Witzelsucht

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Trocadilhos tolos, compulsão ao gracejo e conduta absurda
Edição #055, de 2 de fevereiro de 2004.
Edição especial do Dia da Marmota
Moi j'ai une toute p'tite ligne de chance
hortalica@gmail.com

 

"For fools rush in where angels fear to tread"
(Alexander Pope)

 

EDITORIAL
nossos motivos existem. E não é só isso: eles estão no Aurélio.
 

Witzelsucht

S. m. Psiq.

1. Psicopatia que se pode observar em indivíduos com lesões de lobo frontal, e que consiste em fazer gracejos sem graça, trocadilhos tolos, contar histórias despropositadas, etc., com o que se divertem intensamente.


:: SAMBA-ENREDO ::
do Stanislaw Ponte Preta

Foi em Diamantina
Onde nasceu JK
Que a princesa Leopoldina
Arresolveu se casar
Mas Chica da Silva
Tinha outros pretendentes
E obrigou a princesa
A se casar com Tiradentes


:: APENAS UM CASAL ::
Otto Lara Resende

Era uma sexta-feira como outra qualquer. De uns tempos pra cá, o sábado começa na sexta-feira. O sábado é uma ilusão, disse o jardineiro português à mãe do Nelson Rodrigues. Pequenino e cabeçudo como um anão de Velásquez, o Nelson tinha cinco anos. Nunca mais esqueceu a frase iluminada por uma centelha de poesia. Minha senhora, o sábado é uma ilusão. E o jardineiro empurrou o chapéu para trás.

Vejo o casal que vai partir para a noite de sexta-feira e ouço, inquieto, essa remota advertência. Um casal ajustado, vê-se. Terá dois filhos. Um menino e uma menina. A vida tranqüila, apesar de tudo. Bonita, nos seus trinta e poucos anos, ela é arquiteta, imagino. Três ou quatro anos mais velho, ele deve ser engenheiro. Ou médico. Ou professor. Exala certeza. Um casal estável, diante da noite e suas promessas.

O melhor da festa é esperar por ela. É a expectativa que lhes dá esse halo de felicidade. O programa inclui dois casais amigos. Ela, produzida, elegante, os olhos e a boca em destaque. Ele tem o cabelo molhado, um toque de sua intimidade. E confia no que o espera. Depois da semana rotineira, o sábado já hasteia festiva a sua bandeira de concórdia e lazer. Vão ser felizes, ele e ela, e o merecem. Estão na hora exata de ser felizes.

Deixaram as crianças com a avó. Ou têm aquela babá ideal, que não existe mais. Gente de sorte, esses dois. O carro é novo. Vi quando desceram e pisaram no chão. Pisam firme e sem pressa. Daqui a algumas horas, estarão de volta em casa. Meio cansados, meio insatisfeitos. Ele terá bebido dois drinques a mais. Ela terá dito uma palavra que convinha silenciar. Também pode ser que a noite se tenha dissipado na frustração. Ela volta amarga; ele, impaciente.

Não, não foi isto que vi quando davam os primeiros passos para fruir os amigos e a noite. Iam calados, com o ar ausente da saciedade. Talvez levassem em segredo o germe da discórdia. Uma bonita moça, um sólido rapaz. Um casal unido e pronto para partilhar a mesma ventura. A mesma aventura. Afasto a hipótese sombria que me persegue. No fundo, sou eu que preciso dessa felicidade alheia. Dessa harmoniosa sexta-feira que não é minha. Deus vos acompanhe, em vossa trêfega disponibilidade.


:: POEMINHA ::
Ferreira Gullar

Salve a mulher de amarelo
Põe a de verde no chinelo


:: THE BODY ::
Stephen King

As coisas mais importantes são as mais difíceis de expressar. São coisas das quais você se envergonha, pois as palavras as diminuem -- as palavras reduzem as coisas que pareciam ilimitáveis quando estavam dentro de você à mera dimensão normal quando são reveladas. Mas é mais que isso, não? As coisas mais importantes estão muito perto de onde seu segredo está enterrado, como pontos de referência para um tesouro que seus inimigos adorariam roubar. E você pode fazer revelações que lhe são muito difíceis e as pessoas o olharem de maneira esquisita, sem entender nada do que você disse nem por que eram tão importantes que você quase chorou quando estava falando. Isto é pior, eu acho. Quando o segredo fica trancado lá dentro não por falta de um narrador, mas de alguém que compreenda.


:: TANGO ::
Ricardo Piglia

Trata-se na realidade da tradição do tango. O homem que perdeu a mulher olha o mundo com olhos metafísicos e extrema lucidez. A perda da mulher é a condição para que o herói do tango adquira essa visão que o distancia do mundo e lhe permite filosofar sobre a memória, o tempo, o passado, a pureza esquecida, o sentido da vida. O homem ferido no coração pode, por fim, olhar a realidade como ela é e perceber os seus segredos.


:: E AGORA, PARA ALGO COMPLETAMENTE DIFERENTE ::
(porque só os loucos vão correndo por caminhos que os anjos temem trilhar)

com o apoio de

[sol, nunca seca meu pranto
qui é preu refrescá meus péis]

a Hortaliça orgulhosamente apresenta outra historinha para feriados e dias santos de guarda, na falta de propósitos mais nobres.


:: HISTORINHA DE CARNAVAL ::

Na sexta à tarde eles compraram dezessete latas de atum e se trancaram no 4040 da rua Amazonas, décimo segundo andar. Grudaram caixas de ovos nas paredes e vedaram as janelas com silver tape. O plano: ficariam de barriga pra cima nos azulejos do chão da cozinha, que era mais fresquinho, até que o despertador anunciasse 23h55 da quarta-feira de cinzas. Ninguém podia se mexer em excesso, atender o telefone, botar o lixo na garagem. Aparentar alegria também não era recomendado. Os dois apenas tentariam dormir durante cinco dias, acordando a cada doze horas para mudar de lado.

Seria um carnaval memorável. Sem caras bêbados tentando encher seus sapatos de sal, sem sambas-enredo cada vez mais parecidos com os do ano que vem. Desta vez, Xica da Silva não se casaria com o Tiradentes ao som da cuíca, não haveria lantejoulas ou chapéus de frutas da época, a princesa Leopoldina não assinaria a lei áurea ou um passista se atreveria a dormir na grama do seu jardim, abraçado à Branca de Neve.

[pois sim, o problema é que eles sempre esperavam demais das datas festivas, como já observara o jardineiro da mãe do Nelson Rodrigues, que dizia: “minha senhora, o sábado é uma ilusão”.] Não, dessa vez não dividiriam o ônibus com os integrantes da Caprichosos de Pilares; não seriam obrigados a escutar “toca Raul!” numa rodinha de violão no vagão do metrô; não teriam que sambar pra frente a fim de avançar na fila do mercado. Apenas fingiriam desconhecer a existência da efeméride comemorativa, e pronto. Ao final do período, ambos sairiam às ruas com os órgãos internos intactos e a sanidade mental preservada, quando, finalmente, ninguém mais estaria feliz. Talvez até pudessem se unir aos garis e ajudar a varrer a alegria dos outros.

Se algum deles porventura acordasse (120 horas de sono é demais? Deus, como você é fraco), poderia se salvar do vazio com água e atum, palavras cruzadas, banco imobiliário e cubo mágico. A televisão já estava encapada, o computador fora doado a entidades-assistenciais-de-sua-confiança e, na sexta à tarde, os dois resolveram desligar a chave-geral.

E foi assim. Já era domingo quando ela acordou com vontade de ir ao banheiro; ele passeava de pijamas pelo corredor com uma vela de sétimo dia. O sujeito sofria de insônia e tentava compor um aforismo desde as quatro da tarde. Já tinha pintado as unhas do pé (dela) e aberto a primeira lata de atum. Agora pensava seriamente em derreter coisas, por falta de uma ocupação mais nobre.

Na segunda-feira, ela despertou parcialmente com um formigamento no dedão esquerdo. Estava cansada, mas decidiu se levantar e comer um pouco. Bem que tentou não despertar tanto, mas tropeçou no cavalheiro que estava dormindo em forma de X no meio da cozinha e acabou acordando. Jantaram de pijamas. Ele tentou engatar uma conversa sobre pescaria, mas lembrou-se que nunca havia pescado. Mostrou-lhe as esculturas de homem-palito que havia feito com os potes de sorvete e tupperware derretidos. Ela sorriu um pouco, mas bem pouco mesmo. Enquanto comia direto da lata com um instrumento de plástico que outrora tivera um gracioso formato de colher, encostou-se na parede e começou a enumerar os nomes de hortaliças que conhecia. Aipo. Abobrinha. Acelga. Almeirão. Inhame. Qual a diferença de um legume para uma hortaliça? Como identificá-los? [O inhame é o que tem bigodes.] Ele já ia sugerir uma espiada pela fechadura, só para ter certeza que o mundo ainda existia lá fora, quando ela retirou-se do recinto dizendo que o dia tinha sido longo. “Acorde-me na quarta-feira”, e foi dormir.

Lá embaixo, Mem de Sá dividia uma estrofe com Anita Garibaldi nos gritos de uma mulher de tanga que sambava como louca e dizia ser um inhame (representando a riqueza natural do país). Puseram-se todos muito contentes de uma hora pra outra, sem perguntar por quê. A alegria alheia rolava pelas ruas como montes de feno e por pouco não entrou pelo vão da janela da sala -- por isso foi quase, mas por um tiquinho que ela não cedeu ao desejo de vestir uma roupa bem estranha (o que você está fazendo?/ vestindo uma roupa estranha) e convidou-o para fazer qualquer coisa.

Mas não foi desta vez.


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Este Zine é impessoal, objetivo e imparcial. Computadores meticulosamente programados preenchem generators, desenvolvem os textos, se emocionam, revisam e publicam a visão apolítica da coisa toda. O único responsável é a instituição "Da Redação".


... Para ser lido na maldita hora da noite em que tudo é engraçado -- logo após a hora em que nada faz sentido e antes daquela em que tudo faz sentido (Stephanie A.)

## Você está recebendo !!Witzelsucht!! (saúde) porque estava na lista de indivíduos manquitolas da lista negra dos Illuminati. Ou então, ou então! Você está recebendo o !Rododendro! porque foi um dos 139 mil nomes escolhidos entre todos os possíveis do mundo, sorteados em uma grande urna chinesa. Você e o To Fu, que ganhou o direito de trazer um tufo de nenúfares e furar a fila (snif). Caso não queira voltar a receber este monte de bobagens, mande um e-mail para vmbarbara@terra.com.br, e diga na linha de assunto: "sou uma pessoa triste". (Fnord keeps a spare eyebrow in his pocket.)

Em verdade, em verdade vos digo: Aquele que ri cuidado para que não babe.


God is coming.
Look busy.



2005 Vanessa Barbara