Aos domingos, sempre arroz de forno. Garotas com suas saias rodadas e fitas roxas no cabelo, cachos escovados e sorrisos de loucos; bandejas decoradas com bolinhos e repolho; joelhos juntos e pernas cruzadas, guardanapos no colo, panelas quentes e luvas de amianto; senhoras piscando e dando pontapés nas crianças; pés descalços tocando as pernas da mesa e as pernas alheias; tia Hélice tocando piano, os estofados sempre os mesmos e os cinzeiros escuros em forma de folha que tanto horror sempre causam; os armários e mensagens de natal iguais como todos os domingos, tardes de 1917; os tapetes e o cãozinho antigo, a mesa cheia de doces e a senhoras e óculos com correntinhas a falar sobre a violência e o supermercado, blusinhas de seda e crianças pequenas, sempre pequenas a crescer e a nascer novamente; o arroz de forno sendo escavado com a ordem sistemática de uma equação ilógica; a luz tão fraquinha iluminando os perfis das pessoas que suportam o fardo de viver um domingo, em torno daquele cheiro terrível de desinfetante floral e vasos antigos: a família, os avós, as estátuas de sempre, o vazio constante e o horror, o horror.
Pessoa: Garotos?
Gomez: Crianças, por que vocês
odeiam o bebê? Pichações: Embora uma parte considerável do povo brasileiro não consiga ler mais do que o próprio nome, mensagens em muros ainda podem tocar um ou outro coração que só precise daquele empurrãozinho para cair na real. Infelizmente, o método tem sido desacreditado por desocupados maconheiros, que só conseguem escrever o próprio nome (ou apelido). As mensagens mais eficientes são as engraçadas, sarcásticas, irônicas ou cruéis. Muros e banheiros são muito óbvios, você pode fazer melhor do que isso usando a criatividade. Ande sempre com um pincel atômico no bolso, em caso de inspiração repentina. Se depredar propriedade pública ou alheia faz você se sentir mal, use giz. Isto até sugere umas questões interessantes a respeito da efemeridade da arte. Um dos meus alvos favoritos para pichações são as notas de 1 e 5 Reais, em que escrevo frases contra consumismo. Não-cooperação: As pessoas têm a mania de esperar de você que coopere no bom andamento das atividades diárias. Mas, sem infringir a lei, pode-se criar ruído no cotidiano. Alguns funcionários sonolentos talvez até agradeçam pela quebra na monotonia. Como na procura por locais inusitados para pichar, aqui vale também a criatividade. Balconistas do McDonald's são tão fáceis de constranger que quase não tem graça. Quase. Basta pedir algo que não seja um McMenu, para vê-los como baratas tontas. Vão ficar olhando como se você fosse um elefante cor-de-rosa, se pedir só um McFish e um café - e o McFish sem molho! Um requinte de crueldade seria ficar discutindo se pode trocar a Coca-Cola por um sorvete, ou as fritas grande por dois Mcnuggets. Quando for ao banco no horário de pico, com calças cargo e jaqueta, espalhe objetos metálicos por todos os bolsos e coloque um por um na caixinha do segurança. Nunca utilize os serviços automáticos. Além de colaborar para a criação de empregos, você ainda pode engrossar a fila no caixa. No ônibus, dê sempre a nota mais alta que tiver, ou pague a passagem com moedas de um centavo. Enfim, deu para pegar o espírito. Desinformação: Ressaltar a importância social da informação na aurora do terceiro milênio é absolutamente desnecessário. Necessário é avacalhar com ela. Modificar ou subtrair placas de trânsito gera situações divertidas. Só cuide para não fazer algo que possa resultar em feridos. As vítimas certamente vão se lembrar de poupar emissões de gás carbônico, da próxima vez. Setas de direcionamento em parques e museus, avisos de "proibido...", as plaquinhas de sexo na entrada dos banheiros, tudo isso dá caldo para um caos em pequena escala. Forjar notificações ou memorandos da diretoria de sua universidade ou empresa, ou ainda distribuir panfletos com os maiores absurdos ridículos e verdade dolorosas é pura alegria. Sempre, SEMPRE dê informações erradas para jornalistas. Demência: Faça de conta que é um imbecil. Escreva cartas e mais cartas para os jornais, reclamando de não importa o quê. Sentado de frente para aquela senhora no trem, fique olhando fixamente em seus olhos, até ela começar a chorar. Peide e arrote em público. Chame os amigos, alugue uma cadeira de rodas e dê um passeio no Shopping, fingindo ser débil mental. Aproveite para constranger a burguesia e, quando entrar em qualquer loja, agarre-se a um produto e não queira largar, por mais que seus amigos argumentem não ser seu. As vendedoras vão ficar morrendo de pena. Outras opções interessantes são passar-se por cego, surdo ou mudo. Vá ao centro da cidade com uma bíblia embaixo do braço e pregue o sermão mais nonsense na galera. Sabotagem em geral: Aqui a zona já fica um pouco cinzenta entre a rebeldia saudável e a prevaricação inconsciente. Por melhores que sejam os objetivos, machucar pessoas ou causar danos materiais a quem não merece deslegitima qualquer luta. O melhor jeito de sabotar é não destruir nada irreparavelmente e dar preferência a intervenções que gerem risos ou façam a vítima refletir sobre o quanto a vida é absurda. Um dos melhores exemplos de sabotagem neste estilo é o dos sujeitos americanos que roubaram um anão de jardim na Califórnia e o levaram numa viagem de carro até Nova Iorque, sempre enviando fotos do desaparecido em pontos turísticos para a casa de seu dono. Estragar máquinas dispensadoras de refrigerante, além de um protesto contra a impessoalidade da economia de mercado, deixa os ex-usuários mais saudáveis. No supermercado, troque as etiquetas de preço dos produtos por outros mais baratos. Na saída, esvazie os pneus daquele BMW. Troque os fundos de tela dos computadores da sua empresa por palavras de ordem ou fotos nojentas. Vá à locadora com um filme pornô no bolso e troque-o por A Incrível Fábrica de Chocolate. Compre um gravador de CDs e nunca mais encha os cofres das gravadoras. Misture ecstasy no café de seu chefe. Sei lá, pense um pouco sozinho, só para variar.
:: PROTOCOLO VEGETAL ::
por Manoel de Barros Palavras de Lúcio Ayres Fragoso,
professor de Física em São Paulo, compadre do preso,
a título de esclarecimento à Polícia.
:: AMANHECER EM COPACABANA
:: Amanhece, em Copacabana, e estamos todos cansados. Todos, no mesmo banco de praia. Todos, que somos eu, meus olhos, meus braços e minhas pernas, meu pensamento e minha vontade. O coração, se não está vazio, sobra lugar que não acaba mais. Ah, que coisa insuportável, a lucidez das pessoas fatigadas! Mil vezes a obscuridade dos que amam, dos que cegam de ciúmes, dos que sentem falta e saudade. Nós somos um imenso vácuo, que o pensamento ocupa friamente. E, isso, no amanhecer de Copacabana. As pessoas e as coisas começaram a movimentar-se. A moça feia, com o seu caniche de olhos ternos. O homem de roupão, que desce à praia e faz ginástica sueca. O bêbado, que vem caminhando com um esparadrapo na boca e a lapela suja de sangue. Automóveis, com oficiais do Exército Nacional, a caminho da batalha. Ônibus colegiais e, lá dentro, os nossos filhos, com cara de sono. O banhista gordo, de pernas brancas, vai ao mar cedinho, porque as pessoas da manhã são poucas e enfrentam, sem receios, o seu aspecto. Um automóvel deixou uma mulher à porta do prédio de apartamentos — pelo estado em que se encontra a maquillage, andou fazendo o que não devia. Os ruídos crescem e se misturam. Bondes, lotações, lambretas e, do mar, que se vinha escutando algum rumor, não se tem o que ouvir. Enerva-me o tom de ironia que não consigo evitar nestas anotações. Em vezes outras, quando aqui estive, no lugar destas censuras, achei sempre que tudo estava lindo e não descobri os receios do homem gordo, que vem à praia de manhã cedinho. E Copacabana é a mesma. Nós é que estamos burríssimos aqui, neste banco de praia. Nós é que estamos velhíssimos, à beira-mar. Nós é que estamos sem ressonância para a beleza e perdemos o poder de descobrir o lado interessante de cada banalidade. Um homem assim não tem direito ao amanhecer de sua cidade. Deve levantar-se do banco de praia e ir-se embora, para não entediar os outros, com a descabida má-vontade dos seus ares. :: ANTI-SALMO POR UM DESHERÓI
:: :: DICIONÁRIO DAS IDÉIAS
FEITAS :: Jansenismo -- Não se sabe o
que é, mas é chique falar a seu respeito.
(Feioso treina arco-e-flecha na colônia
de férias Chipewa e mata uma sublime águia americana) :: DORMIR A ESSE PONTO :: Dormir a esse ponto, sem ao menos um olho à espreita, como se o teto ou o céu não pudesse desabar a qualquer instante e não houvesse em toda a extensão da terra uma só vítima do câncer ou da injustiça, um só faminto ou um único suicida, nenhuma fábrica de canhões ou nenhuma cadeira elétrica -- convenhamos que é ter mesmo vocação para defunto e nem ter vindo ao mundo para outra coisa, por mais que a Constituição diga o contrário, e o rádio, e a vitrola, e a bula do papa e a dos remédios -- e sobretudo cada um a si mesmo diante do espelho, vestido para o domingo.
::
DICIONÁRIO DAS IDÉIAS FEITAS :: Lago -- Ter uma mulher ao lado quando
se passeia por ele.
:: VOCÊ PERGUNTA, NÓS
NÃO DAMOS A MÍNIMA :: Não, mas em todo caso é sempre bom armazená-los num local hermético, subterrâneo e repleto de provisões de inverno. Talvez você tenha problemas com o liquidificador, mas não gosto de parecer alarmista.
Este Zine é impessoal, objetivo e imparcial. Computadores meticulosamente programados desenvolvem os textos, se emocionam, revisam e publicam a visão neutra e apolítica da coisa toda. O único responsável é a instituição "Da Redação".
## Você está recebendo o !!DAMN!! Zine porque (oinc!) estava na lista de indivíduos manquitolas da lista negra dos Illuminati. Ou então, ou então! Você está recebendo o !!DAMN!! Zine porque foi um dos 139 mil nomes escolhidos entre todos os possíveis do mundo, sorteados em uma grande urna chinesa. Você e Li-Ching-Yang. Caso não queira voltar a receber este monte de bobagens, mande um e-mail para vmbarbara@brfree.com.br, e escreva na linha de assunto: "Me deixem em paz, pelas barbas de Tutatis!". Se quiser que mais vítimas recebam o Zine, também escreva para esse e-mail mandando o endereço dos condenados e o número e senha de suas contas bancárias. Se quiser usar cartão de crédito, basta fornecer o número. (Be afraid. Be VERY afraid.) "Em verdade, em verdade vos digo: Aquele que ri cuidado para que não babe".
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2005
Vanessa Barbara |