A Hortaliça

www.hortifruti.org

É como um soluço, só que mais forte.
Edição #043, de 7 de junho de 2003.
..Morreu aos 94 por causa de pelotas no mingau.
All things considered, insanity may be the only reasonable alternative.

hortalica@gmail.com
o senhor é TÃO esperto.

 

"We live, as we dream -- alone"
(Conrad)

 

DAS MINÚCIAS
Gedeão
 

Minúcias costumam ser, durante boa parte do tempo, felpudas e catatônicas. Nunca foram vistas em lugar algum, nem por elas mesmas, por conta de suas panças avantajadas de felpo e de seus narizes voltados pra dentro, que geralmente fazem com que as minúcias (coitadas) sofram da angústia de não poder espirrar ou tossir, permanecendo assim incomodadas com a coceirinha advinda da poeira de suas malconservadas alcatifas corporais.

Minúcias não se movem. É verdade que ninguém nunca conseguiu vê-las a fim de atestar o fato; de qualquer forma, sequer cricrilam ou soltam bolinhas de muco pela orelha, o que pode ser tomado como sinal inequívoco de sua mortidão. Por esses e outros fatores as minúcias tampouco são percebidas pelas Túcias -- trigêmeas altas, magras e de franjas que só vão ao mercado às quintas-feiras e sempre pisam nas minúcias, desde o ano da graça de 1944.

E deixam-se rolar os enlatados e as hortaliças na cabeça das estátuas felpudas, e soltam-se dos sacos os tomates (isentos de culpa) e as compras do mês, aos montes, sem qualquer consideração pelos olhinhos fundos das minúcias azuladas de dor.

Não é preciso dizer que elas nunca reclamam. Ajudaria se tivessem capacidade de se mover ou de cutucar o nariz, mas pobres minúcias, sequer sabem que são minúcias. Apenas enfileiram-se nas calçadas, atrofiadas e melancólicas, com seus olhos de botão e coraçõezinhos de lesma. Trata-se de um mundo triste para as minúcias.


:: PARA VER SE TEM ALGUÉM LENDO ::
por Alphonsus de Guimaraens

Hão de chorar por ela os cinamomos,
Murchando as flores ao tombar do dia.
Dos laranjais hão de cair os pomos,
Lembrando-se daquela que os colhia.


:: COM OS ELEFANTES ::
por e.e. cummings

Se o poeta é alguém, ele é alguém para quem as coisas feitas importam muito pouco - alguém que é obcecado pelo Fazer. Como todas as obsessões, a obsessão de Fazer tem desvantagens; por exemplo, meu único interesse em fazer dinheiro seria fazê-lo. Mas felizmente eu preferiria fazer quase tudo o mais, inclusive locomotivas e rosas. É com rosas e locomotivas (para não mencionar acrobatas primavera eletricidade Coney Island o 4 de Julho os olhos dos camundongos e as Cataratas do Niágara) que meus "poemas" competem.

Eles também competem uns com os outros, com elefantes e com El Greco.

:: É A ÚLTIMA, EU PROMETO ::
não, não teríamos mais esôfago caso pagássemos direitos autorais a ele

Mira, sólo hay un medio para matar los monstruos: aceptarlos.


:: DAS COISAS ANOTADAS SEM SABER ::
por Leipziger Stadtanzeiger. Sim, ele mesmo.

Deus criou o homem à sua imagem e a máquina construída pelo homem não pode fixar a imagem de Deus. É impossível que Deus tenha abandonado seus princípios e permitido a um francês dar ao mundo uma invenção do Diabo.

(26.08.1839)

:: A VIDA DOS CICLOPES SELVAGENS ::
por Marcelo Benvenutti, em Vidas Cegas

Os ciclopes são seres que trocaram a visão do futuro e do destino por um de seus olhos. Por isso os ciclopes têm apenas um olho e fazem muito gosto por continuarem assim. Eles vivem e trabalham em cidades submersas que outrora fizeram parte desse mundo e agora pertencem ao mundo das pessoas que conhecem seus destinos e sabem muito bem o que estão fazendo. Sei que vocês são pessoas inteligentes, vejam bem, inteligentes, eu disse, e têm consciência de que o destino não existe e é uma invenção mentirosa dos invejosos. Mas, saibam, que em outro ligar vivem os ciclopes selvagens. Os ciclopes selvagens são seres imbecis que decidiram não conhecer seus próprios destinos. Os ciclopes selvagens vivem em cabanas de barro e se alimentam de cogumelos quadrados. Pouco importa se cogumelos quadrados não existem. Os ciclopes serlvagens procriam-se sem nenhuma necessidade e escrevem com o dedo palavras inaudíveis no chão de terra batida da aldeia. Os ciclopes selvagens não escovam o cabelo e nem respeitam o sábado. Bom, pra dizer a verdade pra vocês, os ciclopes selvagens não têm a mínima idéia do significado da palavra sábado. Mas, mesmo assim, todos os domingos eles se reúnem no centro da aldeia e cantam horas e horas sem parar. E, depois disso, recolhem-se. Amanhã é outro dia. Ontem não tem a mínima importância. Enquanto isso, na sociedade sensata e organizada, os relógios trabalham sem descanso e as nuvens nunca estão no mesmo lugar.


:: DA VIDA COMO MELODRAMA ::
contado por Philip Knightley, sobre alguma guerra

Houve o general Penn Symons, que ignorava as advertências quanto ao perigo de ficar de pé sobre uma colina para obter uma melhor visão. Symons, de repente, virou-se para seu ajudante de campo e disse, com a maior calma: "Estou grave e mortalmente ferido no estômago" -- e morreu logo em seguida.


:: REPARA NO AMARELO, É LINDO ::
por John dos Passos, 1919

Randolph Bourne
surgiu como habitante deste planeta
sem o prazer de escolher pátria ou carreira
Era corcunda, neto de um padre congregado, nascido em 1996, em Bloomfield, New Jersey; foi aí que freqüentou a escola primária e o liceu.
Tirou o curso na Universidade de Colúmbia trabalhando numa fábrica de rolos para pianolas em Newark, corrigindo provas tipográficas, afinando pianos e atuando como acompanhador numa classe de canto no Carnegie Hall.
Em Colúmbia, estudou com John Dewey
ganhou uma bolsa que lhe permitiu ir a Inglaterra Paris Roma Berlim Copenhagen,
escreveu um livro sobre o sistema Gary.
Na Europa ouviu música, muitas obras de Wagner e Scriabine e comprou uma capa preta.
Este homenzinho semelhante a um pardal,
insignificância de carne torturada envolta numa capa preta,
sempre com dores e achaques,
colocou uma pedra na funda
e atingiu Golias em plena testa.
A guerra, escreveu, é a saúde do Estado.
Meio músico, meio especialista em teorias educacionais. A doença, a pobreza, o aleijão, a zanga com a família, não tinham roubado a Randolph Bourne o prazer de viver; era um homem feliz, gostava de Die Meistersinger, de tocar Bach com as longas mãos que se abriam com tanta facilidade sobre as teclas, de raparigas bonitas, de boa comida e de conversa ao serão. Quando estava a morrer de pneumonia, um amigo trouxe-lhe um eggnog. "Repara no amarelo, é lindo", dizia sem cessar enquanto a vida se apagava em delírio e febre. (Era um homem feliz.)

(...)

Morreu seis semanas depois do Armistício, quando planejava um ensaio sobre os fundamentos do futuro radicalismo na América.
Se todos os homens têm um fantasma
Bourne tem um fantasma,
um pequeno fantasma disforme mas sem pavor envolto numa capa negra
coxeando pelas velhas e feias ruas de tijolos e pedras pardas que ainda restam na parte baixa de Nova York;
gritando com um riso silencioso e agourento:
A guerra é a saúde do Estado.


:: MEDO ::
por André Bretão

Não é o medo da loucura que nos vai obrigar a hastear a meio-pau a bandeira da imaginação.


:: AVENIDA C ::
por Will Eisner

Desde o início
Quando se tornou
A artéria principal
Ligando o lado leste
Ao lado oeste

A avenida C
conduzia o fluxo principal
da cidade – um canal
num oceano de concreto

Sobre sua superfície de asfalto
movia-se o tráfego
de pedestres – ou
de galeões de rodas

Depois vieram os metrôs
com seus respiradouros
gradeados
salpicando a superfície
com buracos imundos
que recebiam os dejetos
e os inevitáveis
destroços das
inúmeras colisões
na torrente da vida

Que ali ficavam
por anos sem fim
à espera
dos caçadores de tesouros


:: ÁGUA DE QUEIJO ::
por J. G. de Araújo Jorge, em correspondência a Alphonsus

Rio de Janeiro, 14 de junho de 1944.

Caiu água de queijo no meu pé.

Não há nada tão nojento, putrefato e instigante quanto água de queijo escorrendo pelo tornozelo, se espalhando entre os dedões, tornando sua vida mais imunda e grudenta do que sempre foi. Um dos sete sábios gregos, não me lembro quem foi (escolhe o Bias! escolhe!), viu no requeijão algo de transcendental e infinitamente branco, e por esse motivo cremoso é que estaríamos obrigados a salpicar nossos parentes e nossas paredes com argamassa de requeijão, para que todos fiquemos plasticamente bonitos e assim por diante, pensando bem acho que não foi o Bias, e nem era esse o ponto . O que continua se amolengando nos meus pés não é um pote de requeijão, eu sei: é uma gosma da água de queijo. Ela olha pra mim, eu olho pra ela. Ainda não decidimos quem é mais bobo.

:: QUE CULPA TEM O TOMATE ::
De La Hierva de los camiños, ouvida a esmo

Qué culpa tiene el tomate
que está tranquilo en la mata
y viene un hijo de puta
y lo mete en un lata
y lo manda pa' Caracas..


:: O MOLE ::
por Paulo Jimenez, Don Viktor e André Deak

Tinha um, entre os três, que era o mais mole. “Mole e colado na coxa”, diriam eles, para não perder a piada. Precisava de empurrões para fazer as coisas, precisava que os outros dois o puxassem para a frente, senão desandava. Dormia. Chegaram a pensar que era culpa da mosca Tsé-Tsé, mas a última havia partido em 52, junto com as bananas que foram para a Bahia. Não, não era doença. Era preguiça mesmo.
- Precisa arrumar uma namorada, diagnosticava a mãe.
- Precisa começar a beber que nem homem, dizia um amigo.
- Precisa largar a mão de ser besta, pensava a menina que se jogou no colo dele e ele não fez nada.
Ninguém sabia o que ele precisava.
Para tentar ajudá-lo, resolveram traçar um perfil dele e tentar encontrar o problema. Tinha apanhado quando criança? Não, não tinha, senão seria violento, bateria em mulher. (Aqui, é bom notar, ocorre uma análise psicológica extremamente profissional, calcada em anos de estudos.) Caiu de cabeça do berço? Ninguém sabia, mas não era provável, pois a circunferência de sua cabeça parecia normal – e no caso de queda certamente seria quadrada ou, no máximo, triangular. Será que ele se drogava, cheirava maconha, fumava cocaína? Pô, o cara nem bebia! Definitivamente, seria difícil descobrir a origem de sua moleza.
Havia uma coisa, sim, havia, que o fazia tomar atitudes impávidas, sem pensar muito, decididas e rápidas: mulheres em trajes menores. Sempre que lembrava delas – ou imaginava – corria para encontrá-las, onde estivessem. Apaixonava-se com a facilidade que um garçom de rodízio coloca uma lingüiça no prato. Com a velocidade de uma pasta de dente saindo do tubo do Van Damme. Com a intensidade de uma dor de barriga pós-churrasco grego com vitamina de abacate. Não era fácil.
Como direcionar essa vontade política? Como levá-lo a utilizar sua mente criativa em prol do sucesso e não em busca de um – como diria um conhecido chulo – um bife de fígado. Um deles teve uma idéia: decidiu escrever um texto e mandar pra ele por e-mail, para ele ver se se tocava. Mas o outro sugeriu, por precaução, que talvez fosse melhor mandá-lo através de alguma garota. Em trajes menores, de preferência.

:: AINDA POR CIMA, MAL FEITAS ::
por George Orwell

Ainda bastante jovem, notei que nenhum acontecimento é jamais noticiado corretamente pelos jornais, mas na guerra civil da Espanha, pela primeira vez, vi matérias sem qualquer relação com os fatos, nem mesmo o tipo de relação implícito numa mentira comum.

:: DE CIDADE E BRINQUEDOS ::
da Redação

No metrô Anhangabaú, um avestruz dança. O homem segura as pontas de madeira do fantoche de penas e observa, compenetrado, a coreografia de seu avestruz. O orgulho do papai. Pessoas passam e ali está o homem, encolhido e quieto, vendo o bicho trocar os passinhos: a pata aqui, a cabeça acolá, a outra pata erguida, uma sacudida nas penas, ele quase sorri. Uma pessoa passa, demonstra interesse e o avestruz (alucinado) passa a ter espasmos de música eletrônica. Mas a pessoa cansa, vai embora ou compra um bilhete de ônibus na banca ao lado. As patas do avestruz se calam; o homem senta no chão.

Urso de pelúcia dá um abraço grandão, venha ver meu senhor, enquanto o cara das bolhinhas de sabão enche o ar de detergente e mal lembra do que está fazendo, do brilho das bolhas, do arco-íris. Apenas faz. Passa uma criança, ri, e ele continua soprando. Mais alheio ainda, um hipopótamo de plástico faz natação em plena bacia.
Outro homem espreme uma massinha nas mãos e molda um senhor-cabeça-de-batata. Nem junta gente. Mesmo assim, maravilhado ou entediado com as formas que sua massinha de borracha pode assumir, vai mostrando a coisinha amarela às pessoas, uma a uma, olha só ela tem cabelos, um tufo só mas são bons cabelos, e tem um nariz de bolinha de borracha, como é bonitinha, não é?

O cabeça-de-batata, maldito, tem um sorriso permanente desenhado na cara.

E o boneco é de borracha só por fora. Após uma manobra ousada (tentativa de transformar o cabeça-de-batata em ameba), o boneco estoura e uma nuvem impressionante de talco cobre o rosto do homem triste. O boneco morreu, diz uma criança. O homem morreu; nem limpa a face e vai embora melancólico, pra qualquer lado, protegendo com as mãos sua enorme sacola de cabeças-de-batata-feitos-de-talco.

Nada mais triste do que um homem quieto com a cara suja e cheirosa, carregando uma sacola cheia de cabeças-de-batata-feitos-de-talco.


:: TARDE DEMAIS - II ::
Por Manoel Bandeira

Não te doas do meu silêncio: estou cansado de todas as palavras.


:: CORRESPONDÊNCIA ::
e-mails reais, alcalinos e suspeitíssimos, interceptados por um inocente nenúfar.

Alsácia, 17 de janeiro de 2003.

Caríssimo,
Os técnicos e almoxarifes do laboratório DamnZine já estão analisando a fantástica curva de espaço-tempo acionada a partir de sua epístola. Nem pensamos em enviar um email e a resposta já chegou. Trata-se de um fato curioso, que vem tomando todo o nosso tempo (in)útil. Um dos membros da diretoria, inclusive, chegou a cogitar em mandar um bilhete ao senhor, negando a autorização de inclusão do nosso link em seu site, mas todos tivemos medo do que aconteceria. Até criamos um grupo de trabalho para estudar as probabilidades terríveis do fato, e concluímos que, caso negássemos a autorização, a curva espaço-tempo se reverteria, o fluxo de mutações se potencializaria e o DamnZine se transformaria em:

a) um paracelso
b) um legume
c) um hífen
d) um folheto promocional de uma exposição de arte etrusca

...o que, sem dúvida, não seria de todo mal para os leitores mais irritados. De qualquer maneira, estamos trabalhando um bocado para a resolução do problema e, se em 13 dias não mandarmos a V. Exmo. um memorando detalhado com as conclusões finais ("Do Porquê Das Alterações Espaço-Temporais Em Missivas de Sujeitos Estranhos", Tomo I), todos os profissionais serão demitidos e hei de contratar uma hortaliça para o laboratório.

De qualquer maneira, é bom que eu autorize o senhor a fazer qualquer coisa no nome de quem quiser, incluir links da maneira que desejar onde bem entender -- como quando a gente clica "OK", "OK" sem ler que está doando a própria alma à Microsoft.

Saudações cordiais,
Cefaléia F. dos Passos, diretora-tesoureira-monarca-almoxarife e encarregada de tirar o lixo do ralinho.


:: VOCÊ PERGUNTA, NÓS NÃO DAMOS A MÍNIMA ::
Questionamentos sadios de uma sociedade doente.

??? Se eu fosse um texugo, uma afta amarela ou um e-mail criptografado, será que então alguém falaria comigo?


EXPEDIENTE

Este Zine é impessoal, objetivo e imparcial. Computadores meticulosamente programados preenchem formulários, desenvolvem os textos, se emocionam, revisam e publicam a visão neutra e apolítica da coisa toda. O único responsável é a instituição "Da Redação".


... Para ser lido na maldita hora da noite em que tudo é engraçado (que vem logo após a hora em que nada faz sentido e antes daquela em que tudo faz sentido) - Stephanie A.

## Você está recebendo o !!DAMN!! Zine porque estava na lista de indivíduos manquitolas da lista negra dos Illuminati. Ou então, ou então! Você está recebendo o !!DAMN!! Zine porque foi um dos 139 mil nomes escolhidos entre todos os possíveis do mundo, sorteados em uma grande urna chinesa. Você e Li-Ching-Yang. Caso não queira voltar a receber este monte de bobagens, mande um e-mail para vmbarbara@brfree.com.br, e escreva na linha de assunto: "Me deixem em paz, pelas barbas de Tutatis!". (Fnord keeps a spare eyebrow in his pocket.)

"Em verdade, em verdade vos digo: Aquele que ri cuidado para que não babe".


God is coming.
Look busy.



2005 Vanessa Barbara