Dando continuidade a um ímpeto
indomável de bobice extrema e edições especiais
a respeito de qualquer coisa, apresentamos neste número uma
singular história sobre os oito anos do pequeno Bruno, intitulada
"Faraon". É o último texto desta edição.
Por conta disso, abstemo-nos de concluir a Hortaliça de hoje
e passaremos a respeitar o silêncio devido.
:: EPITÁFIO ::
Este túmulo encerra Ésquilo, filho de Eufórion,
ateniense. Morreu nas fecundas planuras de Gela. Os famosos bosques
de Maratona e o medo de longa cabeleira podem falar da glória
do seu valor, pois o puseram à prova.
:: NESTA VARANDA ALTA ::
Rubem Braga
..Nesta varanda alta, sobre os veículos e os transeuntes matinais,
tenho a vontade insensata de fazer um discurso.
:: "É O MEU" - O CELULAR E A COLONIZAÇÃO
TERRÍCOLA ::
Jubileu A. de Prata
O aparelho celular não é apenas um artefato do demônio,
como a televisão é a imagem da Besta. Não, meus
amigos, é muito mais que isso: trata-se de um rastreador do
governo/ETs/palhaços/Grandes Corporações para
manter cada indivíduo sob o domínio do desconhecido
e de suas demoníacas ringtones. Via satélite, eles controlam
onde o senhor 9227-0102 vai, o que ele fala, quanto tempo demora pra
digerir um rosbife e tudo o que está pensando, desde as coisas
mais ridículas como "humm, rosquinhas".
Em verdade, em verdade vos digo: é
questão de tempo para que todos os terrícolas (menos
eu, o Emilio, o Verissimo e a minha mãe) estejam sob domínio
"deles" - veja como os proprietários de celular já
se tornaram um exército de tapados, remexendo suas bolsas diante
de qualquer ruído, mesmo quando a gente imita som de telefone
com a boca. Diante do sinal do Hino do Palmeiras, ou da Nona Sinfonia,
todos os idiotas deste mundo sairão correndo para atender seus
respectivos telemóveis e receberão ordens de matarem
uns aos outros, a dentadas.
:: EM COMEMORAÇÃO À VOLTA DO GENTIL PAULO
::
Lawrence Sterne
As pessoas ociosas que deixam o país natal e vão para
o exterior o fazem por alguma razão ou razões que podem
originar-se de uma dessas causas gerais -
Enfermidade do corpo,
Imbecilidade de espírito, ou
Necessidade inevitável.
:: PARA QUE O GENTIL PAULO NÃO FIQUE IRRITADO ::
Stevenson
The rain is raining all around,
It falls on field and tree,
It rains on the umbrellas here,
And on the ships at sea.
:: OUTRO BOM VERSINHO ::
Roberto Piva
Mestre Murilo Mendes tua poesia são
os sapatos de abóboras que eu calço
nestes dias de verão.
(20 Poemas com brócoli, 1981)
:: FARAON ::
De Como Transcorreu a Infância do Pequeno Bruno e Dos Acontecimentos
Que Contribuíram Para A Formação Deste Espécime
Pitoresco Tal Como o Conhecemos Hoje
Bruno tinha oito anos e acreditava que a tia Zenaide vinha de Hercólubus.
Todos os dias, a professora entrava na sala de aula batendo a régua
na mesa; exigia que os alunos se levantassem e entoava “Palhaço,
que estais no céu/ santificado seja o Vosso nome”, mesmo
em se tratando de uma escola católica. Bruno anotava no caderno
que aquilo era muito estranho – a canção diária
para o palhaço.
Além disso, tia Zenaide tinha clara dificuldade em lidar com
objetos prosaicos, como giz colorido e tesoura de picotar. Apresentava
instabilidade de humor quando alguém ligava o aparelho retroprojetor,
seguida de siricutico generalizado e aplicação imediata
de prova oral, matéria do ano todo. Segundo as anotações
de Bruno, houve vezes em que ela pareceu nutrir um profundo medo de
grampeadores, especialmente nos meses de agosto e setembro, quando
voltavam das férias. Também usava roupas estranhas de
combinação sem propósito, como calças
floridas com bijuteria xadrez e saias-balão com chapéu
de abas largas. De vez em quando, fazia perguntas absolutamente inadequadas
à classe, como: “por que as pessoas mastigam?”.
Procurava, assim, aprender sobre os hábitos dos terrícolas,
e entender por que diabos não estão autorizados a comer
queijo com comprimidos e mordiscar pedaços de cal da parede,
atitude pela qual tia Zenaide fora reprimida pela diretoria no semestre
anterior.
Mensalmente, a serena professorinha aplicava criteriosos testes a
fim de eleger um aluno cuja abdução aconteceria ao final
do período, com vistas a completar uma espécie de herbário
lá deles. Por isso Bruno se esforçava para ir mal nas
provas, e por isso todos encaravam Amanda de maneira estranha –
a melhor da sala, sempre alegre e solícita, presa pelas orelhas
num museu intergaláctico.
Baseado em bibliografia específica, Bruno observava: "em
seu habitat natural, os nativos de Hercólubus usam cinturões
cheios de botões (não há registro de aliens pançudos),
botões vermelhos, azuis e amarelos que acendem e apagam como
um farol. Quando se vêem em perigo, apertam um botão-mãe
capaz de fazer voar uma colina e desintegrá-la no céu".
Levando isso em conta, é preciso tomar cuidado com o cinto
country da professora, pensava o menino, um toque na fivela e desaparecemos
numa nuvem de enxofre, plof.
Na hora do recreio, tia Zenaide fechava a porta da sala para corrigir
provas e entoar Faaaaaaaaaaa Rrrrrrrraaaaaaaaaa Ooooooooooonnnnn,
em segredo. A professora clicava no cinto e se comunicava com os parentes
longínquos através de mantras especialmente idiotas,
levitando ocasionalmente e encarando o umbigo de maneira interrogativa.
Ou pelo menos assim imaginava Bruno, que logo decidiu queimar o caderno
de anotações e tomar alguma providência.
Pois ele não sabia a quem contar o segredo. Pensou em escrever
à diretora: “irmã Alice, a tia Zenaide é
de Hercólubus e está usando nossa turma para experimentos
genéticos”, mas sei lá. Pensou em chamar a polícia,
ou usar uma estaca de madeira, ou tentar derretê-la imitando
o grito dos golfinhos em uma freqüência inaudível
para os humanos. Nunca se sabe. O fim do ano se aproximava e logo
a professora retornaria a Hercólubus na nave-tia, levando a
doce Amanda e uma caixa de grampeadores.
Por fim, Bruno decidiu contar aos colegas da classe. Na hora do recreio,
a segunda série B se reuniu no pátio para a cerimônia
do amigo secreto. Tia Zenaide organizava a brincadeira. Perguntou
quem queria começar, e Bruno levantou a mão. Revelaria
o segredo, mesmo em frente à professora, e em seguida lideraria
(imediatamente) uma rebelião dos humanos. Salvariam o planeta,
ele e seus colegas de oito anos, ele e a Amanda, que tinha sete mas
era muito esperta. Foi para a frente do pátio e respirou fundo.
“Preciso contar uma coisa... é difícil, mas vou
contar”, declarou, sem olhar para a professora. E disse: “minha
amiga secreta é a Amanda”.
Entregou o presente, abraçou um punhado de meninas e voltou
a se sentar. Tinha fracassado. Por culpa dele, a humanidade seria
colonizada por uma comitiva de aliens magrinhos. E Amanda passaria
a eternidade em um herbário, ao lado de Elvis e de uma borboleta
amarela. Covarde, muito covarde. No pátio, Amanda fazia um
discurso muito bem articulado e revelava quem era sua amiga secreta:
a própria tia Zenaide. O corinho do fundão gritava “puxa-saco,
puxa-saco”. A essa altura, Bruno remoía a derrota e nem
prestava atenção.
Pois a sala inteira agora olhava para Bruno. A professora sorria e
lhe estendia um presente. Coincidência ou não, era ele
o amigo secreto da criatura de Hercólubus. Imóvel, o
garoto não sabia o que dizer. Ficou vermelho, azul e amarelo,
enquanto a turma gritava tá namorando, tá namorando.
Finalmente, levantou-se e agradeceu o presente. Era um cinto. Um enorme
cinto de plástico da Glasslite, cheio de botões vermelhos,
azuis e amarelos, luzes e sons intergaláticos. Teve medo de
vesti-lo na frente dos colegas e apertar um dos botões pra
ver o que aconteceria.
Em pé, tia Zenaide o encarava com um olhar muito estranho.