Um catalupo sentou-se no banco
principal da praça e ficou a quebrar galhinhos. Eram três
e meia da manhã, porque é sempre cedo e o sol nunca
se põe para os catalupos, que aliás adoram piqueniques.
Um catalupo atarefado passeava pela calçada, no escuro, e viu
o outro a quebrar galhinhos. Assim, dois pequenos sentaram-se no banco
principal da praça e começaram a falar sobre coisas
vermelhas, como de costume. Já estavam no bolinho de almôndega
quando sentou-se outro catalupo pálido e começou a quebrar
galhinhos, em silêncio. Logo puseram-se a comentar sobre isopor
e chacoalhavam os pés, já que o banco era alto e às
três da manhã deve estar mesmo frio, para catalupos tímidos
em chinelos de dedo. Então chegou outro catalupo, e mais outro,
e mais outro, e em instantes todas as criaturinhas da cidade reuniam-se
no banco principal da praça e preocupavam-se com a súbita
escassez de galhinhos para quebrar. Discutiam a questão das
pedras-pome e das maneiras diversas de encher um galão de suco,
alguns mastigavam folhas de pitangueira e guardavam tampas de garrafa
ou pedras nos bolsos de seus pijamas. Às quatro, dezenas de
catalupos priprinavam como se estivessem bêbados; e às
quatro e meia o senhor Ítalo, ancião, trouxe um feixe
de galhos secos e começou a discutir política.
Esta noche
:: CORRESPONDÊNCIA - I :: Paris, 8 de fevereiro de 1972 Assim é como viajam os cronópios. Um dia alguém avisa que há um pacote na alfândega. Alguém vai à alfândega e de repente as dificuldades crescem, há que se preencher formulários, declarar que não está contaminado por cólera (o pacote, mas quem é que poderia provar, se pra começar ninguém sabe o que contém o pacote?). Para provar que não há cólera nem uma bomba seria preciso abrir o pacote, mas o pacote não pode ser aberto até que se comprove que não contém micróbios de cólera ou meio quilo de dinamite. Todo mundo grita, chora, xinga, volta no dia seguinte, não volta nunca, isto não é vida. Buscam-se influências, mas Pompidou tem uma reunião no escritório e não pode ir à alfândega abrir pessoalmente o pacote, de maneira que tenho que voltar pra casa e colocar várias almofadas sobre a minha cabeça e uma bolsa de gelo por cima de tudo. Passam-se oito dias, papéis vão e vem, explique porque recebeu um pacote da Suécia / Não tenho a menor idéia / Se não tem a menor idéia, impossível entregar-lhe o pacote / Nesse caso irei às Nações Unidas e à Shell Max, isto não vai ficar assim / Pague cinco francos e preencha esta planilha. Então Pablo Neruda me telefona para dizer que em Estocolmo o presentearam com um cronópio negro. Está tão contente, Pablo, tão feliz com seu cronópio. Começo a perguntar-me se o pacote, mas a questão da cólera continua de pé e eu não sou nem prêmio Nobel nem embaixador, de maneira que volte amanhã e traga cinco comprovantes de residência, identidade, atestado de saúde, moralidade e bons antecedentes. O comissário do distrito tem pena de mim: faremos um só comprovante com todos os dados juntos, e acrescentaremos no final: Messieurs les douaniers, assez de connerier, ouvrez d'une bonne fois le colis, nom de Dieu, merde alors. [N.T.: Senhores funcionários da alfândega, chega de bobagem, abram de uma vez o pacote, pelo amor de Deus, vão à merda] E abriram-no, meus queridos, e o cronópio verde estava ali e se matava de rir, olhando-me, e eu o tomei em meus braços e ele imediatamente fez xixi em meu pulôver de cashmere, cronópio desgraçado, e minha amiga Ugné, que estava comigo, apaixonou-se instantaneamente pelo cronópio e ele por ela, e assim o cronópio está em sua casa, aterrorizando a todos e absolutamente feliz, e eu ainda mais. Isto, talvez, explicará a vocês o atraso com que lhes escrevo, porque assim é como viajam os cronópios e já podem ser vistos os resultados. Obrigado, muito obrigado, dizemos ao mesmo tempo, Ugné, o cronópio e eu. O cronópio adora Paris, está absurdamente verde e muda sempre de lugar. Impossível trazer garotas jovens e bonitas, porque imediatamente ele se acomoda em seus joelhos e é um espetáculo invejável e odioso, a gente se sente totalmente substituído pelo cronópio e ele sabe, e se enrodilha no pescoço da garota e lhe sussurra coisas no ouvido e ela põe-se a ficar muito vermelha e o encontro ganha um ar que lembra os piores capítulos de Sade. Depois o cronópio se apodera do divã mais confortável e dorme de pança pra cima e com um ar de grande felicidade, posto que conseguiu destruir todos os princípios morais que sustentavam a casa. Nem eu e nem vocês são culpados, os cronópios vivem por sua conta, não resta remédio além de resignar-se. Pra piorar, amamos o cronópio, cuidamos dele e fazemos carinho, é o cúmulo. Acredito ser meu dever enviar-lhes este sucinto informe. Imagino o que estará se passando na casa do Neruda, mas não creio que me atreva a perguntá-lo. :: (SEM FIM OU SENTIDO) :: O remédio é cantares
cantigas loucas e sem fim. Dessas que a gente inventava para enganar a solidão dos caminhos sem lua. :: CIDADE DE ANÔNIMOS
:: Diariamente em Nova York 90.000 pessoas discam WE 6-1212 para saber qual o último boletim meteorológico; 70.000 discam ME 7-1212 para saber as horas e 650.000 discam 411 porque não sabem para onde mais ligar. A telefonista de informações leva cerca de quinze segundos para descobrir o número solicitado e, após procurar cerca de 130 números num período de duas horas, tem quinze minutos de intervalo para fumar e tomar café. Mesmo fora do serviço ela fala des-ta-can-do as sílabas, desejando às vezes deixar de pronunciar os números numa cadência especial. Mas não é fácil. Se as pessoas resolvessem procurar os números no catálogo... Se as pessoas procurassem os números no catálogo seu trabalho seria muito mais fácil, pensa, ao atirar fora o cigarro e voltar à mesa telefônica para procurar números para os 4.100.000 telefones de Nova York e os psicopatas que sofrem de fobia de catálogo, mas que precisam de números, respostas, ou apenas sentem-se solitários e querem conversar, marcar encontro com a telefonista e seduzi-la... Mas não querem procurar números nos catálogos de Manhattan, que têm uma relação de 780.000 nomes, 1.830 páginas, pesa dois quilos e meio e é hoje em dia demasiado espesso para ser rasgado por Charles Atlas ou os "tigres", Vic Tanny que afirmam, aliás, estarem cansados do truque. Quem quer saber dele? Quem precisa dos 1.795.000 catálogos de Manhattan, impressos todos os anos? -- Um quarto dos quais perdem-se, são destruídos ou rasgados em Wall Street, atirados pelas janelas dos arranha-céus, junto com passagens de metrô e papel higiênico sobre a cabeça de dignatários a quem oferecem paradas ao longo da Broadway, até City Hall. -- Os outros três quartos são recolhidos todos os anos por homens que os folheiam, encontrando cartas de amor esquecidas, selos, apólices de seguro, gravatas, dinheiro, e depois os colocam numa barcaça que sobe o Hudson até uma fábrica que os reencarna em papelão para as camisas que saem da lavanderia, caixas de ovos, capas para livros de bolso e outras utilidades para os nova-iorquinos que não querem procurar números.
:: DIABOS :: :: AUSÊNCIA :: Hei de levantar a vasta vida Sabe aqueles lugares em que o ar parece ter um gosto de suco? Um suco que ainda não foi inventado? É algo que fica ali suspenso, te abraça e deixa tudo mais confortável. Como se os respiros e as conversas pudessem ser enfiadas em copos e oferecidos a você com uns cubos de gelo. O expediente daquela noite já tinha acabado. Num canto, perto de alguns neons com desenhos eróticos e uma jukebox que só tocava discos de jazz, estava um grupo de velhos. Todos com 70 pra cima. Casados, viúvos e desquitados, eles se misturavam com as peças decorativas do bar: pôsters de gibis raros pendurados atrás do balcão; um tablado ao centro para apresentações de bandas doo-wops; vitrais com as caricaturas de Castro, Hitchcock, Nicholson e Garrincha por toda a parede; e um grande índio de madeira perto do banheiro, segurando uns charutos podres e cheios de significados - Quando um de nós morrer, ele vai acender um desses e cuspir na cara dos outros que forem sobrando. Um bar que já tinha sido muita coisa antes daquela noite: um estúdio musical, um ateliê, uma redação de jornal, um escritório de viagens. Tudo. Até salão de barbearia, onde a opereta Barbeiro de Servilha era trilha obrigatória enquanto atendiam os clientes. E as conversas então? Cordialidades,
problemas amorosos, dúvidas de carreira e até mesmo
estratégias para encobrir um crime, já que àquela
altura ninguém mais se lembrava qual deles havia puxado o gatilho. Aguardavam nus. Era assim que costumavam
jogar cartas entre eles. Se sentiam monarcas de algum reino, prontos
para decretarem algum golpe militar. - César tomava as decisões
no Senado assim: pelado. Nós também temos o nosso Senado,
e vamos cuidar dele como verdadeiros imperadores. Reis ridículos
que podiam zombar de tudo e de todos. Tinham esse direito. Qualquer
um que tentasse retrucar, estaria lidando com os melhores no auto-deboche.
E pelados. Era perda de tempo. Tudo o que foram ou deixaram de ser;
tudo o que fizeram ou esqueceram de fazer; tudo que sonharam dividiram
e esconderam estava lá: andando de patins de um lado para o
outro, enquanto suas carnes tremiam, gelavam e abandonavam a existência,
diante dos exibicionismos daquela fada mal explicada. Vê-la
brincar com gelos nos mamilos, fez André entender que ser comunista
era uma merda. -URG! Morreu. Vê-la derramar mel pelas coxas,
fez Paulo sacar que o amor era uma mentira preguiçosa -CLARG!
Morreu. Vê-la massagear os glúteos com duas almofadas,
fez Viktor perceber o quanto na verdade ele era filho da puta. -KAPLUTZ!
Morreu. Vê-la chupar cogumelos de chocolate conscientizou Edson
das palavras "desculpa" e "acho que me enganei".
-GAIXIT! Morreu. E as últimas duas pessoas que saíram de lá foi uma garota de top-less com patins, e um índio atarracudo fumando uns charutos. Cuspiu. Na chuva. Mas cuspiu. :: DEFINIÇÃO
:: mancúspias: s.f. Son unos animalitos
peludos llenos de enfermedades contagiosas.
Eu finalmente me lembrei desse livro da Clarice Lispector, que li tem uns quinze anos e não sei onde está. Eu sei que começava com a frase: "Essa mulher que matou os peixes, infelizmente, sou eu". A narradora deixou morrer os peixinhos dourados de seus filhos e o livro é uma peça de defesa em que ela conta vários episódios para provar que é uma amante dos animais e que as mortes foram acidentais. Minha reação, aos nove anos de idade, foi bastante crítica - enquanto os meus colegas perdoavam a mulher que matou os peixes, eu encontrava evidências da sua culpa. A verdade é que não existe gesto maior de confiança que pedir a alguém que tome conta do nosso aquário com seus dois peixinhos dourados. O cuidado que eles requerem é disciplinado - respeitando as horas de comer e sendo hábil ao trocar a água e limpar o aquário - e incondicional - os peixes não são capazes nem de gestos de carinho, nem de pedidos de socorro. Sem esse cuidado, dias depois seus cadaverezinhos serão encontrados boiando e não haverá outra saída, exceto a privada como lápide e a descarga como funeral. Gostemos ou não de peixes (os vivos, nesse caso, os da panela são outra história), estamos vagando pela vida com um aquário redondo nas mãos, procurando alguém a quem possamos confiá-lo. Os amigos cumprem um pouco esse papel, ao guardar nossos segredos, conhecer nossos medos, partilhar nossas vergonhas. Mas também aprendemos a não exigir demais dos amigos. E, vez por outra, encontramos aquelas pessoas diante das quais somos nós mesmos os peixes - estúpidos, indefesos, nada podendo oferecer senão nossa frágil e substituível existência. E é por isso que eu me considero uma garota de sorte, pouquíssimas baixas no meu aquário. :: ENTROU NO NARIZ SEM QUERER,
SEU GUARDA :: Em Cochabamba, na Bolívia, juntar
água da chuva para beber foi considerado ilegal. De noite, como
A tolerância não é o oposto da intolerância. Uma se arroga o direito de impedir; a outra se arroga o direito de concedê-la.
Tem gente que se apaixona por tosses. Não falo por mim. Eu me apaixono por pálpebras.
Mas, se ela tiver sete na mão direita, dá no mesmo, Reinaldo. O negócio é ter dez dedos na hora de mostrar. Verifique e volte a escrever-me.
Este Zine é impessoal, objetivo e imparcial. Computadores meticulosamente programados preenchem formulários, desenvolvem os textos, se emocionam, revisam e publicam a visão neutra e apolítica da coisa toda. O único responsável é a instituição "Da Redação".
## Você está recebendo o !!DAMN!! Zine porque estava na lista de indivíduos manquitolas da lista negra dos Illuminati. Ou então, ou então! Você está recebendo o !!DAMN!! Zine porque foi um dos 139 mil nomes escolhidos entre todos os possíveis do mundo, sorteados em uma grande urna chinesa. Você e Li-Ching-Yang. Caso não queira voltar a receber este monte de bobagens, mande um e-mail para vmbarbara@brfree.com.br, e escreva na linha de assunto: "Me deixem em paz, pelas barbas de Tutatis!". Se quiser que mais vítimas recebam o Zine, também escreva para esse e-mail mandando o endereço dos condenados e o número e senha de suas contas bancárias. Se quiser usar cartão de crédito, basta fornecer o número. (Fnord keeps a spare eyebrow in his pocket.) "Em verdade, em verdade vos digo: Aquele que ri cuidado para que não babe".
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2005
Vanessa Barbara |