Minúcias costumam ser, durante
boa parte do tempo, felpudas e catatônicas. Nunca foram vistas
em lugar algum, nem por elas mesmas, por conta de suas panças
avantajadas de felpo e de seus narizes voltados pra dentro, que geralmente
fazem com que as minúcias (coitadas) sofram da angústia
de não poder espirrar ou tossir, permanecendo assim incomodadas
com a coceirinha advinda da poeira de suas malconservadas alcatifas
corporais.
Minúcias não se movem. É verdade que ninguém
nunca conseguiu vê-las a fim de atestar o fato; de qualquer
forma, sequer cricrilam ou soltam bolinhas de muco pela orelha, o
que pode ser tomado como sinal inequívoco de sua mortidão.
Por esses e outros fatores as minúcias tampouco são
percebidas pelas Túcias -- trigêmeas altas, magras e
de franjas que só vão ao mercado
às quintas-feiras e sempre pisam nas minúcias, desde
o ano da graça de 1944.
E deixam-se rolar os enlatados e as hortaliças na cabeça
das estátuas felpudas, e soltam-se dos sacos os tomates (isentos
de culpa) e as compras do mês, aos montes, sem qualquer consideração
pelos olhinhos fundos das minúcias azuladas de dor.
Não é preciso dizer que elas nunca reclamam. Ajudaria
se tivessem capacidade de se mover ou de cutucar o nariz, mas pobres
minúcias, sequer sabem que são minúcias. Apenas
enfileiram-se nas calçadas, atrofiadas e melancólicas,
com seus olhos de botão e coraçõezinhos de lesma.
Trata-se de um mundo triste para as minúcias.
:: PARA VER SE TEM ALGUÉM LENDO ::
por Alphonsus de Guimaraens
Hão de chorar por ela os cinamomos,
Murchando as flores ao tombar do dia.
Dos laranjais hão de cair os pomos,
Lembrando-se daquela que os colhia.
:: COM OS ELEFANTES ::
por e.e. cummings
Se o poeta é alguém,
ele é alguém para quem as coisas feitas importam muito
pouco - alguém que é obcecado pelo Fazer. Como todas
as obsessões, a obsessão de Fazer tem desvantagens;
por exemplo, meu único interesse em fazer dinheiro seria fazê-lo.
Mas felizmente eu preferiria fazer quase tudo o mais, inclusive locomotivas
e rosas. É com rosas e locomotivas (para não mencionar
acrobatas primavera eletricidade Coney Island o 4 de Julho os olhos
dos camundongos e as Cataratas do Niágara) que meus "poemas"
competem.
Eles também competem uns com os outros, com elefantes e com
El Greco.
:: É A ÚLTIMA,
EU PROMETO ::
não, não teríamos mais esôfago caso pagássemos
direitos autorais a ele
Mira, sólo hay un medio para
matar los monstruos: aceptarlos.
:: DAS COISAS ANOTADAS SEM SABER ::
por Leipziger Stadtanzeiger. Sim, ele mesmo.
Deus criou o homem à sua imagem
e a máquina construída pelo homem não pode fixar
a imagem de Deus. É impossível que Deus tenha abandonado
seus princípios e permitido a um francês dar ao mundo
uma invenção do Diabo.
(26.08.1839)
:: A VIDA DOS CICLOPES SELVAGENS
::
por Marcelo Benvenutti, em Vidas Cegas
Os ciclopes são seres que trocaram a visão do futuro
e do destino por um de seus olhos. Por isso os ciclopes têm
apenas um olho e fazem muito gosto por continuarem assim. Eles vivem
e trabalham em cidades submersas que outrora fizeram parte desse mundo
e agora pertencem ao mundo das pessoas que conhecem seus destinos
e sabem muito bem o que estão fazendo. Sei que vocês
são pessoas inteligentes, vejam bem, inteligentes, eu disse,
e têm consciência de que o destino não existe e
é uma invenção mentirosa dos invejosos. Mas,
saibam, que em outro ligar vivem os ciclopes selvagens. Os ciclopes
selvagens são seres imbecis que decidiram não conhecer
seus próprios destinos. Os ciclopes selvagens vivem em cabanas
de barro e se alimentam de cogumelos quadrados. Pouco importa se cogumelos
quadrados não existem. Os ciclopes serlvagens procriam-se sem
nenhuma necessidade e escrevem com o dedo palavras inaudíveis
no chão de terra batida da aldeia. Os ciclopes selvagens não
escovam o cabelo e nem respeitam o sábado. Bom, pra dizer a
verdade pra vocês, os ciclopes selvagens não têm
a mínima idéia do significado da palavra sábado.
Mas, mesmo assim, todos os domingos eles se reúnem no centro
da aldeia e cantam horas e horas sem parar. E, depois disso, recolhem-se.
Amanhã é outro dia. Ontem não tem a mínima
importância. Enquanto isso, na sociedade sensata e organizada,
os relógios trabalham sem descanso e as nuvens nunca estão
no mesmo lugar.
:: DA VIDA COMO MELODRAMA ::
contado por Philip Knightley, sobre alguma guerra
Houve o general Penn Symons, que ignorava as advertências quanto
ao perigo de ficar de pé sobre uma colina para obter uma melhor
visão. Symons, de repente, virou-se para seu ajudante de campo
e disse, com a maior calma: "Estou grave e mortalmente ferido
no estômago" -- e morreu logo em seguida.
:: REPARA NO AMARELO, É LINDO ::
por John dos Passos, 1919
Randolph Bourne
surgiu como habitante deste planeta
sem o prazer de escolher pátria ou carreira
Era corcunda, neto de um padre congregado, nascido em 1996, em Bloomfield,
New Jersey; foi aí que freqüentou a escola primária
e o liceu.
Tirou o curso na Universidade de Colúmbia trabalhando numa
fábrica de rolos para pianolas em Newark, corrigindo provas
tipográficas, afinando pianos e atuando como acompanhador numa
classe de canto no Carnegie Hall.
Em Colúmbia, estudou com John Dewey
ganhou uma bolsa que lhe permitiu ir a Inglaterra Paris Roma Berlim
Copenhagen,
escreveu um livro sobre o sistema Gary.
Na Europa ouviu música, muitas obras de Wagner e Scriabine
e comprou uma capa preta.
Este homenzinho semelhante a um pardal,
insignificância de carne torturada envolta numa capa preta,
sempre com dores e achaques,
colocou uma pedra na funda
e atingiu Golias em plena testa.
A guerra, escreveu, é a saúde do Estado.
Meio músico, meio especialista em teorias educacionais. A doença,
a pobreza, o aleijão, a zanga com a família, não
tinham roubado a Randolph Bourne o prazer de viver; era um homem feliz,
gostava de Die Meistersinger, de tocar Bach com as longas mãos
que se abriam com tanta facilidade sobre as teclas, de raparigas bonitas,
de boa comida e de conversa ao serão. Quando estava a morrer
de pneumonia, um amigo trouxe-lhe um eggnog. "Repara no amarelo,
é lindo", dizia sem cessar enquanto a vida se apagava
em delírio e febre. (Era um homem feliz.)
(...)
Morreu seis semanas depois do Armistício, quando planejava
um ensaio sobre os fundamentos do futuro radicalismo na América.
Se todos os homens têm um fantasma
Bourne tem um fantasma,
um pequeno fantasma disforme mas sem pavor envolto numa capa negra
coxeando pelas velhas e feias ruas de tijolos e pedras pardas que
ainda restam na parte baixa de Nova York;
gritando com um riso silencioso e agourento:
A guerra é a saúde do Estado.
:: MEDO ::
por André Bretão
Não é o medo da loucura que nos vai obrigar a hastear
a meio-pau a bandeira da imaginação.
:: AVENIDA C ::
por Will Eisner
Desde o início
Quando se tornou
A artéria principal
Ligando o lado leste
Ao lado oeste
A avenida C
conduzia o fluxo principal
da cidade – um canal
num oceano de concreto
Sobre sua superfície de asfalto
movia-se o tráfego
de pedestres – ou
de galeões de rodas
Depois vieram os metrôs
com seus respiradouros
gradeados
salpicando a superfície
com buracos imundos
que recebiam os dejetos
e os inevitáveis
destroços das
inúmeras colisões
na torrente da vida
Que ali ficavam
por anos sem fim
à espera
dos caçadores de tesouros
:: ÁGUA DE QUEIJO ::
por J. G. de Araújo Jorge, em correspondência a Alphonsus
Rio de Janeiro, 14 de junho de 1944.
Caiu água de queijo no meu pé.
Não há nada tão nojento, putrefato e instigante
quanto água de queijo escorrendo pelo tornozelo, se espalhando
entre os dedões, tornando sua vida mais imunda e grudenta do
que sempre foi. Um dos sete sábios gregos, não me lembro
quem foi (escolhe o Bias! escolhe!), viu no requeijão algo
de transcendental e infinitamente branco, e por esse motivo cremoso
é que estaríamos obrigados a salpicar nossos parentes
e nossas paredes com argamassa de requeijão, para que todos
fiquemos plasticamente bonitos e assim por diante, pensando bem acho
que não foi o Bias, e nem era esse o ponto . O que continua
se amolengando nos meus pés não é um pote de
requeijão, eu sei: é uma gosma da água de queijo.
Ela olha pra mim, eu olho pra ela. Ainda não decidimos quem
é mais bobo.
:: QUE CULPA TEM O TOMATE ::
De La Hierva de los camiños, ouvida a esmo
Qué culpa tiene el tomate
que está tranquilo en la mata
y viene un hijo de puta
y lo mete en un lata
y lo manda pa' Caracas..
:: O MOLE ::
por Paulo Jimenez, Don Viktor e André Deak
Tinha um, entre os três, que era o mais mole. “Mole e
colado na coxa”, diriam eles, para não perder a piada.
Precisava de empurrões para fazer as coisas, precisava que
os outros dois o puxassem para a frente, senão desandava. Dormia.
Chegaram a pensar que era culpa da mosca Tsé-Tsé, mas
a última havia partido em 52, junto com as bananas que foram
para a Bahia. Não, não era doença. Era preguiça
mesmo.
- Precisa arrumar uma namorada, diagnosticava a mãe.
- Precisa começar a beber que nem homem, dizia um amigo.
- Precisa largar a mão de ser besta, pensava a menina que se
jogou no colo dele e ele não fez nada.
Ninguém sabia o que ele precisava.
Para tentar ajudá-lo, resolveram traçar um perfil dele
e tentar encontrar o problema. Tinha apanhado quando criança?
Não, não tinha, senão seria violento, bateria
em mulher. (Aqui, é bom notar, ocorre uma análise psicológica
extremamente profissional, calcada em anos de estudos.) Caiu de cabeça
do berço? Ninguém sabia, mas não era provável,
pois a circunferência de sua cabeça parecia normal –
e no caso de queda certamente seria quadrada ou, no máximo,
triangular. Será que ele se drogava, cheirava maconha, fumava
cocaína? Pô, o cara nem bebia! Definitivamente, seria
difícil descobrir a origem de sua moleza.
Havia uma coisa, sim, havia, que o fazia tomar atitudes impávidas,
sem pensar muito, decididas e rápidas: mulheres em trajes menores.
Sempre que lembrava delas – ou imaginava – corria para
encontrá-las, onde estivessem. Apaixonava-se com a facilidade
que um garçom de rodízio coloca uma lingüiça
no prato. Com a velocidade de uma pasta de dente saindo do tubo do
Van Damme. Com a intensidade de uma dor de barriga pós-churrasco
grego com vitamina de abacate. Não era fácil.
Como direcionar essa vontade política? Como levá-lo
a utilizar sua mente criativa em prol do sucesso e não em busca
de um – como diria um conhecido chulo – um bife de fígado.
Um deles teve uma idéia: decidiu escrever um texto e mandar
pra ele por e-mail, para ele ver se se tocava. Mas o outro sugeriu,
por precaução, que talvez fosse melhor mandá-lo
através de alguma garota. Em trajes menores, de preferência.
:: AINDA POR CIMA, MAL FEITAS ::
por George Orwell
Ainda bastante jovem, notei que nenhum
acontecimento é jamais noticiado corretamente pelos jornais,
mas na guerra civil da Espanha, pela primeira vez, vi matérias
sem qualquer relação com os fatos, nem mesmo o tipo
de relação implícito numa mentira comum.
:: DE CIDADE E BRINQUEDOS ::
da Redação
No metrô Anhangabaú,
um avestruz dança. O homem segura as pontas de madeira do fantoche
de penas e observa, compenetrado, a coreografia de seu avestruz. O
orgulho do papai. Pessoas passam e ali está o homem, encolhido
e quieto, vendo o bicho trocar os passinhos: a pata aqui, a cabeça
acolá, a outra pata erguida, uma sacudida nas penas, ele quase
sorri. Uma pessoa passa, demonstra interesse e o avestruz (alucinado)
passa a ter espasmos de música eletrônica. Mas a pessoa
cansa, vai embora ou compra um bilhete de ônibus na banca ao
lado. As patas do avestruz se calam; o homem senta no chão.
Urso de pelúcia dá um
abraço grandão, venha ver meu senhor, enquanto o cara
das bolhinhas de sabão enche o ar de detergente e mal lembra
do que está fazendo, do brilho das bolhas, do arco-íris.
Apenas faz. Passa uma criança, ri, e ele continua soprando.
Mais alheio ainda, um hipopótamo de plástico faz natação
em plena bacia.
Outro homem espreme uma massinha nas mãos e molda um senhor-cabeça-de-batata.
Nem junta gente. Mesmo assim, maravilhado ou entediado com as formas
que sua massinha de borracha pode assumir, vai mostrando a coisinha
amarela às pessoas, uma a uma, olha só ela tem cabelos,
um tufo só mas são bons cabelos, e tem um nariz de bolinha
de borracha, como é bonitinha, não é?
O cabeça-de-batata, maldito,
tem um sorriso permanente desenhado na cara.
E o boneco é de borracha só
por fora. Após uma manobra ousada (tentativa de transformar
o cabeça-de-batata em ameba), o boneco estoura e uma nuvem
impressionante de talco cobre o rosto do homem triste. O boneco morreu,
diz uma criança. O homem morreu; nem limpa a face e vai embora
melancólico, pra qualquer lado, protegendo com as mãos
sua enorme sacola de cabeças-de-batata-feitos-de-talco.
Nada mais triste do que um homem quieto
com a cara suja e cheirosa, carregando uma sacola cheia de cabeças-de-batata-feitos-de-talco.
:: TARDE DEMAIS - II ::
Por Manoel Bandeira
Não te doas do meu silêncio: estou cansado de todas as
palavras.
:: CORRESPONDÊNCIA ::
e-mails reais, alcalinos
e suspeitíssimos, interceptados por um inocente nenúfar.
Alsácia, 17 de janeiro de 2003.
Caríssimo,
Os técnicos e almoxarifes do laboratório DamnZine já
estão analisando a fantástica curva de espaço-tempo
acionada a partir de sua epístola. Nem pensamos em enviar um
email e a resposta já chegou. Trata-se de um fato curioso,
que vem tomando todo o nosso tempo (in)útil. Um dos membros
da diretoria, inclusive, chegou a cogitar em mandar um bilhete ao
senhor, negando a autorização de inclusão do
nosso link em seu site, mas todos tivemos medo do que aconteceria.
Até criamos um grupo de trabalho para estudar as probabilidades
terríveis do fato, e concluímos que, caso negássemos
a autorização, a curva espaço-tempo se reverteria,
o fluxo de mutações se potencializaria e o DamnZine
se transformaria em:
a) um paracelso
b) um legume
c) um hífen
d) um folheto promocional de uma exposição de arte etrusca
...o que, sem dúvida, não
seria de todo mal para os leitores mais irritados. De qualquer maneira,
estamos trabalhando um bocado para a resolução do problema
e, se em 13 dias não mandarmos a V. Exmo. um memorando detalhado
com as conclusões finais ("Do Porquê Das Alterações
Espaço-Temporais Em Missivas de Sujeitos Estranhos", Tomo
I), todos os profissionais serão demitidos e hei de contratar
uma hortaliça para o laboratório.
De qualquer maneira, é bom que eu autorize o senhor a fazer
qualquer coisa no nome de quem quiser, incluir links da maneira que
desejar onde bem entender -- como quando a gente clica "OK",
"OK" sem ler que está doando a própria alma
à Microsoft.
Saudações cordiais,
Cefaléia F. dos Passos, diretora-tesoureira-monarca-almoxarife
e encarregada de tirar o lixo do ralinho.
:: VOCÊ PERGUNTA, NÓS NÃO DAMOS A MÍNIMA
::
Questionamentos sadios de uma sociedade doente.
??? Se eu fosse um texugo, uma afta
amarela ou um e-mail criptografado, será que então alguém
falaria comigo?