Um dia me ocorreu que eu poderia
existir apenas dentro do sonho de alguém. Como a Alice, que
encontrou o Rei Vermelho dormindo na relva, olhou pra ele por um tempo,
coçou as suíças e se encheu de dúvidas.
Caso ele estivesse sonhando-a, o que seria dela quando ele acordasse?
Ele consertava uma cerca velha, com
um curativo nas covinhas, enquanto ela dormia, afundada no edredon.
Matinas tentava tingir a madeira de branco, com pinceladas certeiras
- só que a terra era fofa, as flores dormiam e ele não
se sustinha nos próprios pés. Ou tinha machucado os
tendões ou o chão afundava. Ou então, ou então:
ela o sonhava. No edredon, a garota ensaiava com o canto dos lábios
um sarcástico sorriso de vitória.
:: MALDIÇÃO
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NOTÍCIA DISPENSÁVEL ::
A liberdade aqui é uma palavra que já não existe sequer nos dicionários e de que só ouvimos falar quando somos nós que a pronunciamos, em geral em voz baixa e para nós mesmos. :: CONTO DE UMA TARDE DE VERÃO
:: Foram para um botequim. O garçom veio logo avisando, meio triste até, como se fosse culpa dele de alguma forma: - Não tem nada. Na verdade, queria dizer que só
tinha cerveja e alguns piriris do balcão, uns frios, e mesmo
esses estavam acabando. O dia foi cheio. Não importava; beberam
cerveja. Os outros dois acharam sensacional. O pior é que podia dar certo; ninguém tinha pensado nisso, achavam. Com alguns ajustes, talvez um outro viés, podia dar certo. Melhor: podia dar dinheiro. - Uns 15 mil, no mínimo. De fato, era o preço que se cobrava normalmente por um trabalho assim. Mas se desse certo podia dar muito mais. Mas aí iam ter que abrir uma empresa, com CGC, coisa e tal. - Mas tem uma coisa: eu não quero ser sócio. Não é isso que eu quero fazer da vida. Ele queria viajar, mudar o mundo, e não ficar sentado num escritório ganhando dinheiro com uma boa idéia. Algumas pessoas são assim. Eles tentaram convencê-lo, mas não adiantou. Os dois seriam sócios e ele um contratado, assalariado. Ele não contou, mas também não queria se enrolar abrindo uma empresa, isso sempre dá rolo. Depois de um ano, ganhando tanto, poderiam fazer outra coisa. Largassem aquilo e abrissem qualquer coisa que fosse mais legal. Um bar. Todo mundo quer abrir um bar. É quase unânime, como odiar radares de velocidade. Então era isso: com uns 150 mil que juntariam em um ano de trabalho nesse negócio, um ano e meio no máximo, teriam um bom capital para investir num bar. Mas onde? Em Florianópolis, disse um. No nordeste, outro. O terceiro tinha o voto de Minerva: - Nordeste! Decidido, então. Seria no nordeste. Perto da praia, claro. Iriam revezar no balcão, que é o lugar mais legal. Mas teriam que fazer um daqueles cursos de fazer drinks com malabarismo, para impressionar as garotas. Sem problemas, um deles tinha visto um perto de casa, não devia ser caro. A decoração do lugar seria feita com uns bambus, uns coqueiros talvez. Bem cara de praia. Mas só tocaria música dos anos 60, Elvis, Beatles, Stones, por aí vai. E surf music, claro. - E se a gente cantasse também? Genial. A velha banda que nunca saiu do mundo platônico das idéias poderia tomar vida lá. Cantariam só ao estilo acapela, sem instrumentos, só vocais. Nossas garotas poderiam ser as backing vocals, não há nada mais bonito de se escutar do que vozes de garotas ao fundo. - Mas o bar não daria certo. Não sabemos cobrar de amigos. Era verdade. Depois de alguns meses de festa, todo o dinheiro seria consumido. Um deles, beberrão que é, acabaria com o estoque de vodka em um mês. Restaria voltar cada um ao seu antigo serviço, se ainda houvesse vaga. E a crise, que não está fácil, com certeza estaria pior. - Quer saber? Melhor mesmo é ficar por aqui. Pediram a saideira e a conta. Mas marcaram uma reunião para o outro fim de semana.
A aurora é a imaginação da noite. :: HISTÓRIA :: Um homem estava perseguindo outro homem quando o último, que estava fugindo, por sua vez seguia um terceiro homem que, sem notar a perseguição atrás dele, estava simplesmente andando a passos rápidos pela calçada. :: AMÊNDOAS, OUTRA VEZ
:: As amêndoas e o chocolate tinham acabado, chovia devagar em cima da clarabóia e Célia começava a cochilar, mal envolta num lençol amarrotado, ouvindo ao longe a voz de Austin, perdida num cansaço que devia ser a felicidade. Só de vez em quando outra coisa a incomodava, como se algo se desmanchasse finamente nesse mole, uniforme abandono, uma fenda mínima que a voz de Austin tornava a preencher por certo tempo, e devia ser bem tarde e teriam que resolver descer para jantar, e Austin teimava em perguntar mas pensa um pouco, pensa nisso, o que é que eu conhecia de ti? inclinando-se para beijá-la e repetir a pergunta. Que é que eu conhecia realmente de ti? Um rosto, uns braços, tuas pantorrilhas, teu modo de rir, o muito que você vomitou no ferry-boat, mais nada. Estúpido, dissera Célia com os olhos fechados, e ele insistia, pensa um pouco porque é grave, é tão importante, do pescoço até os joelhos o grande mistério, estou falando de teu corpo. de teus seios, por exemplo, o que é que eu sabia além de uma sombra delineada em tua blusa, você vê, são menores do que eu imaginava, mas tudo isso não é nada comparado com outra coisa muito mais grave e é que você também tinha que descobrir que outros iam te ver pela primeira vez, isto é, te ver tal qual você é, totalmente você e não o setor de cima e o setor debaixo, aquele mundo de mulheres esquartejadas que vemos na rua, aqueles pedaços que agora minha mão pode juntar em um só, de cima a baixo, assim. Ah, fica quieto, dissera Célia, mas era inútil. Austin queria saber, precisava saber quem tinha podido olhar alguma vez assim seu corpo, e Célia hesitara um instante, percebendo que em meio à felicidade abria caminho outra vez a fina fenda instantânea, e depois dissera o previsto, ninguém, enfim, o médico, claro, uma companheira de quarto, quando veraneavam em Nice. Mas não assim, claro. Mas não assim não, repetira Austin, naturalmente que não assim, e por isso você tem de compreender o que é ter criado de uma vez por todas teu corpo como criamos tu e eu, lembra-te, tu virada de costas e te deixando olhar, eu descendo pouco a pouco o lençol e vendo nascer isso que é você, isso que agora se chama realmente com teu nome e fala com tua voz. O médico, me pergunto o que foi que o médico pôde ver de ti. Sim, em certo sentido mais do que eu se você quiser, apalpando e localizando, mas essa não era você, você era um corpo antes e depois de outro, o número oito numa quinta-feira às cinco e meia num consultório, uma inflamação na pleura. As amígdalas, dissera Célia, e o apêndice há dois anos. Como tua mãe, por exemplo, quando você era pequena ninguém pôde te conhecer melhor do que ela, é óbvio, mas também não era você, só hoje, só agora neste quarto é você, tua mãe também não conta, as mãos dela te limpavam e conheciam cada dobra de tua carne e te faziam tudo o que se deve fazer a uma criança quase sem olhá-la, sem pô-la definitivamente no mundo como eu agora a você, como você e eu agora. Vaidoso, dissera Célia, abandonando-se outra vez à voz que a adormecia. E as mulheres falam em virgindade, dissera Austin, a definem como tua mãe e teu médico a teriam definido, e não sabem que só há uma virgindade que conta, aquela que precede ao primeiro olhar verdadeiro e se perde sob esse olhar, no mesmo instante em que uma mão suspende o lençol e junta por fim numa só visão todas as peças do quebra-cabeça. :: MÁGICO :: ... Não podemos realizar nada que não seja mágico...
"Pá, mas já é a terceira pessoa que eu vejo dar a volta nessa árvore!", disse um moço, sentado no bar, olhando para a rua. Os transeuntes estavam olhando todos para a maldita árvore, com uma expressão de perplexidade e de medo, pensando em coisas como: "Que será que aconteceu com esse maluco?", "Acho que é promessa", ou "Será que a gente ganha algo se der a volta também?". Não era só maluquice, tratava-se de um ambicioso projeto. Era a "Trajetória em Torno da Árvore" – sim, há um nome pra isso –, e fazia parte de uma espécie de jogo ou intervenção criativa nas ruas de São Paulo. A coisa aconteceu em 1978, em frente à Biblioteca Mário de Andrade (SP), e foi uma invenção de oito membros do grupo de teatro "Viajou Sem Passaporte". Tudo bem, é estranho. Foi apenas o início de várias outras intervenções: a Trajetória do Curativo, a Trajetória do Paletó, o Trem Fantasma no Parque Ibirapuera e o Fim da Década. Todos projetos aparentemente bobos, mas que continham enorme carga de desobediência civil e provocação: segundo Luis Sergio Raghy, um dos participantes, o objetivo era "instaurar uma crise na normalidade vigente", lutando contra a sujeição apática às regras e buscando a liberdade individual. Por exemplo: a Trajetória do Curativo. (...) Leiam o resto aqui. É divertido, talvez.
A guriazinha
Vamos deixar que o baile ainda continue por algum tempo, o baile dos que só sabem dançar ao som de músicas alheias e devidamente censuradas pela prefeitura; no momento azado eu subo numa cadeira e, de batuta à mão, ponho os músicos todos malucos com a partitura que arrancarei do bolso, ainda quente do calor do meu corpo. Os pares que se danem, que virem ímpares, se quiserem continuar dançando, ou que se enforquem numa das mil cordas que porei à sua disposição pelos cantos do salão, com direito a confessor e tudo. Mas tudo isto são desvarios de um espírito tresnoitado, dirão talvez meus inimigos eternos, que vivem dentro e fora de mim – e bastará que você calce os sapatos para que a realidade volte a funcionar sob os seus pés, a dura e feia realidade de todos os dias, inclusive feriados e dias santos. É bem possível que assim seja, respondo calado, e por isso mesmo tratarei de não pôr os sapatos tão cedo, e se preciso não os porei nunca mais, a fim de pousar sobre os meus próprios alicerces e ter os sonhos que quiser ter, e que para mim serão certezas. (...) A minha defesa está justamente nos meus sonhos, ou desvarios como queiram, em cujas asas vôo a altura que vocês nunca atingirão de foguete, e de onde avisto as cúpulas dos edifícios como se fossem cabeças de alfinete, como o são realmente. Se não posso mudar o mundo, tampouco permitirei que o mundo me mude a mim, arrancando-me esse câncer de mistérios e heresias que é toda a minha riqueza e que faz com que minha voz não seja apenas o grunhido de um porco, nem meu olhar apenas o olhar de um peixe dentro do aquário.
Todos sabem, hoje, o quanto engolir pedras é perigoso. Um amigo meu até criou a expressão "Dan-in-ston", que significa: "It's dangerous to ingest stones" (é perigoso engolir pedras). E uma coisa boa também. "Dan-in-ston" pode ser facilmente lembrada e, quando necessário, instantaneamente evocada. Ele trabalhava, este meu amigo, como alimentador da fornalha de uma máquina a vapor. Viajava tanto pela linha do Norte quanto para Moscou. Ele se chamava Nikolay Ivanovich Serpukhov e fumava cigarros Rocket a trinta e cinco copeques o pacote, e sempre dizia que eles o faziam tossir menos, enquanto os que custavam cinco rublos, declara, "sempre me fazem engasgar". E então Nikolay Ivanovich teve, um dia, a chance de entrar no restaurante do Hotel Yevropeyskaya. Nikolay Ivanovich sentou numa mesa, e na mesa ao lado alguns estrangeiros estavam sentados mascando maçãs. Naquela hora Nikolay Ivanovich disse a si mesmo: -- Isto é interessante -- disse Nikolay Ivanovich -- Se é! Mal ele havia dito isto quando, do nada, uma Fada apareceu à sua frente, dizendo: -- Meu bom homem, do que você precisa? Bom, naturalmente, num restaurante você tem mesmo uma agitação quando, digamos, esta diminuta e desconhecida dama resolve aparecer de repente. Os estrangeiros até pararam de mascar suas maçãs. Mesmo Nikolay Ivanovich assustou-se e falou de imediato, como que para dar-lhe um fora. -- Desculpe-me -- ele disse -- mas eu realmente não faço questão de nada em particular. -- Você não está
entendendo -- disse a dama desconhecida -- Eu -- ela disse -- sou
o que chamam de Fada. Em um mero instante providenciarei o que você
desejar. -- Por mil demônios! -- pensou Nikolay Ivanovich -- não há como entender o que está acontecendo. E não havia mesmo como entender o que estava acontecendo. O garçom estava pulando ao redor das mesas, os estrangeiros estavam enrolando os tapetes e só o diabo sabia mais o quê! Eles estavam todos fazendo qualquer coisa que tinham vontade! Nikolay Ivanovich correu para a rua e nem apanhou seu chapéu no cabideiro; ele fugiu para a Lassalle Street e disse a si mesmo: -- Dan-in-ston! É perigoso engolir pedras -- Nada parecido com isto realmente aconteceu, certamente! E, chegando em casa, Nikolay Ivanovich disse à esposa: -- Não se assuste, Yekaterina Petrovna, e não fique preocupada. Apenas não há equilíbrio no mundo. É só um erro de cerca de 1 quilo e meio, sobre o universo como um todo, mas é realmente uma coisa surpreendente, Yekaterina Petrovna, totalmente surpreendente! E isso é tudo.
Pedimos desculpas pela tradução acima e aproveitamos para pedir bolsas de estudo para aprender russo. Agradece-se desde já.
"Nos mijam em cima e a imprensa
diz que chove" ::
DICIONÁRIO DAS IDÉIAS FEITAS :: Sáficos e adônios (Versos)
-- Produzem excelente efeito num artigo sobre literatura.
Este Zine é impessoal, objetivo e imparcial. Computadores meticulosamente programados desenvolvem os textos, se emocionam, revisam e publicam a visão neutra e apolítica da coisa toda. O único responsável é a instituição "Da Redação".
## Você está recebendo o !!DAMN!! Zine porque estava na lista de indivíduos manquitolas da lista negra dos Illuminati. Ou então, ou então! Você está recebendo o !!DAMN!! Zine porque foi um dos 139 mil nomes escolhidos entre todos os possíveis do mundo, sorteados em uma grande urna chinesa. Você e Li-Ching-Yang. Caso não queira voltar a receber este monte de bobagens, mande um e-mail para vmbarbara@brfree.com.br, e escreva na linha de assunto: "Me deixem em paz, pelas barbas de Tutatis!". Se quiser que mais vítimas recebam o Zine, também escreva para esse e-mail mandando o endereço dos condenados e o número e senha de suas contas bancárias. Se quiser usar cartão de crédito, basta fornecer o número. (Be afraid. Be VERY afraid.) ## "Em verdade, em verdade vos digo: Aquele que ri cuidado para que não babe".
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2005
Vanessa Barbara |