-- Ninguém nunca conseguiu provar nada contra ele. Falam, falam, mas ainda não provaram que ele rouba. Estava sentado no banco da frente. -- Por isso eu vou votar no Maluf. Sempre apoiei ele, desde mil novecentos e oitenta e dois. Conversava com outro senhor grisalho; sua careca movia-se como se estivesse discursando no parlamento romano. Não estava. Apertou os olhos e mostrou um porta-documentos de plástico. -- Vou votar nestes aqui: delegada Rose e o Nelo Rodolfo. Grandes pessoas. E simpáticos. O companheiro ao lado fez menção de comentar alguma coisa, mas o homem prosseguiu: -- Este documento aqui é da minha namorada. Fui ver a mulher ontem. Ela mora no Imirim, uma delas; a outra é de Cirade Tiradentes. Paula, o nome dela, moça muito bonita: tem olhos azuis. Não faço idéia a qual das duas ele se refere. -- Porque é paulistana da gema, por isso é que é boazinha, se bem que a outra é de Belém do Pará. Pelo menos não é baiana, nunca mais caso com baiana. O homem já falava alto. O topo de sua cabeça se voltava para todos os pontos cardeais, como um pirocóptero. O senhor sentado na poltrona ao lado limitava-se a assentir. -- Eu casei com uma baiana terrível. - o monólogo continua. - O nome dela era Felizarda. Ela controlava a minha vida, a mulher só queria o meu dinheiro. E olha: era feia... Riu, obviamente sozinho. Àquela altura, a lotação inteira escutava ou fingia não escutar, com o olhar parado em algum ponto de sua careca. "A minha irmã se chama Dirce", prossegue, com o indicador suspenso no ar, como se estivesse dando uma lição de moral ao passageiro. -- A Dirce, que é a minha irmã, dizia pra eu largar a Felizarda. E eu não largava. "Nilso", ela dizia, a minha irmã, não a Felizarda, "ninguém pode ficar mandando na sua vidinha, não". Mulher é uma peste, mulher nenhuma presta. Não é verdade? Todas elas. Então ele tomou coragem e finalmente largou a Felizarda, no ano da graça de mil novecentos e noventa e cinco, como pudemos atestar, e desde então sua rotina era a mesma. -- Vou chegar em casa, tomar meu
banho da tarde, colocar bermuda e escutar música. A Dirce,
que é a minha irmã, também gosta de sertanejo.
Eu já fui no Raul Gil cantar a música do Daniel, "Meu
reino encantado". É tão bonita. E amanhã
eu vou ao Bingo. -- Foi a Rosinha que me disse, Rosinha é companheira minha, eu encontrei ela na estação do metrô. De vez em quando eu vou catar latinha de alumínio no Terminal, ontem consegui 2 reais e comprei um bife. Só então percebeu que o homem ao lado estava de pé, tentando passar para o corredor. "Já vai descer?", perguntou, recebendo uma resposta afirmativa do homem, murmurante e de olhos baixos. Recomendou lembranças aos parentes. No passageiro que descia, pairava um olhar vago de resignação - um tanto quanto pateta. Provavelmente ele compraria um porta-documentos igual, dentro de alguns dias. E iria aprender a letra de "Meu Reino Encantado". Sentada atrás do homem careca, eu tentava cutucar suas costas com a ponta de uma caneta. As senhoras voltaram a tricotar, o careca desceu. No dia seguinte, o monólogo foi o mesmo, e assim no outro, no outro e no outro.
::
ELES NOS FIZERAM CANTAR :: Apresento-lhes, na anatomia de um
piolho, a prova da providência divina.
por A. Deak, sobre 16/9 Quem diabos era aquele maldito francês? Edgar Morin, o nome não era estranho. Diziam que ele era bom, mas bom no quê? Sociologia, ciências sociais, jornalismo, mímica, cambalhotas ou algo assim. Quem se importa? Se ele era um "pensador francês", então devia ser bom, diabos. Além disso, o nome do seminário era bonito: "A falência das ideologias e as novas formas de política". Isso talvez explicasse porque o auditório da TV Gazeta estava lotado naquele dia – mesmo sem a presença do Sérgio Mallandro. Por conta de um problema qualquer, o negócio atrasou. E não foi pouco. Quando todos já se mexiam na cadeira como se estivessem infestados de formigas, enquanto alguns riam alucinadamente esquecendo-se que estavam em público, o francês entrou. Aliás, um não. Vários. A mesa era enorme. Sentaram-se seis ou sete pessoas, todos muito empostados. Morin, que era a presença mais importante, ruminava como um velho. Ao seu lado, de gravata borboleta, um francês começa a falar sem parar. Sem vírgulas. E não termina nunca, vai falando, ligando um pensamento complicado a outro muito mais, seguindo feliz por suas linhas do pensamento filosófico contemporâneo. Quando termina, já um pouco cansado, o tradutor, que também estava na mesa, simplesmente olha para ele e sorri. Seria humanamente impossível traduzir. Já seria impossível lembrar, aliás. A platéia ri – "saia dessa agora, maldito tradutor!", todos pensam. O homem estufa o peito e começa seu trabalho. Era engraçado: parecia ter saído de um filme do Fellini: gesticulava como um italiano, fazia caretas indescritíveis, suava como um doido varrido. Mas apesar do grande esforço, não conseguiu traduzir para o português. - O fato de existir um valor transubstancialista só tem sentido dentro de uma perspectiva moralista, ou seja, a ética é um constante dever-ser. Passados 20 minutos, os rostos no auditório apresentavam variações de uma mesma expressão: perplexidade. Não se podia compreender nada do que falavam. Seríamos todos tão idiotas? Não é possível, eu fiz faculdade! Céus, não dá para entender uma frase! Frases assim passeavam pelas cabeças visíveis a olho nu. - Esse unicismo, teológico, essa teodisséia... O professor insiste que a política é a forma profana da religião. Quarenta minutos de filosofia pura levou muitos na platéia ao delírio. Nesse exato instante, a maioria roía as unhas freneticamente ou franzia a testa tanto que se poderia segurar um lápis naquelas dobras de pele. Os mais fracos começaram a ir embora. Os franceses estavam vencendo. - O professor disse que é preciso fugir das evidências, que na verdade se passam por evidências – mas que não são – para encontrar as verdadeiras evidências. O de gravata borboleta termina sua parte. Ninguém sabe ao certo se ele terminou mesmo, pois sequer é possível compreender se o raciocínio dele acabou ou se vai falar mais. Sua expressão de bonachão, porém, não engana uma senhora da primeira fila, que começa a bater palma. Os outros seguem o movimento e o francês fica satisfeito, pensando que as pessoas compreenderam. Chega a vez de Edgar Morin. Suspense. - Êo naum pôsso falá en poltuguês, polquê voili acin dizerrê. Mesmo sem entender o final do que ele disse, a platéia volta a sorrir. E bate palmas. É o grande momento do seminário. Finalmente alguém faz um esforço para ser compreendido. Os franceses, afinal, não são tão intragáveis assim. Dá até vontade de dar um abraço no Morrã. Morrã, velho de guerra! Esse sim! Sabíamos que o velho era danado! Mostrou pra eles! É isso aí! Passada a euforia, ele disserta sobre o mito do progresso, o individualismo na sociedade, democracia, contrato social e, finalmente, ideologia. Mas aí é tarde demais – só o faxineiro o observa, esperando ele terminar para poder apagar a luz.
I. II. III. IV. V. VI. VII. VIII.
O Bixiga é o bairro mais velho de São Paulo. Seus boêmios, sambistas, cantinas são patrimônios da noite paulistana. Ali, na Santo Antônio, pertinho da Vai-Vai, escola de seu Osvaldinho da Cuíca - e de tantos outros que ajudaram a escrever a história da patuléia na paulicéia – o Geraldinho serve a sua Jerupinga. Dizem que é o único lugar em que se bebe mais do que se paga. A conta, lá, é negativa. O fito desta nota, no entanto, não é falar do Geraldinho, menos da jerupinga. A história da Vaca ocorreu um quarteirão acima, num boteco pequenino, de uma senhora que eu não conhecia. 13 de maio. Coração da Bela Vista. Oito pessoas no bar. Cinco homens, três mulheres. Um pintor, de parede, trabalha um mural. Pinta uma fazenda, com árvores, céu azul, nuvens branquinhas, lagos, e montanhas. A dona do botequim, atrás do balcão, pergunta a um senhor, que degusta um rabo de galo: – Tá bonito, não? O homem limita-se a mover a cabeça. Pra frente, pra trás, pra frente, pra trás. Um rapaz, aparentando 28 anos, com uma garrafa de cerveja na mão, emite sua opinião. – Tá bonito, sim. Eu que venho sempre aqui vou vir ainda mais. E ri. Não se sabe se de bobo,
ou porque carregou a sentença de ironia. – Pinto ou não pinto uma vaca aqui? O rapaz com síndrome de hiena gargalha. E diz que sim. Para ele, quanto mais avacalhado melhor. A dona do boteco tenta dissuadir o pintor. – Não, não faz isso. Não vai pôr uma vaca. Vai ficar feio. O pintor não concorda. – Mas é uma fazenda, e fazenda tem vaca. Um senhor, que até então não se manifestara, cigarro em punho, opina: – É verdade, fazenda tem vaca. Acho que pode ficar bonito. O pintor começa a dar as primeiras pinceladas. Em pouco tempo, a fazenda estaria completa. Mesmo à revelia da dona do boteco, que não queria na sua parede uma vaca. Democracia?
:: DICIONÁRIO DAS IDÉIAS
FEITAS :: Negras -- Mais ardentes do que as brancas
(vide Morenas e Louras).
Logo no começo da fundação dos Quinze-Vingts, sabe-se que os asilados eram todos iguais e seus assuntos se decidiam por votação. Distinguiam perfeitamente, pelo tato, a moeda de cobre da de prata; nenhum deles tomou jamais vinho de Brie por vinho de Borgonha. Seu olfato era mais fino que o de seus patrícios que tinham dois olhos. Aprofundaram-se perfeitamente nos quatro sentidos, Isto é, ficaram sabendo acerca deles tudo quanto é possível; e viveram tranqüilos e felizes na medida em que os cegos o podem ser. Infelizmente, um de seus professores julgou possuir noções claras sobre o sentido da vista; fez-se ouvir, intrigou, granjeou partidários; reconheceram-no afinal como chefe da comunidade. Pôs-se a julgar soberanamente em matéria de cores, e ai é que foi a perdição. Esse primeiro ditador dos Quinze-Vingts formou primeiro um pequeno conselho, com o qual se tornou depositário de todas as esmolas. Por esse motivo, ninguém se atreveu a resistir-lhe. Decidiu ele que todas as roupas do Quinze-Vingts eram brancas; os cegos acreditaram; não falavam senão de seus belos trajes brancos, embora não houvesse entre eles um único dessa cor. Como todo o mundo começasse então a zombar deles, foram queixar-se ao ditador, que os recebeu muito mal; tratou-os de inovadores, de espíritos fortes, de rebeldes, que se deixavam seduzir pelas opiniões errôneas daqueles que tinham olhos e ousavam duvidar da infalibilidade de seu senhor. Dessa querela, formaram-se dois partidos. O ditador, para os apaziguar, baixou um decreto segundo o qual todas as suas vestes eram vermelhas. Não havia uma única veste vermelha entre os Quinze-Vingts. Riram-se deles mais do que nunca. Novas queixas da comunidade. O ditador enfureceu-se, os outros cegos também. Disputaram longamente, e só se restabeleceu a concórdia quando foi permitido, a todos os Quinze-Vingts, suspenderem o juízo sobre a cor de sua roupa. Um surdo, ao ler esta pequena história, confessou que os cegos tinham feito muito mal em querer julgar a respeito de cores, mas permaneceu firme na opinião de que só aos surdos compete falar de música.
::
MANUEL POR UMA VIDA MELHOR :: 1. Troque o dia pela noite, adquira
hábitos estranhos e passe a dormir no chão. :: MESMO A ANTILÓGICA
:: Há qualquer coisa que escapa até mesmo à antilógica, não sou nenhum assassino mas poderia ser a qualquer momento, e sobretudo um assassino de idéias que é o que mais os preocupa e tira-lhes o sono: esta minha liberdade é pior do que a pior das prisões, em momento nenhum lhes causei pânico e eles não têm tentado outra coisa desde que o mundo é mundo. É possível até que me julguem um cidadão respeitável, o que de si já me tiraria todo e qualquer respeito, e me mandem amanhã um meirinho cobrar o imposto disso ou daquilo, se é que já não me mandaram -- e me obriguem de novo a tirar as impressões digitais, batráquio ou não, centauro ou simples cavalgadura, como se faz com o último dos canalhas. (...) Só não me levanto porque já estou de pé, minha indignação é tanta que até as luzes já se acenderam de novo.
:: VOCÊ PERGUNTA, NÓS
NÃO DAMOS A MÍNIMA :: (É uma pergunta. Quem responder ganha uma laranja descascada de tampinha). Respostas para cá.
Este Zine é impessoal, objetivo e imparcial. Computadores meticulosamente programados desenvolvem os textos, se emocionam, revisam e publicam a visão neutra e apolítica da coisa toda. O único responsável é a instituição "Da Redação".
## Você está recebendo o !!DAMN!! Zine porque estava na lista de indivíduos manquitolas da lista negra dos Illuminati. Ou então, ou então! Você está recebendo o !!DAMN!! Zine porque foi um dos 139 mil nomes escolhidos entre todos os possíveis do mundo, sorteados em uma grande urna chinesa. Você e Li-Ching-Yang. Caso não queira voltar a receber este monte de bobagens, mande um e-mail para vmbarbara@brfree.com.br, e escreva na linha de assunto: "Me deixem em paz, pelas barbas de Tutatis!". Se quiser que mais vítimas recebam o Zine, também escreva para esse e-mail mandando o endereço dos condenados e o número e senha de suas contas bancárias. Se quiser usar cartão de crédito, basta fornecer o número. (Be afraid. Be VERY afraid.) ## "Em verdade, em verdade vos digo: Aquele que ri cuidado para que não babe".
|
2005
Vanessa Barbara |