O conto de Natal desta edição
deve ser lido ao redor do fogo pelo patriarca da família, em
voz clara e serena. É mister que as crianças estejam
dispostas em círculo, com as pernas cruzadas, e escutem atentamente
esta bela fábula de compreensão humana. Pode-se imaginar
os personagens principais como Dickens o faria, inserindo por conta
própria um cão afaimado e mosquento para acompanhar
a protagonista (ou um porquinho de caráter dúbio). Os
adultos podem dormitar nas poltronas, contanto que não ronquem
em si bemol nem atrapalhem o decorrer da narrativa. Agradecemos ao
sr. André Deakens pela bonita idéia, perfeitamente consoante
com o espírito da época. Antes de nossa doce fábula,
avisos do patrocinador. Ao menino que "todos os anos
na véspera de Natal Esta é a história de um cara que bebia muita água. E de uma menina que, certa vez, engoliu um tijolo. A lenda começa onde termina Lençóis Paulista, entre tuias e eucaliptos, numa cidadezinha em declive onde moram ovinos, caprinos, suínos, bubalinos, asininos e muares, sem contar a diminuta Cecília, de 11 anos. Desde pequena, a garota cultivava o sonho de cometer um crime bem hediondo (tipo cuspir no Papa) e ser presa na cadeia local. Como todos sabem, ser preso na cidade de Pederneiras é melhor que ganhar uma bolsa de literatura e passar dois anos num hotel-fazenda escrevendo sobre os mares do Sul. Na cadeia de Pederneiras, as celas têm luminárias coloridas e bibelôs de elefantinho. A decoração interna é assinada por Lawrence Llewellen-Bowen e conta com pufes gigantes, paredes estofadas e aquecimento central. Lá, os ovos mexidos têm sabor de hortelã, as crianças podem passar a mão nos patos e nos porquinhos, há uma variedade de oito sucos e vitaminas, presuntos e pães de mel, e nos fins de semana você pode encomendar um beirute por conta da casa. No entanto, segundo as famílias de boa índole, os bailes mensais organizados pelo pessoal da Detenção sempre acabam mal, já que arruaceiros insistem em cometer infrações das mais variadas para poder ingressar na prisão. Felizmente o processo de seleção é rigoroso, e a maioria logo desiste. Mas Cecília estava obstinada a concretizar seu sonho de Natal. Como lhe parecia difícil cuspir no Papa ou esmurrar um porquinho, resolveu fugir de casa e fazer algo muito mau. Algo tão perverso que viraria lenda na cidade; um crime tão malvado que acabaria perdendo o sentido e se tornaria... idiota. Quem sabe ela ganharia perpétua. No alvorecer do dia 15 de dezembro, saiu pela porta dos fundos levando apenas um par de sandálias. Três noites tinham se passado quando Cecília enfim retornou à casa, trazida pelo delegado local. Após tomar uns tapas na testa, foi para o quarto sem pronunciar uma palavra. Outros três dias se passaram e Cecília nada dizia. Segundo o barbeiro e o serviço de informação das pedicuras locais, ela havia sido encontrada de barriga pra cima nas proximidades de casa. Não dava explicações e tinha um ar circunspecto, embora dissimulasse um sorriso de canto. Os parentes diziam que ela estava pesada, extremamente pesada. Cecília tinha engolido um tijolo. Pouco podemos especular aqui sobre as razões que levariam uma garota de onze anos a engolir um tijolo, na tentativa de reservar para si a cela número dezessete da penitenciária local. Sabe-se apenas que ela foi condenada a quinze dias de prisão logo que saiu o raio-X. Era um tijolo maciço de 12,5x25cm. O juiz considerou suficientemente imbecil o esforço da pequena, que teria (sei lá) lido um artigo do código penal de Iowa sobre a tentativa de suicídio por ingestão de tijolos ou alguma outra lei marcial a respeito de argamassa e porquinhos. Não se sabe. Embora ninguém conseguisse adivinhar o que teria movido a garota a cometer tamanha estultice, Cecília conseguiu o que queria (pelo menos durante as festas de fim de ano); foi algemada. Na delegacia, o guarda entregou-lhe o controle remoto e as chaves da cela. É certo que os preparativos para o Natal daquele ano foram tensos na cadeia; o silêncio da nova hóspede encheu as paredes estofadas de uma estranha expectativa. Em três dias a prisão voltou a ter um ar de cárcere, com murmúrios abafados e um certo senhor que nada fazia a não ser beber muita água, o dia todo, na cela dezesseis. Foi ele o único a tomar água mineral sem gás durante a ceia open bar no pátio da prisão, o único a perceber (e focalizar) uma fenda que se estendia do telhado até a base da cadeia; foi ele quem continuou imóvel durante quinze minutos como um copinho de plástico enquanto a rachadura se alargava rapidamente. Era quase meia-noite do dia 24 quando os convidados viram as paredes da ala sul desmoronarem, partidas ao meio pela falta de um só tijolo; ouviu-se longo e tumultuoso estrondo, como o reboar de mil cataratas — e o último bibelô de elefantinho foi engolido, tétrica e silenciosamente, pelos restos da cadeia de Pederneiras, destruída por uma falha retangular de 12,5x25cm.
Tinha olhos de berinjela
|
2005
Vanessa Barbara |