do alto de suas indiferentes cócoras. O antropólogo, já meio desesperado, conseguiu apoiar-se sob os calcanhares por um instante e tentou convencer a menina a cuspir. Ela tinha a garganta infeccionada, cheia de gominha de catarro, mas o assunto não a apetecia. Tenso, ele acabou sentando na calçada molhada, pois não conseguia ficar naquela posição de índio. Precisava de um transplante de cócoras, talvez. Crianças fazem isso naturalmente, pensou, então ele dividiu as sociedades e as meninas em dois grandes grupos: os que acocoram-se e os que têm cadeiras, os que descansam naturalmente e os que usam pufe. Há ainda os cubanos, que não têm assento de privada; as mulheres, que pairam como beija-flores ao fazer xixi; e os campistas e chineses, ou campistas chineses, que fazem suas coisas em cima de grandes buracos. Depois jogam tudo nas plantações de eucalipto.

Após estas observações, percebeu que a criancinha ainda estava ali, e dizia algo como "eu quero o meu macaco". O meu macaco, eu quero o meu macaco, ela não parava de repetir. Descobriu que a menina tinha perdido seu pequeno primata de pelúcia, e precisava de outro. Queria, também, comprar uma bicicleta.

O meu macaco. Num acesso de genialidade, o antropólogo ofereceu-lhe vinte centavos por cusparada. Descontados os impostos. A garota levantou, finalmente, os olhos gigantes, ameaçou um sorriso e exclamou: "eu quero o meu macaco".

Foi a primeira da aldeia a aprender a cuspir.

 

:: COUVE-FLOR ::
por Manoel de Barros

Prego é uma coisa indiscutível.

 

:: OS QUE PASSAM POR NÓS CORRENDO ::
por F. Kafka, em "A Contemplação"

Quando se vai passear à noite por uma rua e um homem já visível de longe – pois a rua sobe à nossa frente e faz lua cheia – corre em nossa direção, nós não vamos agarrá-lo mesmo que ele seja fraco e esfarrapado, mesmo que alguém corra atrás dele gritando, mas vamos deixar que ele continue correndo.

Pois é noite e não podemos fazer nada se a rua se eleva à nossa frente na lua cheia e além disso talvez esses dois tenham organizado a perseguição para se divertirem, talvez ambos persigam um terceiro, talvez o primeiro seja perseguido inocentemente, talvez o segundo queira matar e nós nos tornássemos cúmplices do crime, talvez os dois não saibam nada um do outro e cada um só corra por conta própria para sua cama, talvez sejam sonâmbulos, talvez o primeiro esteja armado.

E finalmente – não temos o direito de estar cansados, não bebemos tanto vinho? Estamos contentes por não ver mais nem o segundo homem.

 

:: HISTÓRIA DO RATO DO CAMPO ::
por Lewis Carroll

- Conte uma estória! – disse a Lebre de Março.
- Sim, por favor! – implorou Alice.
- E seja rápido – acrescentou o Chapeleiro -, senão você dorme de novo antes de acabar.
- Era uma vez três irmãzinhas – começou o Rato-do-Campo apressadíssimo – e seus nomes eram Elsie, Lacie e Tillie; elas viviam no fundo de um poço...
- E de que viviam? – perguntou Alice, que estava sempre interessada em questões de comer e beber.
- Viviam de melado – respondeu o Rato do Campo, depois de alguns minutos de reflexão.
- Não pode ser – observou Alice com gentileza. – Teriam ficado doentes, entende?
- E ficaram – disse o Leirão. – Muito doentes.
Alice tentou imaginar esse extraordinário modo de vida, mas ficou bastante confusa. Continuou, pois, a perguntar: - Mas por que viviam no fundo de um poço?
- Aceita um pouco mais de chá – disse a Lebre de Março com ar muito compenetrado.
- Não tomei nenhuma ainda – replicou Alice com ar ofendido. – Então como é que posso tomar mais?
- Você quer dizer que não pode tomar menos – observou o Chapeleiro. – É bem mais fácil tomar mais do que tomar nada.
- Ninguém pediu sua opinião – disse Alice.
- E agora, quem é que está fazendo comentários pessoais? – perguntou o Chapeleiro com ar de triunfo.


:: LIBERTAD ::
da Liberdade, amiga miúda da Mafalda

Una pulga no puede picar a una locomotora, pero puede llenar de ronchas al maquinista.

 

:: QUESTÕES VITAIS ::
há, sim, pessoas mais doentes que outras

----- Original Message -----
> > From: "Ouvidoria do Metrô" <ouvidoria@metrosp.com.br>
> > To: vanessa
> > Sent: Monday, August 26, 2002 1:15 PM
> > Senhora Vanessa,

> > Agradecemos sua comunicação e estamos alertando nossos operadores de trens para tomarem cuidado com relação à concordância verbal em nossos avisos sonoros.

Obrigada,
VERA MELO
Ouvidora.


:: COMO ::
por Jorge de Lima

Porquanto
como conhecer as coisas senão sendo-as?

 

:: NOTURNO ::
por Marcelo Coelho

É com essa sensação, portanto, que cada um se afasta do quarto coletivo e encontra solidariedade no alívio covarde de todos os que, deixando o hospital, recuperam suas crianças, reencontram nelas a simplicidade canina da vida, que gritam e que riem, e atacam-se na convivência com o resto e consigo mesmas; reencontro geral. Deixam-se os moribundos entregues à tarefa extrema de serem eles mesmos, de manter um mínimo de passado na desgraça, no egoísmo compartilhado de um quarto de hospital do Inamps, quarto onde todos, pouco a pouco, morrem do lado porque se trata, imagem de um destino, de hospital do Inamps que coletiviza a morte e que, indiferente, morrendo ele próprio, como nunca é demais dizer, entrega-nos a uma mesma miséria e a um mesmo medo.

Assim o seu esforço, de moribundos, é o de não se igualarem nunca. Mantêm, quando tudo já está perdido, a fisionomia, o amor-próprio, os direitos, a honra, o seu estilo de estar no mundo, um último sinal longínquo deles mesmos, como uma luz que dissesse, de tempos em tempos, estou aqui, e você, fique mais um pouco, tudo vai bem, a ordem a que me acostumo não é má neste hospital, a gente se habitua, os dias passam enquanto eu vivo, não vá, não vá, os olhos pedem mutuamente, mas sempre se diz adeus.

 

:: SOBRE O NADA ::
por Manoel de Barros

Apenas de mês em mês aparecia uma carreta de mascate, puxada por 4 juntas de bois no fim daquele lugar. Levava caramelos, bolachinhas, pentes, argolas para laço, extrato Micravel, peças de algodoin para fazer saia branca, filó de mosqueteiro, vidros de arnica para curar machucaduras, brincos de peschibeque, - essas coisinhas sem santidade...

Nossa mãe comprava arnica e bolachinhas.
Dona Maria, mulher do Lara, comprava brincos e extrato Micravel.
Meu avô abastecia o abandono.
De tudo haveria de ficar para nós um sentimento longínquo de coisa esquecida na terra –
Como um lápis numa península.

 

:: DICIONÁRIO DAS IDÉIAS FEITAS ::
por Gustave Flaubert, em Bouvard e Péchuchet

Frontispício -- Lugar excelente para os grandes homens.
Funcionário -- Inspira respeito, qualquer que seja a função que exerça.
Fatura -- Sempre muito alta.
Faisão -- Muito chique num jantar.
Feudalismo -- Não ter a respeito nenhuma idéia precisa, mas indignar-se contra.
Febre -- Prova de sangue forte. -- É causada pelas ameixas.
Fundamento -- Todas as notícias não têm fundamento.
Fronte -- Larga e calva é sinal de talento.
Frisar -- Em se tratando de cabelos, não convém ao homem.
Fulminar -- Belo verbo.
Fulminações do Vaticano -- Rir-se delas.


:: UM CIENTISTA QUE CATA PULGAS ::
A Reader´s Digest dá o tom, nós completamos as matérias.

A seção da Reader's Digest está suspensa até decisão em contrário, ou até que alguém compre este monte de revistas inúteis por 3 coxinhas e 1 passe.


:: SUGESTÕES PARA ATRAVESSAR AGOSTO ::
por Caio Fernando Abreu, em 6 de agosto de 1985 no Estado e em http://caio.itgo.com/fram_ind.htm

Para atravessar agosto é preciso antes de mais nada paciência e fé. Paciência para cruzar os dias sem se deixar esmagar por eles, mesmo que nada aconteça de mau; fé para estar seguro, o tempo todo, que chegará setembro -- e também certa não-fé, para não ligar a mínima às negras lendas deste mês de cachorro louco. É preciso quem sabe ficar-se distraído, inconsciente de que é agosto, e só lembrar disso no momento de, por exemplo, assinar um cheque e precisar da data. Então dizer mentalmente ah!, escrever tanto de tanto de mil novecentos e tanto e ir em frente. Este é um ponto importante: ir, sobretudo, em frente.

Para atravessar agosto também é necessário reaprender a dormir, dormir muito, com gosto, sem comprimidos, de preferência também sem sonhos. São incontroláveis os sonhos de agosto: se bons, deixam a vontade impossível de morar neles, se maus, fica a suspeita de sinistros angúrios, premonições. Armazenar víveres, como às vésperas de um furacão anunciado, mas víveres espirituais, intelectuais, e sem muito critério de qualidade. Muitos vídeos de chanchadas da Atlântida a Bergman; muitos CDs, de Mozart a Sula Miranda; muitos livros, de Nietzche a Sidney Sheldon. Controle remoto na mão e dezenas de canais a cabo ajudam bem: qualquer problema, real ou não, dê um zap na telinha e filosoficamente considere, vagamente onipotente, que isso também passará. Zaps mentais, emocionais, psicológicos, não só eletrônicos, são fundamentais para atravessar agostos. Claro que falo em agostos burgueses, de médio ou alto poder aquisitivo. Não me critiquem por isso, angústias agostianas são mesmo coisa de gente assim, meio fresca que nem nós. Para quem toma trem de subúrbio às cinco da manhã todo dia, pouca diferença faz abril, dezembro ou, justamente, agosto. Angústia agostiana é coisa cultural, sim. E econômica. Mas pobres ou ricos, há conselhos - ou precauções- úteis a todos. O mais difícil: evitar a cara de Fernando Henrique Cardoso em foto ou vídeo, sobretudo se estiver se pavoneando com um daqueles chapéus de desfile a fantasia categoria originalidade... Esquecê-lo tão completamente quanto possível (santo ZAP!): FHC agrava agosto, e isso é tão grave que vou mudar de assunto já.

Para atravessar agosto ter um amor seria importante, mas se você não conseguiu, se a vida não deu, ou ele partiu - sem o menor pudor, invente um. Pode ser Natália Lage, Antonio Banderas, Sharon Stone, Robocop, o carteiro, a caixa do banco, o seu dentista. Remoto ou acessível, que você possa pensar nesse amor nas noites de agosto, viajar por ilhas do Pacífico Sul, Grécia, Cancún ou Miami, ao gosto do freguês. Que se possa sonhar, isso é que conta, com mãos dadas, suspiros, juras, projetos, abraços no convés à lua cheia, brilhos na costa ao longe. E beijos, muitos. Bem molhados.

Não lembrar dos que se foram, não desejar o que não se tem e talvez nem se terá, não discutir, nem vingar-se, e temperar tudo isso com chás, de preferência ingleses, cristais de gengibre, gotas de codeína, se a barra pesar, vinhos, conhaques -tudo isso ajuda a atravessar agosto. Controlar o excesso de informações para que as desgraças sociais ou pessoais não dêem a impressão de serem maiores do que são. Esquecer o Zaire , a ex-Iugoslávia, passar por cima das páginas policiais. Aprender decoração, jardinagem, ikebana, a arte das bandejas de asas de borboletas - coisas assim são eficientíssimas, pouco me importa ser acusado de alienação. É isso mesmo, evasão, escapismos, explícitos.

Mas para atravessar agosto, pensei agora, é preciso principalmente não se deter demais no tema. Mudar de assunto, digitar rápido o ponto final, sinto muito perdoe o mau jeito, assim, veja, bruto e seco:.


:: LINKS DISPENSÁVEIS PARA CRIATURAS OCUPADAS ::
endereços importantes, ou nem tanto

Entrem aí. http://fraude.org. Descontos progressivos para grupos e terceira idade, prêmios em dinheiro para os 5 primeiros que escreverem textos com o meu nome e mandarem no meu lugar.


:: CORRESPONDÊNCIA ::
e-mails reais, bisonhos e suspeitíssimos, interceptados por um inocente nenúfar.

Olá, comitiva de amigos imaginários. (Por via das dúvidas, coloquei "Responder a todos" no campo do meu email, para que cada um dos companheiros estranhos que povoam sua mente possam receber mensagens. Fecha o parênteses.)

Eu sempre quis conhecer um Ivã. Sem o N, apenas Ivã, e que ele fosse chamado de Vã e fosse confundido comigo, até que progressivamente eu me transformasse em Ivã e ele em Vã, ou então eu em Ivã e ele em um aterrorizante novelo roxo de Lã, e pediríamos ajuda a Pã e droga eu preciso parar, agora. Ok. O calor está derretendo progressivamente meu cérebro, e juntando em um só órgão a testa, o cerebelo e a ponta do nariz. Em breve serei apenas um ser amorfo querendo casar com um ventilador.

Provavelmente você não se lembra do seu email, se é que se lembra do seu nome (o calor costuma derreter quaisquer tipos de coerência, que no seu caso já eram escassas), mas vou tentar responder de maneira lógica e coerente, ah, pros diabos. Eu nunca fiz isso mesmo.

O item 3 das tuas explanações me fez lembrar de uma tirinha da Mafalda. Ela e a amiga estão conversando: "Minha mãe amassa". "Amassa só?" "Sim, amassa só e salga a massa". "A massa se amassa na mesa". "A massa é sã." "Sim, essa massa é sã". E, indo embora: "O bom de ir pra escola é que a gente pode ter conversas literárias".

Vejo que meus comentários estão cada vez mais pertinentes.
Cubra-se de glórias (esse é o original!!),

V., descendente direta do avô Marciro, a última criatura do interior paulista a possuir apenas um nome, sem sobrenomes ou demais complementos. E é sério.

ps. Imagina só: Nome completo: Marciro. Remetente: Marciro. Dados pessoais: Marciro. Até me emociono quando digo isso.


:: VOCÊ PERGUNTA, NÓS NÃO DAMOS A MÍNIMA ::
Questionamentos sadios de uma sociedade doente.

??? Por que as nossas cabeças são feitas de chocolate?
(*nhac*) Estúpida.


EXPEDIENTE

Este Zine é impessoal, objetivo e imparcial. Computadores meticulosamente programados desenvolvem os textos, se emocionam, revisam e publicam a visão neutra e apolítica da coisa toda. O único responsável é a instituição "Da Redação".


... Para ser lido na maldita hora da noite em que tudo é engraçado (que vem logo após a hora em que nada faz sentido e antes daquela em que tudo faz sentido)
- Stephanie A.

## Você está recebendo o !!DAMN!! Zine porque (oinc!) estava na lista de indivíduos manquitolas da lista negra dos Illuminati. Ou então, ou então! Você está recebendo o !!DAMN!! Zine porque foi um dos 139 mil nomes escolhidos entre todos os possíveis do mundo, sorteados em uma grande urna chinesa. Você e Li-Ching-Yang. Caso não queira voltar a receber este monte de bobagens, mande um e-mail para vmbarbara@brfree.com.br, e escreva na linha de assunto: "Me deixem em paz, pelas barbas de Tutatis!". Se quiser que mais vítimas recebam o Zine, também escreva para esse e-mail mandando o endereço dos condenados e o número e senha de suas contas bancárias. Se quiser usar cartão de crédito, basta fornecer o número. ##

!!DAMN!! Zine - o zine das coisas que foram, das coisas que são o que são, das que não são o que não são e das que poderiam vir a ser o que não foram. Perfeito para forrar o chão de barracas fajutas e para embrulhar mortadela. Parceiro do tablóide norte-americano "O Sol da Meia Noite", mas não olhe pra trás porque tem um fauno fritando ervilhas nas suas omoplatas.

"Em verdade, em verdade vos digo: Aquele que ri cuidado para que não babe".


God is coming.
Look busy.



2005 Vanessa Barbara