A Hortaliça

www.hortifruti.org

Diga a verdade e corra.
Edição #051, de 16 de setembro de 2004.
Como consegue dormir de bruços com esse botões tão grandes?
(...e de novo tornei a perder a noção das coisas)

hortalica@gmail.com
Edição especial Reader's Digest

 

"Costumava ficar chateado, agora acho só engraçado"
(Garfield)

 

EDITORIAL
Tudo me lembra você, exceto você
 

"Como irritar um mosquito", "Consiga o que quer sem resmungar", "A lua nos deixa loucos?", "O Extraordinário Ovelheiro Escocês" e "Eu sou o intestino delgado de João" são alguns dos extraordinários títulos de matérias da Seleções do Reader's Digest, revista que desce macio e confere maior bobice à nossa imprensa aborrecida.

Durante os quase três anos de existência deste legumináceo jornalzinho, publicamos versões de nossos redatores para manchetes tão instigantes. [Para títulos reais, matérias ridículas.] Como a preguiça ainda corrói nossa existência desde o incidente com o pombo laranja relatado na edição #12, apresentamos no presente número uma coletânea dos piores textos sobre o assunto, organizados em ordem aleatória e inspirados pelas reportagens emocionantes da indigesta Reader's Digest.

no mais, cubram-se de caramelo
(e não leiam tudo de uma vez. faz mal)


:: EU SOU O ESÔFAGO DE JOÃO ::
da edição #007

...Domingo à tarde, salada de agrião de almoço e nada na tevê, aquele aroma de azeite barato grudado às paredes, por Deus. Uma senhora gorda com cara de enzima de nome Gertrude entrou sem bater e começou a esfregar minhas partes íntimas com Pato Purific, pra ver se tirava o óleo. Apenas um dia pachorrento sem grandes problemas digestórios, repleto de tédio e imprecação me aguardava, quando o vi. Sim, um cuscuz farelento cercado de sucos esquisitos e mucos da pior espécie, o Bolo Alimentar mais charmoso que eu havia encontrado. Ele chacoalhava com graciosidade, escorando-se delicadamente nas minhas paredes estriadas e lançando olhares sensuais toda vez que dançava, a movimentar os lindos pezinhos de pelica. Oh, nunca vou me me esquecer daqueles loucos instantes em que me apaixonei pelo Cuscuz Castanho e senti a vida transbordando em meus poros, radiando emoções intensas, revelando sentimentos profundos, ah, foi deveras efêmero! Em instantes eles chegaram e levaram o Fofo Cuscuz de mim, os porcos arrogantes oleosos movimentos peristálticos, ainda cuspiram pra trás e deram risada. Foi então que meu adorado bolo alimentar revelou sua face mesquinha e entregou-se lascivamente ao estômago, sem ao menos jogar um pedaço de azeitona como prova do seu amor. Ó cruel, sádico destino, por que renegaste tua cria mais dileta?! ....

(continua na pestilenta edição de março de 1972, quando o Esôfago de João se encontra com a Tíbia de Maria e ambos saem para tomar um capuccino no Frans Café da Vila Madalena. Realmente instrutiva, esta série de matérias).


:: MARIANA ::
um pouco de Rubem Braga para neutralizar as coisas

Mariana, eu acho impossível uma pessoa viver sem você. E ela ri e agradece -- pois já estamos na idade de poder dizer e ouvir, sem ilusões, as mais simples, e belas, e graves tolices.


:: NO MUNDO MÁGICO DOS MÓBILES (CATARINA) ::
da edição #009

Um gato gordamente laranja boiava junto ao teto, e Catarina não conseguia alcançá-lo. Os dedos, rechonchudos, tentavam ao menos tocá-lo, sentir suas escamas plásticas, o focinho gelado, o carimbo da Glasslite, mas estava tão longe. Junto ao bichano laranja, outras formas diversas ululavam ao sabor do vento: um queijo de pelúcia, três ou quatro quadrados azuis, uma bailarina de cristal, alguns guizos que não a deixavam dormir.

Tio Otterson dispôs os móbiles metodicamente a uma distância padrão xis, considerando a velocidade da brisa e a disposição dos espelhos do quarto. Otterson seguia rigorosamente os preceitos do Feng Shui. Nunca sapateou pois considerava ofensivo o ato de firmar os pés em ângulos tortos, às vezes voltados de frente um para o outro, desafiando todas as leis da prudência planetária. Mas voltemos ao adorável bebê Catarina, que tentava alcançar o móbile laranja como tentava chupar o dedão dos pés ou morder o próprio rabo.

Naquela tarde, depois que Tio Otterson colocou a bailarina ao lado do grande móbile quadrado (por causa dos maus fluidos vindos do armário de mogno), muita coisa aconteceu sobre o berço. O quadrado menor chocou-se com um dos guizos e começaram a discutir loucamente, até que a bailarina deu um chute certeiro na bolinha de cobre, o sistema balançou perigosamente e bloft!, o pequeno quadrado espatifou-se no chão, acordando a lânguida Catarina.

Ela olhou feio para os lados e tentou novamente alcançar o gato laranja, lá no alto, soltando gritinhos nenêuticos, mas seus dedos só encontraram a bailarina insolente e um enorme pêlo – que estava passando por ali e ainda não tinha entrado na história. Catarina deu uma risada engraçada e soltou o maldito fiapo, que poderia ser um pedaço de pena, um naco de tecido ou apenas um pêlo voador desocupado, como os outros tantos que flutuam por esse mundo afora. O pêlo continuou seu caminho (esperando posteriormente encontrar amigos e formar uma grande bola de felpo), o bebê gargalhava com histeria, a bailarina seguia seu caminho e o queijo de pelúcia não quis se manifestar sobre o assunto (desculpe).

Eis que Catarina, num esforço desesperado para alcançar o maldito Gato Gordo (antes que ele irritasse os leitores), perde o equilíbrio e cai do berço. Com outra gargalhada típica, leva o quadrado menor à boca e descobre que, apesar de pequeno, ele é grande o suficiente para obstruir suas vias respiratórias até a asfixia. Com o aspecto arroxeado da pele, o bebê Catarina ganha um espaçoso túnel de luz e – enfim – a companhia de um Grande e Roliço Gato Laranja, que tinha se entediado do ula-ula dos móbiles, fez uma trouxa de comida enlatada e resolveu passar desta para melhor.

E depois dizem que a disposição das coisas não tem nada a ver.


:: MINHA MÃE CAIU NA ESTRADA ::
Ronaldo Bressane, uma espécie de Erroll Flynn em technicolor

Minha mãe caiu na estrada
Foi morar na cidade de Kerouac Lowell Massachusetts USA
Dali Kerouac fugiu mas voltou para buscar sua mãe e só aí morrer
Ali minha mãe acorda todo dia cedo
Esquece as dores nos joelhos esquece que nunca viu o seu neto e vai alegre fritar batatas na Wendy’s
Enquanto pensa que tem um emprego
enquanto pensa que se existe Jesus não é o mesmo de Kerouac e Bush
suas batatas reluzem no óleo
estáticas clandestinas órfãs queimam.


:: COMO TOMAR UMA CASQUINHA DE SORVETE ::
da edição #008

Primeiro, desdobre a presente bula. Se você está lendo isto aqui é porque já passou dessa fase, portanto é dispensável descrever o modo correto de desdobrar o papel de instruções, mesmo porque seria preciso outro desses papéis de instruções para esmiuçar o procedimento, papel que logicamente estaria dobrado – e para desdobrá-lo seria preciso outro, enfim, a loucura acabaria por tender ao infinito e não é disso que estamos falando. Pois bem. A primeira providência (após desdobrar o papel, como já alertamos) é analisar a forma geométrica do sorvete mencionado. Se cônica, você terá tempo de ler as instruções antes de pô-las em prática, visto que a massa cremosa não derreterá tão rápido. Se cômica, esqueça as instruções e lamba sem pestanejar o maldito líquido, por todos os lados. Por cômica entende-se a forma que se assemelha a um aspargo corcunda com dores no fígado, a um retângulo devastado por vespas africanas ou (para ficar bem claro) a uma massa carcomida e pestilenta de algum corpo sebáceo não identificado, extraído de uma orelha ou de outra parte do corpo também não identificada.

Voltando à opção Um, analise a forma e consistência do sorvete e pegue papel e caneta. É a hora de rascunhar a estratégia, desenhando triângulos azuis para os ataques pela retaguarda, círculos concêntricos para as investidas com o dente e bolinhas tímidas para as tentativas frustradas que envolvam nariz e testa. Atenção! Resista à tentação maligna de morder a ponta da casquinha, abaixo de onde se segura o cone de biju. Do contrário, o inevitável acontecerá: os anjos decerão com trombetas, o caos se apossará do universo e a massa cremosa de pistache tombará como um gordinho no tobogã, resultando numa previsível e justificada chacota do vendedor de tutsi frutsi.

Para decidir se urge abordar a massa de sorvete pelos cantos ou pelo topo, faz-se necessário utilizar a fórmula da aerodinâmica e resistência do ar, que consiste em multiplicar o cubo da potência indefinida à hipotenusa da variável "Xis", tal que X seja menor ou igual a....


:: SENSACIONAL ::
notícias d'além-mar

http://gonline.uol.com.br/livre/gnews/html/gnews1641.shtml

gostei do "fomentar o respeito do cidadão à liberdade de indumentária". Nesses termos, teríamos a permissão legal de passear pelo metrô Santana vestidos de pato / com asas de papelão e sapatos do irmão mais velho. Não que isso já tenha acontecido.


:: POEMA ::
do Alexandre Barbosa, que nunca é o Alexandre Barbosa que estamos procurando

Me assusta
Como ando entre os espinhos
Com dedicação.

Agora vejo
Que visto há dois dias
A camisa que você abraçou.

Parece que quero
Entrar no mar e não sair,
Mas isto é um desejo todo seu.


:: CORVOS, QUASE GENTE! ::
da edição #011

Querido Damião,

Ontem preenchi os papéis do crediário. Em breve terei um par de lindas luvas de pelica, para vestir minhas patas e poder enfim saracotear em superfícies ásperas, o que considero uma evolução glorificável de nossa espécie sofrida. Mas creio que isso não venha te interessar, ó amigo de longa data. Escrevo para pedir-lhe que sintonize, neste instante, seu aparelho televisor no canal 82, e ajuste a antena com muito esmero. Vês as imagens da passeata? Pois aquele, de negro, ali atrás, bicando o queixo do presidente, sou eu. Sim, meu bom amigo, e pensar que nós dividimos a merenda em ’77. Se prestar bastante atenção, poderá conferir aquele senhor grisalho tentando se livrar de minha pessoa passarácea, e um grupo de seguranças se retorcendo no chão, sofrendo com titica no olho. Pois fiz duas investidas agudas no queixo de Vossa Excelência, depois parti para bicadas na nuca; logo em seguida golpeei as orelhas e face esquerda do rosto com vigorosas batidas de asa, que provocaram os hematomas arroxeados com leve aroma de benjoim que você pode ver no vídeo. Em seguida, quando um popular (o de amarelo, com cara de tamanduá) quis prestar socorro à autoridade, apenas cravei uma de minhas patas na narina do cidadão e ele veio ao chão, para alegria dos demais transeuntes que se divertiam a valer com a cena. Ao som de "enforca ele! enforca ele!", tentei circundar o pescoço do Homem com minhas penas terroristas, mas ele valeu-se de uma técnica chinesa e chutou-me a barriga, golpe que ocasionou uma dormência terrível em meus carcomidos órgãos internos. Veja que até o câmera está gargalhando com a cena, e o senhor de azul marinho se aproximando do meu corpo momentaneamente inerte é o dono de uma emissora de TV, propondo-me um contrato como apresentador de reality show.

Depois de olhar com desdém ao moço de terno e cuspir uma substância venenosa em sua direção, voltei a atacar o presidente com toda minha virulência corvídea até que os helicópteros da S.W.A.T. chegaram e tive que me retirar, com um sorriso de canto. Ainda lancei perdigotos à multidão e fui ovacionado pelas meninas mais novas. Do hospital, a Autoridade falou em Rede Nacional que iria aumentar os benefícios de nossa classe corval, e lamenta muito o sofrimento que nos fez passar nestes dois mil anos de administração humana. Ele ainda respira com a ajuda de aparelhos, mas em breve irá renunciar da Presidência da República e espero ser convidado para integrar o Triunvirato Governamental, com a ajuda de uma amiga gralha e um distinto representante da minoria urubu, todos devidamente limpinhos e eloqüentes perante as câmeras.

Deseje-me sorte. E não se esqueça de dar comida ao humano enquanto eu estiver fora.


Mui penosamente,
Parvo, o Corvo.

:: CARTAS ::
Rilke

Se o próximo lhe parece longe, os seus longes alcançam as estrelas, são imensos.

:: WEST COUNTRY GIRL ::
Nick Cave

Well, who could ask much more than that?
A West country girl with a big fat cat
That looks into her eyes of green
And meows, "He loves you", then meows again

:: O MILAGRE DAS JARDINEIRAS FLORIDAS ::
da edição #32

Há muito tempo, numa pradaria distante, um irlandês de sobrancelhas ruivas cultivava sua jardineira.

Dividia o ínfimo espaço de terra em camadas coloridas, a saber: margaridas, rosas, crisântemos e tartarugas (ignore), sem contar o espaço do girassol, que nascia sorridente na outra ponta. O irlandês não entendia bolhufas de botânica e, portanto, não sabia que tudo aquilo era impossível. Assim, continuou cultivando as miúdas daquele jeito mesmo.

Certo dia, os vizinhos bateram-lhe à porta. A crise econômica tinha chegado à Irlanda (mesmo isto aqui sendo uma fábula e as complicações financeiras não atingirem tais mundos). Todos estavam famintos e só ele possuía uma faixa de terra para cultivar guloseimas. Polidamente, pediram que o irlandês arrancasse as flores do local e desse espaço a uma horta comunitária, provavelmente de batatas-doces.

Pois o ruivo olhou furtivamente para seus botões e teve medo que as flores se magoassem com o que haviam acabado de ouvir. Expulsou os cidadãos do recinto e amaldiçoou seus antepassados, animais de estimação e cômodas de cerejeira. Pôs-se a olhar para as queridas plantinhas, com a barriga vazia e o coração saltitante, dizendo-lhes palavras doces e entoando canções antigas para que fossem dormir em paz.

Então, no dia seguinte, nasceram ali mesmo dezenas de suculentas batatas.

O irlandês colheu-as e colocou-as numa grande cesta, para oferecer aos vizinhos e fazer as pazes. Sobe BG. Nesse mesmo instante, contudo, veio a impiedosa neve, prendeu sua patinha e matou os crisântemos. Sem pernas mas ainda vivo, apanhou a cesta de batatas - onde, curiosamente, só havia begônias.

Então o irlandês (que não conhecia a oração da Formiguinha) morreu de desgosto e de frio ali mesmo, para desespero do editor da revista, que terá que encontrar uma moral para esta história.


:: IMORTALIDADE ::
Susan Hertz

Milhões de pessoas que gostariam de ganhar a imortalidade não sabem o que fazer consigo mesmas em uma tarde chuvosa de domingo.


:: SEXTA CARTA ::
Rilke

Roma, 23 de dezembro de 1903

Não quero que fique sem uma saudação minha pelo Natal, quando, no meio da festa, carregar a sua solidão mais dificilmente do que nunca. Mas se verificar, nesse momento, que a sua solidão é grande, alegre-se com isto. Que seria, com efeito, uma solidão (faça esta pergunta a si mesmo) que não tivesse grandeza? Há uma solidão só: é grande e difícil de se carregar.


:: BELLO SER CRONOPIO ::
Roque Dalton

Es bello ser Cronopio,
aunque cause muchos dolores de cabeza.
Y es que el dolor de cabeza de los Cronopios
se supone histórico, es decir
que no cede ante las tabletas de analgésicos,
sino sólo ante la realización del Paraíso en la Tierra.
Así es la cosa.
En la sociedad Fama nos duele la cabeza.
Y nos arrancan la cabeza.
En la lucha por el Paraíso, la cabeza es una bomba de retardo.
En las sociedades supuestamente cronopianas se planificaba el dolor de cabeza,
lo cual no lo hacía escasear, sino todo lo contrario.
Una verdadera sociedad cronopiana será, si es que es algún día,
-entre otras cosas-
una aspirina del tamaño del sol.

:: PAUSA PARA INFORME EXTRAORDINÁRIO ::
da edição #015

Caríssimos,

Meu nome é Silas, tenho 32 anos, 1,78m de altura, 68 quilos, olhos castanhos, testa estreita, sou católico, sensível e a favor da democracia, contanto que deixem meu pufe em paz. Recebi a Hortaliça em uma manhã de abril e fiquei estupefato com uma das seções que vocês teimam em manter. Sou redator-júnior da conceituada Seleções do Reader’s Digest há mais de 40 anos, o que faz minha mãe perguntar quando é que me tornarei redator de fato, ou quando irei jogar fora a faixa branca e passar direto pra redator-sênior. Minhas atribuições na revista são, respectivamente: trocar as lâmpadas, polir janelas, inventar trocadilhos idiotas, tossir, declamar poemas e elaborar bons títulos. Sim, sou eu o Homem dos Títulos. E fiquei bastante magoado com tantas momices dirigidas às matérias sobre a Lontra, o fêmur de João, a circulação linfática e tantos outros assuntos de relevância Nacional, e, por que não?, humana. Gostaria de saber para onde mando meu currículo.


:: PACHORRENTOS E SENSATOS ::
Thoureau

Quando somos pachorrentos e sensatos, percebemos que somente as coisas grandes e dignas têm qualquer existência absoluta e permanente; que os prazeres inferiores são apenas uma aparência da realidade.


:: A BUNCH OF MEXICANS ::
Tom Waits

I'd like to have some children. I'll probably adopt a bunch of Mexicans and live out in Pico Rivera and watch a black and white TV set with a T-shirt on and a beer in one hand and dogshit on the lawn.


:: NOVO ESTILO DE ASSALTAR BANCOS ::
da edição #017

Primeiro, pega-se um rolo de barbante, daqueles que se usa para embrulhar presentes de aniversário. Em seguida, unta-se (com cuidado, leitor, com cuidado) o barbante em uma massa cremosa de penas, xarope, folhas e cola colorida, cuja receita está anexo. Após esperar secar (esta etapa costuma ser danosa para os que colam o dedo muito facilmente nos lugares), você pode encarar sua pequena obra de arte: um fiapo camuflado. Contemple-a desinteressadamente.

O passo seguinte é encontrar um martelo, uma chave de fenda e um fio de cabelo grisalho de um sujeito de 43 anos, juntar tudo e levar ao fogo brando. Atenção: não deixe derreter a massa pastosa, e use-a para acoplar (como uma grande plataforma alada) ao fiapo camuflado que descrevemos anteriormente. A censura não nos permitiu veicular a fotografia do componente final, mas que fica bonito, ah se fica.

Para que a receita da Gosma Abstrata Contemporânea logre êxito na hora de assaltar um banco, deve-se cuidar para que nada saia errado. Primeiro, coloque o componente Ferro-Penas-Xarope-Barbante e o que mais você quiser dentro de uma grande sacola, bem lá no fundo, ocultada por um gato. É importante que se escolha um daqueles gatos desbotados, cujo nome normalmente é "Gato", para não despertar suspeitas.

Entrando no banco, a sacola deve apitar na máquina de sucção de cérebros do banco, digo, na máquina que dispara ao detectar metal. Simpaticamente, você tirará o pequeno bichano de dentro do engradado e dirá algo como: "é só o meu Gato, que fez um transplante de cócoras (pois ele estava sem as dele) e teve que colocar pinos metálicos"; ao que provavelmente te deixarão seguir sem problemas. Se os guardas desconfiarem e descobrirem o Composto Surreal, diga que é um aparelho para fazer abdominais ou uma suqueira.

Se depois de todos esses contratempos você conseguir passar, finalmente coloque o Engradado Esquisito e Disforme no topo da cabeça, como um chapéu, perpassando o barbante camuflado pelas costas; suba em cima de um dos cones das filas, comece a grasnar e dance. Enquanto isso, seu comparsa (orientado pelo artigo seguinte desta série especial) estará previamente disposto em "M" no lustre de diamantes do banco e, quando você gritar: "lúpulo!", milhares de nozes orientadas irão atingir os olhos dos atendentes, quicarão no lustre e voltarão direto para os narizes dos guardas, que esbarrarão nas câmeras do circuito interno

fazendo com que finalmente você possa saltar os corpos feridos, cumprimentar o comparsa no lustre e recolher o saco de moedas que você esqueceu anteontem no caixa.

:: O MENINO TEIMOSO ::
irmãos Grimm, 1874

Houve, uma vez, um menino muito teimoso, que nunca fazia o que mandava a mãe. Então, Deus, descontente com ele, fê-lo adoecer. Chamaram os médicos, mas nenhum conseguiu salvá-lo e, dentro de poucos dias, o menino foi colocado no leito de morte. Depois que o enterraram e cobriram a campa de terra, de repente surgiu pra fora da campa um bracinho erguido para o alto. Tornaram a colocá-lo debaixo da terra, cobrindo-o melhor, mas em vão; o bracinho insistia em sair para fora. Então, a mãe teve de ir à campa e com uma varinha bater no bracinho; só assim o menino descansou em paz debaixo da terra.


:: DEFINIÇÃO ::
de um certo senhor chamado láudano

O melhor de São Paulo é o fato de que só se entedia quem não tem imaginação.


:: ROLF, O CÃO QUE ACHA COISAS ::
da edição #019

Antes de começar, deixemos uma coisa bem clara: após discussões longuíssimas e intervenções pouco democráticas, resolvemos contar esta história do meu jeito, e tire este plural de Majestade daqui, pombas. A redatora que cá escreve jura que Rolf é o cão que acha coisas, bastante opinativo e comentarista dos assuntos de relevância nacional – o resto do mundo, desprezivelmente bobo, sustenta que Rolf só executa o trabalho de Longuinho (o Santo), a achar pedaços de grampo, meias, chaves perdidas, crianças com medo. O que, convenhamos, não teria a menor graça. Findo este aparte, vamos às considerações gerais.

Rolf foi encontrado esta manhã nos arredores de um bar decadente na zona leste, esparramado na sarjeta a conversar com Silas (o velho bêbado) e a intelectual Luft, a minhoca que faz contas. Rolf havia sido demitido do emprego em uma repartição pública por não realizar o trabalho a que fora designado – obviamente, o de achar coisas. Pois os funcionários, a secretária e o chefe pediam para o cão encontrar chaves do carro, pacotes de folha sulfite, documentos protocolados, barras de ouro e assim por diante, mas Rolf apenas se sentava na mesinha, ajeitava os óculos e postulava: "creio que estes pequenos incidentes são apenas reflexos de uma política leviana adotada por esta lamentável empresa, a encorajar furtos insignificantes no aparato administrativo do Governo, e, conseqüentemente, roubos cada vez maiores e mais bem planejados. Acredito que seja preciso desenvolver, com bastante urgência, uma cultura corp..." – e a secretária Motors (filha do General Motors, que lhe deu este emprego) saía da sala meio nervosa, procurando o maço de sulfite sozinha.

Pois Rolf estava cansado de ser apenas um cão inglês, daqueles que farejam crimes e prendem os suspeitos. Gostaria, sim, de adquirir renome pela invejável truculência opinativa. Luft, a minhoca que faz contas, acreditava que 40% dos cães farejadores sofria deste mesmo drama, mas nenhum possuía o dom celestial de Rolf: ele realmente achava coisas, tinha posições ideológicas consistentes sobre questões éticas e merecia ser ouvido. Seiscentos e quarenta e cinco dos 982 cães entrevistados não sabia nem lamber as patas, quanto mais discutir sobre política externa dos países árabes (Luft era a melhor amiga de Rolf, e se achava 87% mais legal que as outras minhocas).

Tudo isso aconteceu há uns 4 anos, antes de Rolf conhecer Pineápolis, o Ouriço Que Deita e Rola, e efetuar contatos com setores progressistas do governo (que conheciam Ápolis, sabe-se lá sob que circunstâncias). Desde então, os ministros da justiça, da agricultura e do desporto, reunidos em assembléia extraordinária, contrataram o cérebro de “Rolf, O Que Acha Coisas”, que aos poucos conseguiu o lugar de porta-voz da presidência. Hoje o cãozinho é a mente que fica atrás do púlpito, soprando discursos para os representantes do governo; também redige as palestras que o presidente ministra durante suas viagens imaginárias em que ele bota um chapéu de papel e sai pelo jardim a gritar “FURÚNCULOS!”.

A secretária Motors, que ainda não localizou as folhas de sulfite, continua procurando Rolf no meio da madrugada para pedir que encontre seus óculos no escuro (eles são casados), enquanto a verme calculista Luft adoece de desgosto todas as sextas-feiras, pois o Rolf, além de inteligente, é um pedaço de mau caminho – mas a coitada não consegue declarar a paixão pelo companheiro, sem dizer que 96% das minhocas se enamoram por seres de sua mesma espécie, sendo que..


:: FOIE GRAS PARA O REI ::
Emilio Fraia, no ápice de sua fase pato

tenho a impressão, qüén, de que tomamos o castelo, qüén-qüén, que o bater panelas é nosso, que a gente está mais dentro do que nunca, que aquele ali na cozinha, de faca na mão, qüén, vai nos ajudar, vai sim, que essas cebolas e tomates, qüén-qüén, isso tudo, qüén, é o nosso plano dando certo.


:: OK ::
Shakespeare

Eu poderia viver preso numa casca de noz e me sentir rei de espaços infinitos, se não fossem os maus sonhos que tenho.


:: DA PREGUIÇA ::
Quino



:: UM CIENTISTA QUE CATA PULGAS ::
da edição #028

Por que eu cataria pulgas?, você deve estar perguntando, e eu nunca saberia responder. Só sei que me colocaram aqui nesta estufa horrorosa, cercado de materiais químicos, tubos de ensaio, conta-gotas, frascos de amônia, olhando fixamente para uma luz de publicitário e me pediram: "ei, Norbert, pare de esfregar o chão e venha aqui um instante." Sim, pois não, desculpe, boa noite, deseja alguma coisa? Parece que precisavam de um modelo pra colocar na capa da Reader’s Digest, então eu achei bonito e fui posar de cientista catador de pulgas. Enquanto isso, uma repórter chamada Jucemara, muito criativa e neurótica, inventava um certo melodrama de um biólogo que estudava pulgas e mosquitos da dengue, e acabou se tornando uma lamínula gigante não se sabe como. Ela pediu um nome, e eu disse: Ernest Hemingway, e até soletrei pra coitadinha, pois ela achou bastante charmoso e colocou na reportagem. Sugeri também que ele não se transformasse em lamínula, mas em uma estante para tubos de ensaio - o que ela refutou prontamente, a dizer "ninguém mexe! na lamínula ninguém mexe!". Começo a achar que ela tem algo de pessoal e não resolvido com a dita lâmina. Voltei a esfregar o chão.


:: TODAY'S FORTUNE ::
más notícias

If your desires are not extravagant they will be granted.


:: AMOR ::
André Comte-Sponville

A solidão é a regra. Ninguém pode viver em nosso lugar, nem morrer em nosso lugar, nem sofrer ou amar em nosso lugar. É o que chamo de solidão: nada mais é que outro nome para o esforço de existir. Ninguém virá carregar seu fardo. Se às vezes podemos nos ajudar mutuamente (e é claro que podemos!), isso supõe o esforço solitário de cada um e não poderia - salvo ilusões - substituí-lo. Assim, a solidão não é a rejeição do outro, ao contrário: aceitar o outro é aceitá-lo como outro (e não como um apêndice, um instrumento ou um objeto de si!), e é nisso que o amor, em sua verdade, é solidão. Rilke encontrou as palavras necessárias para dizer esse amor de que necessitamos, e de somos tão raramente capazes: “Duas solidões que se protegem, que se completam, que se limitam e que se inclinam uma diante da outra...” Essa beleza soa verdadeira. O amor não é o contrário da solidão: é a solidão compartilhada, habitada, iluminada - e, às vezes, ensombrecida - pela solidão do outro. O amor é solidão sempre; não que toda solidão seja amante, longe disso, mas porque todo amor é solitário. Ninguém pode amar em nosso lugar, nem em nós, nem como nós. Esse deserto, em torno de si ou do objeto amado, é o próprio amor.


:: DUAS VELAS VERDES ::
Cortázar

...e aquilo a que chamávamos o nosso amor era talvez eu estar de pé diante de você, com uma flor amarela na mão e você com duas velas verdes, enquanto o tempo soprava contra os nossos rostos uma lenta chuva de renúncias e de despedidas e passagens de metrô.


EXPEDIENTE


Este Zine é impessoal, objetivo e imparcial. Computadores meticulosamente programados preenchem generators, desenvolvem os textos, se emocionam, revisam e publicam a visão apolítica da coisa toda. O único responsável é a instituição "Da Redação".


... Para ser lido na maldita hora da noite em que tudo é engraçado -- logo após a hora em que nada faz sentido e antes daquela em que tudo faz sentido (Stephanie A.)

## Você está recebendo !!O Poste!! porque estava na lista de indivíduos manquitolas da lista negra dos Illuminati. Ou então, ou então! Você está recebendo o !Rododendro! porque foi um dos 139 mil nomes escolhidos entre todos os possíveis do mundo, sorteados em uma grande urna chinesa. Você e o To Fu, que ganhou o direito de trazer um tufo de nenúfares e furar a fila (snif). Caso não queira voltar a receber este monte de bobagens, mande um e-mail para vmbarbara@terra.com.br, e diga na linha de assunto: "sou uma pessoa triste". (Fnord keeps a spare eyebrow in his pocket.)

Em verdade, em verdade vos digo: Aquele que ri cuidado para que não babe.


God is coming.
Look busy.



2005 Vanessa Barbara