"Como irritar um mosquito",
"Consiga o que quer sem resmungar", "A lua nos deixa
loucos?", "O Extraordinário Ovelheiro Escocês"
e "Eu sou o intestino delgado de João" são
alguns dos extraordinários títulos de matérias
da Seleções do Reader's Digest, revista que desce macio
e confere maior bobice à nossa imprensa aborrecida.
Durante os quase três anos de existência deste legumináceo
jornalzinho, publicamos versões de nossos redatores para manchetes
tão instigantes. [Para títulos reais, matérias
ridículas.] Como a preguiça ainda corrói nossa
existência desde o incidente com o pombo laranja relatado na
edição #12, apresentamos no presente número uma
coletânea dos piores textos sobre o assunto, organizados em
ordem aleatória e inspirados pelas reportagens emocionantes
da indigesta Reader's Digest.
no mais, cubram-se de caramelo
(e não leiam tudo de uma vez. faz mal)
:: EU SOU O ESÔFAGO DE JOÃO ::
da edição #007
...Domingo à tarde, salada de agrião de almoço
e nada na tevê, aquele aroma de azeite barato grudado às
paredes, por Deus. Uma senhora gorda com cara de enzima de nome Gertrude
entrou sem bater e começou a esfregar minhas partes íntimas
com Pato Purific, pra ver se tirava o óleo. Apenas um dia pachorrento
sem grandes problemas digestórios, repleto de tédio
e imprecação me aguardava, quando o vi. Sim, um cuscuz
farelento cercado de sucos esquisitos e mucos da pior espécie,
o Bolo Alimentar mais charmoso que eu havia encontrado. Ele chacoalhava
com graciosidade, escorando-se delicadamente nas minhas paredes estriadas
e lançando olhares sensuais toda vez que dançava, a
movimentar os lindos pezinhos de pelica. Oh, nunca vou me me esquecer
daqueles loucos instantes em que me apaixonei pelo Cuscuz Castanho
e senti a vida transbordando em meus poros, radiando emoções
intensas, revelando sentimentos profundos, ah, foi deveras efêmero!
Em instantes eles chegaram e levaram o Fofo Cuscuz de mim, os porcos
arrogantes oleosos movimentos peristálticos, ainda cuspiram
pra trás e deram risada. Foi então que meu adorado bolo
alimentar revelou sua face mesquinha e entregou-se lascivamente ao
estômago, sem ao menos jogar um pedaço de azeitona como
prova do seu amor. Ó cruel, sádico destino, por que
renegaste tua cria mais dileta?! ....
(continua na pestilenta edição de março de 1972,
quando o Esôfago de João se encontra com a Tíbia
de Maria e ambos saem para tomar um capuccino no Frans Café
da Vila Madalena. Realmente instrutiva, esta série de matérias).
:: MARIANA ::
um pouco de Rubem Braga para neutralizar as coisas
Mariana, eu acho impossível uma pessoa viver sem você.
E ela ri e agradece -- pois já estamos na idade de poder dizer
e ouvir, sem ilusões, as mais simples, e belas, e graves tolices.
:: NO MUNDO MÁGICO DOS MÓBILES (CATARINA) ::
da edição #009
Um gato gordamente laranja boiava junto ao teto, e Catarina não
conseguia alcançá-lo. Os dedos, rechonchudos, tentavam
ao menos tocá-lo, sentir suas escamas plásticas, o focinho
gelado, o carimbo da Glasslite, mas estava tão longe. Junto
ao bichano laranja, outras formas diversas ululavam ao sabor do vento:
um queijo de pelúcia, três ou quatro quadrados azuis,
uma bailarina de cristal, alguns guizos que não a deixavam
dormir.
Tio Otterson dispôs os móbiles metodicamente a uma distância
padrão xis, considerando a velocidade da brisa e a disposição
dos espelhos do quarto. Otterson seguia rigorosamente os preceitos
do Feng Shui. Nunca sapateou pois considerava ofensivo o ato de firmar
os pés em ângulos tortos, às vezes voltados de
frente um para o outro, desafiando todas as leis da prudência
planetária. Mas voltemos ao adorável bebê Catarina,
que tentava alcançar o móbile laranja como tentava chupar
o dedão dos pés ou morder o próprio rabo.
Naquela tarde, depois que Tio Otterson colocou a bailarina ao lado
do grande móbile quadrado (por causa dos maus fluidos vindos
do armário de mogno), muita coisa aconteceu sobre o berço.
O quadrado menor chocou-se com um dos guizos e começaram a
discutir loucamente, até que a bailarina deu um chute certeiro
na bolinha de cobre, o sistema balançou perigosamente e bloft!,
o pequeno quadrado espatifou-se no chão, acordando a lânguida
Catarina.
Ela olhou feio para os lados e tentou novamente alcançar o
gato laranja, lá no alto, soltando gritinhos nenêuticos,
mas seus dedos só encontraram a bailarina insolente e um enorme
pêlo – que estava passando por ali e ainda não
tinha entrado na história. Catarina deu uma risada engraçada
e soltou o maldito fiapo, que poderia ser um pedaço de pena,
um naco de tecido ou apenas um pêlo voador desocupado, como
os outros tantos que flutuam por esse mundo afora. O pêlo continuou
seu caminho (esperando posteriormente encontrar amigos e formar uma
grande bola de felpo), o bebê gargalhava com histeria, a bailarina
seguia seu caminho e o queijo de pelúcia não quis se
manifestar sobre o assunto (desculpe).
Eis que Catarina, num esforço desesperado para alcançar
o maldito Gato Gordo (antes que ele irritasse os leitores), perde
o equilíbrio e cai do berço. Com outra gargalhada típica,
leva o quadrado menor à boca e descobre que, apesar de pequeno,
ele é grande o suficiente para obstruir suas vias respiratórias
até a asfixia. Com o aspecto arroxeado da pele, o bebê
Catarina ganha um espaçoso túnel de luz e – enfim
– a companhia de um Grande e Roliço Gato Laranja, que
tinha se entediado do ula-ula dos móbiles, fez uma trouxa de
comida enlatada e resolveu passar desta para melhor.
E depois dizem que a disposição das coisas não
tem nada a ver.
:: MINHA MÃE CAIU NA ESTRADA ::
Ronaldo Bressane, uma espécie de Erroll Flynn em technicolor
Minha mãe caiu na estrada
Foi morar na cidade de Kerouac Lowell Massachusetts USA
Dali Kerouac fugiu mas voltou para buscar sua mãe e só
aí morrer
Ali minha mãe acorda todo dia cedo
Esquece as dores nos joelhos esquece que nunca viu o seu neto e vai
alegre fritar batatas na Wendy’s
Enquanto pensa que tem um emprego
enquanto pensa que se existe Jesus não é o mesmo de
Kerouac e Bush
suas batatas reluzem no óleo
estáticas clandestinas órfãs queimam.
:: COMO TOMAR UMA CASQUINHA DE SORVETE ::
da edição #008
Primeiro, desdobre a presente bula. Se você está lendo
isto aqui é porque já passou dessa fase, portanto é
dispensável descrever o modo correto de desdobrar o papel de
instruções, mesmo porque seria preciso outro desses
papéis de instruções para esmiuçar o procedimento,
papel que logicamente estaria dobrado – e para desdobrá-lo
seria preciso outro, enfim, a loucura acabaria por tender ao infinito
e não é disso que estamos falando. Pois bem. A primeira
providência (após desdobrar o papel, como já alertamos)
é analisar a forma geométrica do sorvete mencionado.
Se cônica, você terá tempo de ler as instruções
antes de pô-las em prática, visto que a massa cremosa
não derreterá tão rápido. Se cômica,
esqueça as instruções e lamba sem pestanejar
o maldito líquido, por todos os lados. Por cômica entende-se
a forma que se assemelha a um aspargo corcunda com dores no fígado,
a um retângulo devastado por vespas africanas ou (para ficar
bem claro) a uma massa carcomida e pestilenta de algum corpo sebáceo
não identificado, extraído de uma orelha ou de outra
parte do corpo também não identificada.
Voltando à opção Um, analise a forma e consistência
do sorvete e pegue papel e caneta. É a hora de rascunhar a
estratégia, desenhando triângulos azuis para os ataques
pela retaguarda, círculos concêntricos para as investidas
com o dente e bolinhas tímidas para as tentativas frustradas
que envolvam nariz e testa. Atenção! Resista à
tentação maligna de morder a ponta da casquinha, abaixo
de onde se segura o cone de biju. Do contrário, o inevitável
acontecerá: os anjos decerão com trombetas, o caos se
apossará do universo e a massa cremosa de pistache tombará
como um gordinho no tobogã, resultando numa previsível
e justificada chacota do vendedor de tutsi frutsi.
Para decidir se urge abordar a massa de sorvete pelos cantos ou pelo
topo, faz-se necessário utilizar a fórmula da aerodinâmica
e resistência do ar, que consiste em multiplicar o cubo da potência
indefinida à hipotenusa da variável "Xis",
tal que X seja menor ou igual a....
:: SENSACIONAL ::
notícias d'além-mar
http://gonline.uol.com.br/livre/gnews/html/gnews1641.shtml
gostei do "fomentar o respeito do cidadão à liberdade
de indumentária". Nesses termos, teríamos a permissão
legal de passear pelo metrô Santana vestidos de pato / com asas
de papelão e sapatos do irmão mais velho. Não
que isso já tenha acontecido.
:: POEMA ::
do Alexandre Barbosa, que nunca é o Alexandre Barbosa que estamos
procurando
Me assusta
Como ando entre os espinhos
Com dedicação.
Agora vejo
Que visto há dois dias
A camisa que você abraçou.
Parece que quero
Entrar no mar e não sair,
Mas isto é um desejo todo seu.
:: CORVOS, QUASE GENTE! ::
da edição #011
Querido Damião,
Ontem preenchi os papéis do crediário. Em breve terei
um par de lindas luvas de pelica, para vestir minhas patas e poder
enfim saracotear em superfícies ásperas, o que considero
uma evolução glorificável de nossa espécie
sofrida. Mas creio que isso não venha te interessar, ó
amigo de longa data. Escrevo para pedir-lhe que sintonize, neste instante,
seu aparelho televisor no canal 82, e ajuste a antena com muito esmero.
Vês as imagens da passeata? Pois aquele, de negro, ali atrás,
bicando o queixo do presidente, sou eu. Sim, meu bom amigo, e pensar
que nós dividimos a merenda em ’77. Se prestar bastante
atenção, poderá conferir aquele senhor grisalho
tentando se livrar de minha pessoa passarácea, e um grupo de
seguranças se retorcendo no chão, sofrendo com titica
no olho. Pois fiz duas investidas agudas no queixo de Vossa Excelência,
depois parti para bicadas na nuca; logo em seguida golpeei as orelhas
e face esquerda do rosto com vigorosas batidas de asa, que provocaram
os hematomas arroxeados com leve aroma de benjoim que você pode
ver no vídeo. Em seguida, quando um popular (o de amarelo,
com cara de tamanduá) quis prestar socorro à autoridade,
apenas cravei uma de minhas patas na narina do cidadão e ele
veio ao chão, para alegria dos demais transeuntes que se divertiam
a valer com a cena. Ao som de "enforca ele! enforca ele!",
tentei circundar o pescoço do Homem com minhas penas terroristas,
mas ele valeu-se de uma técnica chinesa e chutou-me a barriga,
golpe que ocasionou uma dormência terrível em meus carcomidos
órgãos internos. Veja que até o câmera
está gargalhando com a cena, e o senhor de azul marinho se
aproximando do meu corpo momentaneamente inerte é o dono de
uma emissora de TV, propondo-me um contrato como apresentador de reality
show.
Depois de olhar com desdém ao moço de terno e cuspir
uma substância venenosa em sua direção, voltei
a atacar o presidente com toda minha virulência corvídea
até que os helicópteros da S.W.A.T. chegaram e tive
que me retirar, com um sorriso de canto. Ainda lancei perdigotos à
multidão e fui ovacionado pelas meninas mais novas. Do hospital,
a Autoridade falou em Rede Nacional que iria aumentar os benefícios
de nossa classe corval, e lamenta muito o sofrimento que nos fez passar
nestes dois mil anos de administração humana. Ele ainda
respira com a ajuda de aparelhos, mas em breve irá renunciar
da Presidência da República e espero ser convidado para
integrar o Triunvirato Governamental, com a ajuda de uma amiga gralha
e um distinto representante da minoria urubu, todos devidamente limpinhos
e eloqüentes perante as câmeras.
Deseje-me sorte. E não se esqueça de dar comida ao humano
enquanto eu estiver fora.
Mui penosamente,
Parvo, o Corvo.
:: CARTAS ::
Rilke
Se o próximo lhe parece longe, os seus longes alcançam
as estrelas, são imensos.
:: WEST COUNTRY GIRL ::
Nick Cave
Well, who could ask much more than that?
A West country girl with a big fat cat
That looks into her eyes of green
And meows, "He loves you", then meows again
:: O MILAGRE DAS JARDINEIRAS
FLORIDAS ::
da edição #32
Há muito tempo, numa pradaria distante, um irlandês de
sobrancelhas ruivas cultivava sua jardineira.
Dividia o ínfimo espaço de terra em camadas coloridas,
a saber: margaridas, rosas, crisântemos e tartarugas (ignore),
sem contar o espaço do girassol, que nascia sorridente na outra
ponta. O irlandês não entendia bolhufas de botânica
e, portanto, não sabia que tudo aquilo era impossível.
Assim, continuou cultivando as miúdas daquele jeito mesmo.
Certo dia, os vizinhos bateram-lhe à porta. A crise econômica
tinha chegado à Irlanda (mesmo isto aqui sendo uma fábula
e as complicações financeiras não atingirem tais
mundos). Todos estavam famintos e só ele possuía uma
faixa de terra para cultivar guloseimas. Polidamente, pediram que
o irlandês arrancasse as flores do local e desse espaço
a uma horta comunitária, provavelmente de batatas-doces.
Pois o ruivo olhou furtivamente para seus botões e teve medo
que as flores se magoassem com o que haviam acabado de ouvir. Expulsou
os cidadãos do recinto e amaldiçoou seus antepassados,
animais de estimação e cômodas de cerejeira. Pôs-se
a olhar para as queridas plantinhas, com a barriga vazia e o coração
saltitante, dizendo-lhes palavras doces e entoando canções
antigas para que fossem dormir em paz.
Então, no dia seguinte, nasceram ali mesmo dezenas de suculentas
batatas.
O irlandês colheu-as e colocou-as numa grande cesta, para oferecer
aos vizinhos e fazer as pazes. Sobe BG. Nesse mesmo instante, contudo,
veio a impiedosa neve, prendeu sua patinha e matou os crisântemos.
Sem pernas mas ainda vivo, apanhou a cesta de batatas - onde, curiosamente,
só havia begônias.
Então o irlandês (que não conhecia a oração
da Formiguinha) morreu de desgosto e de frio ali mesmo, para desespero
do editor da revista, que terá que encontrar uma moral para
esta história.
:: IMORTALIDADE ::
Susan Hertz
Milhões de pessoas que gostariam de ganhar a imortalidade não
sabem o que fazer consigo mesmas em uma tarde chuvosa de domingo.
:: SEXTA CARTA ::
Rilke
Roma, 23 de dezembro de 1903
Não quero que fique sem uma saudação minha pelo
Natal, quando, no meio da festa, carregar a sua solidão mais
dificilmente do que nunca. Mas se verificar, nesse momento, que a
sua solidão é grande, alegre-se com isto. Que seria,
com efeito, uma solidão (faça esta pergunta a si mesmo)
que não tivesse grandeza? Há uma solidão só:
é grande e difícil de se carregar.
:: BELLO SER CRONOPIO ::
Roque Dalton
Es bello ser Cronopio,
aunque cause muchos dolores de cabeza.
Y es que el dolor de cabeza de los Cronopios
se supone histórico, es decir
que no cede ante las tabletas de analgésicos,
sino sólo ante la realización del Paraíso en
la Tierra.
Así es la cosa.
En la sociedad Fama nos duele la cabeza.
Y nos arrancan la cabeza.
En la lucha por el Paraíso, la cabeza es una bomba de retardo.
En las sociedades supuestamente cronopianas se planificaba el dolor
de cabeza,
lo cual no lo hacía escasear, sino todo lo contrario.
Una verdadera sociedad cronopiana será, si es que es algún
día,
-entre otras cosas-
una aspirina del tamaño del sol.
:: PAUSA PARA INFORME EXTRAORDINÁRIO
::
da edição #015
Caríssimos,
Meu nome é Silas, tenho 32 anos, 1,78m de altura, 68 quilos,
olhos castanhos, testa estreita, sou católico, sensível
e a favor da democracia, contanto que deixem meu pufe em paz. Recebi
a Hortaliça em uma manhã de abril e fiquei estupefato
com uma das seções que vocês teimam em manter.
Sou redator-júnior da conceituada Seleções do
Reader’s Digest há mais de 40 anos, o que faz minha mãe
perguntar quando é que me tornarei redator de fato, ou quando
irei jogar fora a faixa branca e passar direto pra redator-sênior.
Minhas atribuições na revista são, respectivamente:
trocar as lâmpadas, polir janelas, inventar trocadilhos idiotas,
tossir, declamar poemas e elaborar bons títulos. Sim, sou eu
o Homem dos Títulos. E fiquei bastante magoado com tantas momices
dirigidas às matérias sobre a Lontra, o fêmur
de João, a circulação linfática e tantos
outros assuntos de relevância Nacional, e, por que não?,
humana. Gostaria de saber para onde mando meu currículo.
:: PACHORRENTOS E SENSATOS ::
Thoureau
Quando somos pachorrentos e sensatos, percebemos que somente as coisas
grandes e dignas têm qualquer existência absoluta e permanente;
que os prazeres inferiores são apenas uma aparência da
realidade.
:: A BUNCH OF MEXICANS ::
Tom Waits
I'd like to have some children. I'll probably adopt a bunch of Mexicans
and live out in Pico Rivera and watch a black and white TV set with
a T-shirt on and a beer in one hand and dogshit on the lawn.
:: NOVO ESTILO DE ASSALTAR BANCOS ::
da edição #017
Primeiro, pega-se um rolo de barbante, daqueles que se usa para embrulhar
presentes de aniversário. Em seguida, unta-se (com cuidado,
leitor, com cuidado) o barbante em uma massa cremosa de penas, xarope,
folhas e cola colorida, cuja receita está anexo. Após
esperar secar (esta etapa costuma ser danosa para os que colam o dedo
muito facilmente nos lugares), você pode encarar sua pequena
obra de arte: um fiapo camuflado. Contemple-a desinteressadamente.
O passo seguinte é encontrar um martelo, uma chave de fenda
e um fio de cabelo grisalho de um sujeito de 43 anos, juntar tudo
e levar ao fogo brando. Atenção: não deixe derreter
a massa pastosa, e use-a para acoplar (como uma grande plataforma
alada) ao fiapo camuflado que descrevemos anteriormente. A censura
não nos permitiu veicular a fotografia do componente final,
mas que fica bonito, ah se fica.
Para que a receita da Gosma Abstrata Contemporânea logre êxito
na hora de assaltar um banco, deve-se cuidar para que nada saia errado.
Primeiro, coloque o componente Ferro-Penas-Xarope-Barbante e o que
mais você quiser dentro de uma grande sacola, bem lá
no fundo, ocultada por um gato. É importante que se escolha
um daqueles gatos desbotados, cujo nome normalmente é "Gato",
para não despertar suspeitas.
Entrando no banco, a sacola deve apitar na máquina de sucção
de cérebros do banco, digo, na máquina que dispara ao
detectar metal. Simpaticamente, você tirará o pequeno
bichano de dentro do engradado e dirá algo como: "é
só o meu Gato, que fez um transplante de cócoras (pois
ele estava sem as dele) e teve que colocar pinos metálicos";
ao que provavelmente te deixarão seguir sem problemas. Se os
guardas desconfiarem e descobrirem o Composto Surreal, diga que é
um aparelho para fazer abdominais ou uma suqueira.
Se depois de todos esses contratempos você conseguir passar,
finalmente coloque o Engradado Esquisito e Disforme no topo da cabeça,
como um chapéu, perpassando o barbante camuflado pelas costas;
suba em cima de um dos cones das filas, comece a grasnar e dance.
Enquanto isso, seu comparsa (orientado pelo artigo seguinte desta
série especial) estará previamente disposto em "M"
no lustre de diamantes do banco e, quando você gritar: "lúpulo!",
milhares de nozes orientadas irão atingir os olhos dos atendentes,
quicarão no lustre e voltarão direto para os narizes
dos guardas, que esbarrarão nas câmeras do circuito interno
fazendo com que finalmente você possa saltar os corpos feridos,
cumprimentar o comparsa no lustre e recolher o saco de moedas que
você esqueceu anteontem no caixa.
:: O MENINO TEIMOSO ::
irmãos Grimm, 1874
Houve, uma vez, um menino muito teimoso, que nunca fazia o que mandava
a mãe. Então, Deus, descontente com ele, fê-lo
adoecer. Chamaram os médicos, mas nenhum conseguiu salvá-lo
e, dentro de poucos dias, o menino foi colocado no leito de morte.
Depois que o enterraram e cobriram a campa de terra, de repente surgiu
pra fora da campa um bracinho erguido para o alto. Tornaram a colocá-lo
debaixo da terra, cobrindo-o melhor, mas em vão; o bracinho
insistia em sair para fora. Então, a mãe teve de ir
à campa e com uma varinha bater no bracinho; só assim
o menino descansou em paz debaixo da terra.
:: DEFINIÇÃO ::
de um certo senhor chamado láudano
O melhor de São Paulo é o fato de que só se entedia
quem não tem imaginação.
:: ROLF, O CÃO QUE ACHA COISAS ::
da edição #019
Antes de começar, deixemos uma coisa bem clara: após
discussões longuíssimas e intervenções
pouco democráticas, resolvemos contar esta história
do meu jeito, e tire este plural de Majestade daqui, pombas. A redatora
que cá escreve jura que Rolf é o cão que acha
coisas, bastante opinativo e comentarista dos assuntos de relevância
nacional – o resto do mundo, desprezivelmente bobo, sustenta
que Rolf só executa o trabalho de Longuinho (o Santo), a achar
pedaços de grampo, meias, chaves perdidas, crianças
com medo. O que, convenhamos, não teria a menor graça.
Findo este aparte, vamos às considerações gerais.
Rolf foi encontrado esta manhã nos arredores de um bar decadente
na zona leste, esparramado na sarjeta a conversar com Silas (o velho
bêbado) e a intelectual Luft, a minhoca que faz contas. Rolf
havia sido demitido do emprego em uma repartição pública
por não realizar o trabalho a que fora designado – obviamente,
o de achar coisas. Pois os funcionários, a secretária
e o chefe pediam para o cão encontrar chaves do carro, pacotes
de folha sulfite, documentos protocolados, barras de ouro e assim
por diante, mas Rolf apenas se sentava na mesinha, ajeitava os óculos
e postulava: "creio que estes pequenos incidentes são
apenas reflexos de uma política leviana adotada por esta lamentável
empresa, a encorajar furtos insignificantes no aparato administrativo
do Governo, e, conseqüentemente, roubos cada vez maiores e mais
bem planejados. Acredito que seja preciso desenvolver, com bastante
urgência, uma cultura corp..." – e a secretária
Motors (filha do General Motors, que lhe deu este emprego) saía
da sala meio nervosa, procurando o maço de sulfite sozinha.
Pois Rolf estava cansado de ser apenas um cão inglês,
daqueles que farejam crimes e prendem os suspeitos. Gostaria, sim,
de adquirir renome pela invejável truculência opinativa.
Luft, a minhoca que faz contas, acreditava que 40% dos cães
farejadores sofria deste mesmo drama, mas nenhum possuía o
dom celestial de Rolf: ele realmente achava coisas, tinha posições
ideológicas consistentes sobre questões éticas
e merecia ser ouvido. Seiscentos e quarenta e cinco dos 982 cães
entrevistados não sabia nem lamber as patas, quanto mais discutir
sobre política externa dos países árabes (Luft
era a melhor amiga de Rolf, e se achava 87% mais legal que as outras
minhocas).
Tudo isso aconteceu há uns 4 anos, antes de Rolf conhecer Pineápolis,
o Ouriço Que Deita e Rola, e efetuar contatos com setores progressistas
do governo (que conheciam Ápolis, sabe-se lá sob que
circunstâncias). Desde então, os ministros da justiça,
da agricultura e do desporto, reunidos em assembléia extraordinária,
contrataram o cérebro de “Rolf, O Que Acha Coisas”,
que aos poucos conseguiu o lugar de porta-voz da presidência.
Hoje o cãozinho é a mente que fica atrás do púlpito,
soprando discursos para os representantes do governo; também
redige as palestras que o presidente ministra durante suas viagens
imaginárias em que ele bota um chapéu de papel e sai
pelo jardim a gritar “FURÚNCULOS!”.
A secretária Motors, que ainda não localizou as folhas
de sulfite, continua procurando Rolf no meio da madrugada para pedir
que encontre seus óculos no escuro (eles são casados),
enquanto a verme calculista Luft adoece de desgosto todas as sextas-feiras,
pois o Rolf, além de inteligente, é um pedaço
de mau caminho – mas a coitada não consegue declarar
a paixão pelo companheiro, sem dizer que 96% das minhocas se
enamoram por seres de sua mesma espécie, sendo que..
:: FOIE GRAS PARA O REI ::
Emilio Fraia, no ápice de sua fase pato
tenho a impressão, qüén, de que tomamos o castelo,
qüén-qüén, que o bater panelas é nosso,
que a gente está mais dentro do que nunca, que aquele ali na
cozinha, de faca na mão, qüén, vai nos ajudar,
vai sim, que essas cebolas e tomates, qüén-qüén,
isso tudo, qüén, é o nosso plano dando certo.
:: OK ::
Shakespeare
Eu poderia viver preso numa casca de noz e me sentir rei de espaços
infinitos, se não fossem os maus sonhos que tenho.
:: DA PREGUIÇA ::
Quino
:: UM CIENTISTA QUE CATA PULGAS ::
da edição #028
Por que eu cataria pulgas?, você deve estar perguntando, e eu
nunca saberia responder. Só sei que me colocaram aqui nesta
estufa horrorosa, cercado de materiais químicos, tubos de ensaio,
conta-gotas, frascos de amônia, olhando fixamente para uma luz
de publicitário e me pediram: "ei, Norbert, pare de esfregar
o chão e venha aqui um instante." Sim, pois não,
desculpe, boa noite, deseja alguma coisa? Parece que precisavam de
um modelo pra colocar na capa da Reader’s Digest, então
eu achei bonito e fui posar de cientista catador de pulgas. Enquanto
isso, uma repórter chamada Jucemara, muito criativa e neurótica,
inventava um certo melodrama de um biólogo que estudava pulgas
e mosquitos da dengue, e acabou se tornando uma lamínula gigante
não se sabe como. Ela pediu um nome, e eu disse: Ernest Hemingway,
e até soletrei pra coitadinha, pois ela achou bastante charmoso
e colocou na reportagem. Sugeri também que ele não se
transformasse em lamínula, mas em uma estante para tubos de
ensaio - o que ela refutou prontamente, a dizer "ninguém
mexe! na lamínula ninguém mexe!". Começo
a achar que ela tem algo de pessoal e não resolvido com a dita
lâmina. Voltei a esfregar o chão.
:: TODAY'S FORTUNE ::
más notícias
If your desires are not extravagant they will be granted.
:: AMOR ::
André Comte-Sponville
A solidão é a regra. Ninguém pode viver em nosso
lugar, nem morrer em nosso lugar, nem sofrer ou amar em nosso lugar.
É o que chamo de solidão: nada mais é que outro
nome para o esforço de existir. Ninguém virá
carregar seu fardo. Se às vezes podemos nos ajudar mutuamente
(e é claro que podemos!), isso supõe o esforço
solitário de cada um e não poderia - salvo ilusões
- substituí-lo. Assim, a solidão não é
a rejeição do outro, ao contrário: aceitar o
outro é aceitá-lo como outro (e não como um apêndice,
um instrumento ou um objeto de si!), e é nisso que o amor,
em sua verdade, é solidão. Rilke encontrou as palavras
necessárias para dizer esse amor de que necessitamos, e de
somos tão raramente capazes: “Duas solidões que
se protegem, que se completam, que se limitam e que se inclinam uma
diante da outra...” Essa beleza soa verdadeira. O amor não
é o contrário da solidão: é a solidão
compartilhada, habitada, iluminada - e, às vezes, ensombrecida
- pela solidão do outro. O amor é solidão sempre;
não que toda solidão seja amante, longe disso, mas porque
todo amor é solitário. Ninguém pode amar em nosso
lugar, nem em nós, nem como nós. Esse deserto, em torno
de si ou do objeto amado, é o próprio amor.
:: DUAS VELAS VERDES ::
Cortázar
...e aquilo a que chamávamos o nosso amor era talvez eu estar
de pé diante de você, com uma flor amarela na mão
e você com duas velas verdes, enquanto o tempo soprava contra
os nossos rostos uma lenta chuva de renúncias e de despedidas
e passagens de metrô.