A Hortaliça

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Véspera do dia em que de repente enlouquecerei
Edição #053, de 4 de dezembro de 2004.
O que é feito dos propósitos perdidos, e dos sonhos impossíveis?
hortalica@gmail.com
Edição especial menino-Bruno

 

"Pouco importa não saber se orientar numa cidade"
(Walter Benjamin, psicografado pelo Emilio)

 

ESCLARECIMENTO
 

Dando continuidade a um ímpeto indomável de bobice extrema e edições especiais a respeito de qualquer coisa, apresentamos neste número uma singular história sobre os oito anos do pequeno Bruno, intitulada "Faraon". É o último texto desta edição. Por conta disso, abstemo-nos de concluir a Hortaliça de hoje e passaremos a respeitar o silêncio devido.


:: EPITÁFIO ::

Este túmulo encerra Ésquilo, filho de Eufórion, ateniense. Morreu nas fecundas planuras de Gela. Os famosos bosques de Maratona e o medo de longa cabeleira podem falar da glória do seu valor, pois o puseram à prova.


:: NESTA VARANDA ALTA ::
Rubem Braga

..Nesta varanda alta, sobre os veículos e os transeuntes matinais, tenho a vontade insensata de fazer um discurso.


:: "É O MEU" - O CELULAR E A COLONIZAÇÃO TERRÍCOLA ::
Jubileu A. de Prata

O aparelho celular não é apenas um artefato do demônio, como a televisão é a imagem da Besta. Não, meus amigos, é muito mais que isso: trata-se de um rastreador do governo/ETs/palhaços/Grandes Corporações para manter cada indivíduo sob o domínio do desconhecido e de suas demoníacas ringtones. Via satélite, eles controlam onde o senhor 9227-0102 vai, o que ele fala, quanto tempo demora pra digerir um rosbife e tudo o que está pensando, desde as coisas mais ridículas como "humm, rosquinhas".

Em verdade, em verdade vos digo: é questão de tempo para que todos os terrícolas (menos eu, o Emilio, o Verissimo e a minha mãe) estejam sob domínio "deles" - veja como os proprietários de celular já se tornaram um exército de tapados, remexendo suas bolsas diante de qualquer ruído, mesmo quando a gente imita som de telefone com a boca. Diante do sinal do Hino do Palmeiras, ou da Nona Sinfonia, todos os idiotas deste mundo sairão correndo para atender seus respectivos telemóveis e receberão ordens de matarem uns aos outros, a dentadas.


:: EM COMEMORAÇÃO À VOLTA DO GENTIL PAULO ::
Lawrence Sterne

As pessoas ociosas que deixam o país natal e vão para o exterior o fazem por alguma razão ou razões que podem originar-se de uma dessas causas gerais -

Enfermidade do corpo,
Imbecilidade de espírito, ou
Necessidade inevitável.


:: PARA QUE O GENTIL PAULO NÃO FIQUE IRRITADO ::
Stevenson

The rain is raining all around,
It falls on field and tree,
It rains on the umbrellas here,
And on the ships at sea.


:: OUTRO BOM VERSINHO ::
Roberto Piva

Mestre Murilo Mendes tua poesia são
os sapatos de abóboras que eu calço
nestes dias de verão.

(20 Poemas com brócoli, 1981)


:: FARAON ::
De Como Transcorreu a Infância do Pequeno Bruno e Dos Acontecimentos Que Contribuíram Para A Formação Deste Espécime Pitoresco Tal Como o Conhecemos Hoje

Bruno tinha oito anos e acreditava que a tia Zenaide vinha de Hercólubus. Todos os dias, a professora entrava na sala de aula batendo a régua na mesa; exigia que os alunos se levantassem e entoava “Palhaço, que estais no céu/ santificado seja o Vosso nome”, mesmo em se tratando de uma escola católica. Bruno anotava no caderno que aquilo era muito estranho – a canção diária para o palhaço.

Além disso, tia Zenaide tinha clara dificuldade em lidar com objetos prosaicos, como giz colorido e tesoura de picotar. Apresentava instabilidade de humor quando alguém ligava o aparelho retroprojetor, seguida de siricutico generalizado e aplicação imediata de prova oral, matéria do ano todo. Segundo as anotações de Bruno, houve vezes em que ela pareceu nutrir um profundo medo de grampeadores, especialmente nos meses de agosto e setembro, quando voltavam das férias. Também usava roupas estranhas de combinação sem propósito, como calças floridas com bijuteria xadrez e saias-balão com chapéu de abas largas. De vez em quando, fazia perguntas absolutamente inadequadas à classe, como: “por que as pessoas mastigam?”. Procurava, assim, aprender sobre os hábitos dos terrícolas, e entender por que diabos não estão autorizados a comer queijo com comprimidos e mordiscar pedaços de cal da parede, atitude pela qual tia Zenaide fora reprimida pela diretoria no semestre anterior.

Mensalmente, a serena professorinha aplicava criteriosos testes a fim de eleger um aluno cuja abdução aconteceria ao final do período, com vistas a completar uma espécie de herbário lá deles. Por isso Bruno se esforçava para ir mal nas provas, e por isso todos encaravam Amanda de maneira estranha – a melhor da sala, sempre alegre e solícita, presa pelas orelhas num museu intergaláctico.

Baseado em bibliografia específica, Bruno observava: "em seu habitat natural, os nativos de Hercólubus usam cinturões cheios de botões (não há registro de aliens pançudos), botões vermelhos, azuis e amarelos que acendem e apagam como um farol. Quando se vêem em perigo, apertam um botão-mãe capaz de fazer voar uma colina e desintegrá-la no céu". Levando isso em conta, é preciso tomar cuidado com o cinto country da professora, pensava o menino, um toque na fivela e desaparecemos numa nuvem de enxofre, plof.

Na hora do recreio, tia Zenaide fechava a porta da sala para corrigir provas e entoar Faaaaaaaaaaa Rrrrrrrraaaaaaaaaa Ooooooooooonnnnn, em segredo. A professora clicava no cinto e se comunicava com os parentes longínquos através de mantras especialmente idiotas, levitando ocasionalmente e encarando o umbigo de maneira interrogativa. Ou pelo menos assim imaginava Bruno, que logo decidiu queimar o caderno de anotações e tomar alguma providência.

Pois ele não sabia a quem contar o segredo. Pensou em escrever à diretora: “irmã Alice, a tia Zenaide é de Hercólubus e está usando nossa turma para experimentos genéticos”, mas sei lá. Pensou em chamar a polícia, ou usar uma estaca de madeira, ou tentar derretê-la imitando o grito dos golfinhos em uma freqüência inaudível para os humanos. Nunca se sabe. O fim do ano se aproximava e logo a professora retornaria a Hercólubus na nave-tia, levando a doce Amanda e uma caixa de grampeadores.

Por fim, Bruno decidiu contar aos colegas da classe. Na hora do recreio, a segunda série B se reuniu no pátio para a cerimônia do amigo secreto. Tia Zenaide organizava a brincadeira. Perguntou quem queria começar, e Bruno levantou a mão. Revelaria o segredo, mesmo em frente à professora, e em seguida lideraria (imediatamente) uma rebelião dos humanos. Salvariam o planeta, ele e seus colegas de oito anos, ele e a Amanda, que tinha sete mas era muito esperta. Foi para a frente do pátio e respirou fundo. “Preciso contar uma coisa... é difícil, mas vou contar”, declarou, sem olhar para a professora. E disse: “minha amiga secreta é a Amanda”.

Entregou o presente, abraçou um punhado de meninas e voltou a se sentar. Tinha fracassado. Por culpa dele, a humanidade seria colonizada por uma comitiva de aliens magrinhos. E Amanda passaria a eternidade em um herbário, ao lado de Elvis e de uma borboleta amarela. Covarde, muito covarde. No pátio, Amanda fazia um discurso muito bem articulado e revelava quem era sua amiga secreta: a própria tia Zenaide. O corinho do fundão gritava “puxa-saco, puxa-saco”. A essa altura, Bruno remoía a derrota e nem prestava atenção.

Pois a sala inteira agora olhava para Bruno. A professora sorria e lhe estendia um presente. Coincidência ou não, era ele o amigo secreto da criatura de Hercólubus. Imóvel, o garoto não sabia o que dizer. Ficou vermelho, azul e amarelo, enquanto a turma gritava tá namorando, tá namorando. Finalmente, levantou-se e agradeceu o presente. Era um cinto. Um enorme cinto de plástico da Glasslite, cheio de botões vermelhos, azuis e amarelos, luzes e sons intergaláticos. Teve medo de vesti-lo na frente dos colegas e apertar um dos botões pra ver o que aconteceria.

Em pé, tia Zenaide o encarava com um olhar muito estranho.


God is coming.
Look busy.



2005 Vanessa Barbara